De António Prestes, dramaturgo do século XVI, são conhecidos sete autos, todos eles editados em a Primeira Parte dos Autos e Comédias Portuguesas, em 1587, uma miscelânea de doze obras que evidencia o alto valor atribuído ao seu teatro.
Da sua vida pouco se sabe. Franco Barreto na Biblioteca Lusitana, dá conta que Prestes seria “Enqueredor em Santarém e de lá natural” e que compunha por encomenda e com facilidade. Barbosa Machado diz que nasceu em Torres Novas, e que as suas peças foram publicadas em edições avulsas. I. S. Révah, refere que “nascido em Torres Vedras, “enqueredor do cível” em Santarém, residia em Lisboa em 1565″. Esta indeterminação entre Torres Novas e Torres Vedras é deslindada numa obra de 1936, Mosaico Torrejano. Miscelânea de Retalhos do Passado e do Presente de Torres Novas para Memoração no Futuro, Torres Novas, onde lemos que: “António Prestes (Rua de) = entre a Rua Serpa Pinto e a de Miguel Bombarda, na freguesia de Sant’Iago = assim denominada por deliberação de 9 de Maio de 1935, em homenagem ao Torrejano Ilustre (N.º 71), António Prestes, notável poeta dramático do século XVI, que nasceu na casa que dessa rua faz esquina para a Rua Direita, do lado do sul” pelo que, doravante, se pode relacionar o dramaturgo com essa cidade.
A dramaturgia de Prestes é peculiar. O Auto da Ave Maria, é uma moralidade, enquanto os restantes seis autos tratam de um teatro do quotidiano, cujo tema é o amor conjugal. Falaremos aqui dessa moralidade por permitir uma reflexão sobre a evolução do teatro português no século XVI.
O Auto da Ave Maria “la más ambiciosa de las moralidades portuguesas” apresenta afinidades com Gil Vicente, repetindo conceitos que se encontram no Breve sumário da história de Deos. Eugenio Asensio refere que a alegoria inicial concebe a alma como um castelo espiritual combatido pelo Diabo, um tema tratado várias vezes na literatura portuguesa embora, segundo pense, nunca no teatro, sublinhando também que “No dejan de sorprender las curiosas coincidências del Auto da Ave Maria con el teatro inglês de los siglos XV e XVI”.
Neste auto de A. Prestes, a Sensualidade canta e dança com quatro foliões, querendo seduzir o Homem. Neste caso, o Cavaleiro que assistido pela Razão, empreende a construção do Castelo da Salvação, ou seja, da alma. Dois filósofos populares no Renascimento, Heráclito, o que chora, e Demócrito, o que ri, deploram a queda da Razão. Entretanto, o Diabo reforça a tentação trazendo à cena três vícios: a Ambição, o Mundo e o Pecado. Disfarçado de arquitecto italiano, considera o Renascimento como obra sua, uma continuação do paganismo greco-romano, e apresenta-se ao Cavaleiro que, seduzido, decide despedir o mestre-de-obras, derrubar o castelo e seguir os projectos do diabo. Após seguir maus conselhos que fazem com que se desvie do caminho recto, o Cavaleiro dança uma galharda com a Sensualidade e começa a roubar quem passa por aqueles caminhos.
Por um lado, este Diabo italiano apresenta-se como “Lúcio Vitúrvio”, arquitecto e tratadista romano do século I a. C., autor da obra De architectura, por outro lado, é muito curioso verificar que a actualidade de Prestes invade a alegoria, pois, a um dado momento, o mesmo Diabo, menciona o celebérrimo Sebastião Serlio, arquitecto italiano do Renascimento, autor do tratado I sette libri dell’architettura, sabendo inclusivé que F. Vilhalpando, arquitecto e teórico espanhol traduziu e publicou em Toledo (1552), o Terceiro e Quarto Libro de Arquitectura, de cuja linguagem teórica o Diabo se diverte a parodiar.
Sylvie Deswarte em Francisco de Holanda ou o Diabo vestido à italiana, 1992, serve-se desta obra de A. Prestes para avaliar o acolhimento reservado à teoria arquitectónica vinda de Itália, constatando que o Auto pela sua sátira, condena simultaneamente, “o novo estilo vindo da Itália e o novo arquitecto ligado à sua introdução, o arquitecto teórico”. A arquitectura antiga representada como sendo a da Sensualidade, é diabolizada, e este Auto da Ave Maria “lança um raio de luz sobre uma corrente anti-vitruviana em toda a Europa da contra-Reforma”.
Durante o decénio de 1540-1552, assiste-se no nosso país a uma notável concentração de trabalhos teóricos. Sabe-se de uma tradução da obra de Vitrúvio encomendada por D. João III, por volta de 1541, ao matemático e cosmógrafo Pedro Nunes, que não chegou a ser impressa e que entretanto se perdeu. Henrique Leitão num capítulo Sobre as “obras perdidas” de Pedro Nunes, refere-se a essa tradução.
A morte do Infante D. Luis (1555) e de D. João III (1557), ambos conhecedores de arquitectura e amantes de desenhar projectos, deixa um vazio, que desacredita a época anterior no seu gosto pela antiguidade e pelos teóricos e que corresponde às regências da rainha D. Catarina e do Cardeal D. Henrique, que “manda então destruir em Évora o arco de triunfo romano, para pôr à mostra a fachada da nova igreja que manda construir em 1570”.
A condenação da antiguidade, a censura do nu, mesmo no âmbito da ciência (veja-se a gravura do homem vitruviano censurado, no exemplar da Biblioteca Pública de Évora, século XVI), a destruição dos vestígios da herança greco-latina, e os Índices Inquisitoriais são o reflexo brutal da mudança de paradigma que impera a partir de Trento e que não se compraz com heterodoxias.
Para S. Deswarte, este Diabo vestido à italiana, pelos traços com que é pintado, reproduz “com espantosa nitidez a personagem e a personalidade de Francisco de Holanda” que, chegado da sua viagem a Itália (1537-1541), trás debaixo do braço o Livro IV de Serlio e um taccuino, com as suas Antigualhas, onde reproduz os templos que o Diabo construíu. Mais tarde, por volta de 1570, ver-se-á obrigado a mudar de fato e de papel. De Diabo teórico passou a eremita, optando então por ser o piedoso Cavaleiro que zela e se ocupa da construção do Castelo da Salvação.
O Auto da Ave Maria, é um documento chave de um momento charneira do nosso país no século XVI, e do seu empobrecimento cultural após a morte de D. João III. À semelhança do que aconteceu com a arquitectura, também o teatro italianizante de Sá de Miranda, de Jorge Ferreira de Vasconcelos e de António Ferreira, após um curto mas extraordinário período de realizações, depressa foi silenciado.
Lisboa, 23 de Abril de 2013
Silvina Pereira