Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos’: formavam-se assim as famosas primeiras linhas do romance de Charles Dickens, História de Duas Cidades (1859), por acaso passado nos “tempos” tão dúbios da revolução francesa. Só que naquele “tempo”, no de Dickens, o “pior dos tempos” não vinha nos jornais, ainda menos nos romances. O mais conhecido e mundialmente lido dos escritores ingleses cujas comemorações do bicentenário do nascimento (7 de fevereiro de 1812) se anunciam resgatou para dentro da literatura o “pior dos tempos” da era vitoriana… O lado sórdido do império, o underworld londrino. A Londres dos ratos dos porões, do Tamisa fétido, dos decrépitos asilos para órfãos, dos obscuros antros fabris onde penavam operários famélicos, das sombras dos becos que abrigavam o sustento de carteiristas… Parte da fama de Dickens veio daqui, de ter exposto a sociedade ulcerada da época, muito mais por sentimentalismo ou melodramatismo, do que por denúncia revolucionária ou incitamento à luta social. Mais por entretenimento e sátira do que por apelo realista. Ainda assim, chega uma nova vaga de personagens icónicas, homens comuns de todos os dias enredados em tramas inverosímeis, de moralismo simplista, pontuadas por cliffhangers para manter leitores “agarrados”. Curioso que, ao mostrar as desgraças da classe operária, o escritor conquistou a burguesia que consumia as suas obras e acorria às célebres matinés e soirés de leituras públicas, autênticas tournés pelo Reino Unido e EUA que tornaram Dickens numa espécie de artista pop do século XIX. O escritor investia tanto nestas leituras que arrancava gargalhadas e lágrimas à assistência e também muitas energias ao próprio corpo, o que tera conduzido à sua morte precoce, aos 58 anos.Foram 989 as personagens criadas por Dickens, algumas tão glosadas e familiares que se infiltraram no léxico inglês (o termo scrooge, o irascível avarento de A Canção de Natal, tornou-se sinónimo de miserabilista). Fizeram-se incontáveis adaptações teatrais, a BD e perto de 200 versões cinematográficas e televisivas da sua obra. Aliás, mais do que Shakespeare, Dickens está no pódio das adaptações ao cinema, em todo o mundo. A primeira, em 1913, ainda da era do cinema mudo; e, até em Portugal, João Botelho filmou a sua versão de Tempos Difíceis, em 1988.Londres, a personagemMas, no fundo, a mais omnipresente das suas personagens foi mesmo Londres.Dickens tinha uma memória fotográfica, à Balzac, convocava toda a vida que lhe passava pelos olhos e pelas janelas. Por isso, não se estranhe que para além do mobiliário, dos manuscritos, das penas e tinteiros, da secretária e cadeirão, dos espelhos (Dickens tinha uma obsessão por espelhos), das fotografias, ilustrações e pinturas e das muitas edições de todo o mundo, seja a janela preservada do seu quarto de infância uma das peças mais curiosas das expostas na casa-museu de Charles Dickens, em Boomsbury. Foi por esta janela que Dickens começou a ver o mundo. E depois pelas grades da prisão de Marshalsea, onde os pais estavam presos por insolvência. Ou por alguma fresta da insalubre fábrica de graxa onde trabalhou em criança, dez horas por dia a seis xelins, para pagar a dívida familiar, e também pelas janelas bem menos lúgubres daquela que foi a sua primeira casa de casado, no número 48 da Doughty Street, num bairro residencial, com uma correnteza de fachadas iguais, de gradeamento à frente e típico pátio georgiano nas traseiras. Foi aqui, nesta casa geminada (que será ampliada), de dois pisos, uma cave e um sótão para os criados, que Dickens se tornou pai de dois dos seus dez filhos e de duas das suas obras Os Cadernos de Picwick (1836) e Oliver Twist (1837-1839).POR ANA MARGARIDA DE CARVALHO, EM LONDRES
CHARLES DICKENS: Uma vista para o quarto
Nas comemorações dos 200 anos do nascimento do mais importante romancista inglês da era vitoriana, a casa de Charles Dickens abre para obras de ampliação
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