Após a busca levada a cabo por Don Ramón Menéndez Pidal, em 1910, na Biblioteca Nacional de Espanha, de obras portuguesas pertencentes à escola vicentina, foi ainda possível a Eugenio Asensio, passados quarenta anos, encontrar e descobrir dois novos textos de cujo paradeiro não se fazia qualquer ideia: o Príncipe Claudiano de Baltazar Dias, proibido pelo Índice de 1624 e que se supunha absolutamente perdido, e o Auto dos Sátiros, até então desconhecido por nunca ter sido mencionado em bibliografias nem em listas inquisitoriais.
Eugenio Asensio em “Una pieza desconocida del siglo XVI: El ‘Auto dos Satiros‘”, que publicou no Bulletin d’Histoire du Théâtre Portugais, em 1950, fazia questão de sublinhar que a importância desta obra advinha não tanto do seu valor poético mas, do interesse que tinha para a História do Teatro Português, dado o manancial de informações nela contida sobre a prática das representações teatrais no século XVI.
No frontispício da obra lê-se que a representação se vai desenrolar dentro de uma casa particular, e logo nas primeiras falas o Mordomo, agastado pela invasão da casa por espectadores, lamenta-se da excessiva afluência do público, enquanto o Moço, não parece preocupado já “Que há casa para mil autos”. São aqui retratadas as condições concretas da apresentação do auto, o esforço em arrumar, sentar e manter na ordem a assistência (“Alto, senhores, silencio, /nam aja nenhum rumor”). O público, que ia expressamente de Lisboa até Vila Franca para ver este auto, é protagonizado aqui pela dupla de escudeiros praguentos, cujo hábito era o de escarnecer e parodiar estas representações. A conversa destes inicia-se com a questão dos géneros em voga, auto vicentino versus comédia terenciana. Os apartes jocosos como “Torna a entrar a senhora;/queyramos ver ao que vem”, vão pontuando continuamente o desenrolar da acção central desta “peça de teatro dentro do teatro”, que diz muito sobre a recepção e os hábitos de zombaria do público.
O tema do teatro dentro do teatro; a invasão da casa pelos espectadores; a querela auto versus comédia; os comentários do Mordomo e dos Escudeiros, são “tierra conocida”, já que vêm em linha directa de A natural invenção do Chiado e um pouco do que se encontra no Rei Seleuco, atribuído a Camões.
Também o tema do príncipe disfarçado de jardineiro, que se encontra no Don Duardos de Gil Vicente, é aqui glosado, assim como, a intervenção da Ventura, com os seus três sátiros que, graças à sua associação com “satíricos”, simbolizam os censores ou praguentos (suspeitando Eugenio Asensio derivar de qualquer peça anterior não conhecida) e remete para o Auto de Florença de João Escovar, representado em Dezembro de 1561, no qual se encontra igualmente a Ventura acompanhada de três sábios cantores.
Segundo Asensio, o autor do anónimo Auto dos Sátiros, destinado a um público cortesão, “poseía capacidad teatral” mas, mostrou-se indeciso entre o motivo passional e os episódios burlescos, subtraindo, dessa forma, dimensão e relevo à acção principal. Mas, continua o lusitanista castelhano, embora o valor poético seja reduzido “En cambio ofrece un vivo interés para la historia del teatro. Es un arca de Noé de las tradiciones escénicas, una suma de histrionismo que recoge las convenciones dominantes en las tablas al final del reinado de D. João III”.
Ocorre também perguntar, onde e quando se representou o Auto dos Sátiros. No texto há alusões a Vila Franca de Xira e à sua comarca, pois se diz que o peixe vem de Povos, e parece haver uma malquerença com os de Alhandra. Refere-se aqui que os de Cachoeiras hão-de vir “rapar-vos o pelourinho” e curiosidades locais como Cadafais, Monte Gordo, e “a cidade da gruela”. Lino de Macedo em Antiguidades de Vila Franca de Xira, 1893, p. 307, menciona a “capela da Agroella” ao descrever S. João dos Montes. A representação da obra ter-se-ia realizado em casa de um aristocrata ali proprietário e na presença de cortesãos, por alusões como “Sabey que há aqui cortesões/que vos lerã de cadeyra”. Segundo Asensio, a casa nobre que, por riqueza e relações, reunia todas as condições para um espectáculo deste género, era o Palácio do conde da Castanheira, situado próximo de Vila Franca. D. António de Ataíde era o seu dono, e favorito de D. João III, até à morte do Rei em 1557, ano em que abandonou o seu posto de “veador de fazenda” para retirar-se para as suas terras, entregando-se a obras de caridade, até 1563. Embora Asensio fixe o ano de 1557 para a representação dos Sátiros, parece pertinente relacionar essa data com a edição do Auto de Florença, em 1561.
Através destes exemplos, em que a própria produção teatral e as condições de representação são expostas e discutidas na obra, fica a ideia, correndo o risco de ser exagerada a expressão, de que a época respirava teatro ou, pelo menos, que o teatro começava a fazer parte dos interesses de uma classe abastada que o fazia sair da corte, iniciando-se assim a sua “autonomização” e o seu devir público. Pois, muito antes de surgirem os teatros públicos, já nas casas particulares e nos pátios públicos as pessoas se reuniam ruidosamente para ouvir e ver autos, havendo mesmo quem desejasse afincadamente participar como actor, pois “sabe de cor as trovas de Maria Parda e entra por fegura no Auto do Marquês de Mântua”, segundo nos diz Jorge Ferreira de Vasconcelos na sua Comedia Aulegrafia.
Seria curioso conhecer e ver em palco esta “Arca de Noé” das tradições cénicas portuguesas. E, caso o público frequentasse os seus clássicos, poderia reconhecer através dos Sátiros, como no teatro quinhentista português se verifica uma inter-textualidade muito curiosa, e interessante a vários níveis, cujo paradigma remonta a Aristófanes, nas Rãs, a farpear as tragédias de Eurípedes, o que equivale a dizer que os nossos dramaturgos, cá faziam também, através das suas peças, esboços de crítica literária, ao modo do comediógrafo grego. Mas, porque mais vale tarde que nunca, sempre estaremos a tempo de iniciar essa navegação.
Lisboa, 27 de Março de 2013.
Silvina Pereira