A primeira coisa que chama a atenção em
Stitches: A Memoir de David Small tem precisamente a ver com a última das perguntas formuladas acima. A contracapa e interior do livro incluem frases elogiosas de pessoas ligadas à BD, como Scott McCloud, Jules Feiffer, Robert Crumb, Françoise Mouly, Douglas Wolk, Sol Davidson ou Stan Lee. Para se ter uma ideia, é mais ou menos o mesmo que colher em simultâneo palavras de apreço de Margarida Rebelo Pinto, António Lobo Antunes, João Miguel Fernandes Jorge, Maria Velho da Costa e Nuno Markl. O leque é tão abrangente que se chega a duvidar do alcance das palavras. Só que essas “pessoas da BD” pouco significado têm neste contexto. Os seus nomes estão escondidos entre os de críticos da
Newsweek, Chicago Tribune, Los Angeles Times, Washington Post, Boston Globe, National Public Radio, Entertainment Weekly, Huffington Post. E ainda Spike Jonze. Não estamos, claramente, a ler um “comic book” clássico, preso no “guetto”.
Stitches é classificado pela editora W.W. Norton como Memoir/Graphics, esteve no top de vendas do
New York Times, e foi finalista do National Book Award. Não é todos os dias. E sejamos claros: não pode só ter a ver com a qualidade da obra, ou com a sua temática.
Voltamos à tal pergunta: quem é David Small? A resposta tem mais a ver com aquilo que não é: um autor de banda desenhada.
Cartunista editorial de algumas das mais importantes publicações norte-americanas (New Yorker, Washington Post, New York Times), Small é ainda muito conhecido enquanto ilustrador de livros infantis, várias vezes premiados. Stitches é pois uma obra que terá surpreendido, quer em termos de um formato que o autor pouco utilizou, quer através de um conteúdo muito distinto ao que o tornou famoso. De que modo pode resultar essa opção? Há a possibilidade de trazer para a BD uma perspectiva nova, um olhar fresco e não comprometido com cânones viciados. Também pode suceder que o desconhecimento da linguagem, ligado ao peso da temática, revele um autor inseguro. Em Stitches ambas as coisas acabam por se tornar verdade.
David Small nunca esconde que o principal foco da obra é a sublimação de fantasmas pessoais, ou não fosse o seu psiquiatra uma das pessoas a quem agradece no final. Stitches organiza-se assim por episódios traumáticos na vida do autor (dos seis aos quinze anos), adquirindo um peso a espaços quase insustentável na crueldade que o rodeia enquanto protagonista, e na crueldade que devolve aos seus familiares-personagens, enquanto autor. O ponto de vista é claramente único, os outros são fantasmas que o autor adequa ao seu percurso, não propriamente pessoas. Essa é uma das fragilidades da obra, alguns momentos fortes pouco ligados e ausência de contextualização, a não ser a que tem lugar na cabeça de Small. Apesar de uma pretensa honestidade crua, em Stitches sente-se muito a falta daquilo que não se pode/quis dizer.
Sem querer revelar demasiado da história concreta, a angústia que geriu a juventude de David Small relaciona-se com progenitores distantes que lhe causaram danos. Com o pai, médico radiologista, o dano foi físico, já que terá (possivelmente) sido responsável por lhe causar cancro na tiróide, numa altura em que a radiação era vista como um remédio milagroso para tudo. A frieza amoral da mãe fez o “resto” do ponto de vista psicológico… A cicatriz no pescoço da cirurgia para remover o cancro (é evidente o constrangimento para a desenhar) e o facto de esta lhe ter afectado as cordas vocais são simbolismos físicos poderosos e óbvios: os “pontos” (“stitches”) com que o David Small coseu as feridas que lhe cortaram a sua “voz” de infância.
A ética deste tipo de obras pode ser questionada, e o autor português José Carlos Fernandes, por exemplo, já se manifestou várias vezes contra uma espécie de autobiografia pornográfica cruel, sem direito ao recato das personagens involuntárias ou a contraditório. Isto a propósito de Fun Home, de Alison Bechdel, uma obra com a qual Stitches tem algumas afinidades em termos de em ambos ser fulcral um progenitor distanciado por uma sexualidade secreta. Não é concerteza coincidência que o irmão do Small, o único membro da família vivo e (eventualmente) principal co-testemunha, seja o maior fantasma de todos, primando pela ausência. No final o autor tenta esboçar gestos de conciliação e compreensão (e remorso?) nas frases que funcionam como epílogo, mas de facto soam a hipocrisia, por não estarem no próprio livro, sendo enquadradas por fotografias, já não pelo desenho. Uma catarse leva-se até ao fim. E que tal compreender primeiro, desenhar depois?
O peso da narrativa é no entanto aliviado pela composição gráfica e pelo traço. As linhas finas do desenho, preenchido por uma aguada cinza, lembram uma versão um pouco mais clássica do conceito de “linha frágil” de Lorenzo Mattotti. Citações de Will Eisner, Hukosai, Jules Feiffer, John Tenniel (ilustrador de Alice no País das Maravilhas) e Disney são algumas das referências que surgem como importante pontuação gráfica, para ocasiões que David Small não viveu, em momentos mais desiquilibrados ou (raramente) nos de felicidade possível. A fantasia que utilizou para se refugiar, e de que é exemplo a notável sequência em que o autor-protagonista mergulha literalmente, qual Alice, em mundos de papel, antecipam aquele que seria o seu rumo profissional. Somos o que fomos. Por outro lado a falta de detalhe nos cenários sublinha o isolamento de Small e o facto de tudo ser centralizado nele, ao mesmo tempo que deixa entrar luz, mitigando a claustrofobia total transmitida pela história.
Globalmente Stitches é pois uma obra desiquilibrada na sua estrutura, que uma orquestração gráfica brilhante resgata. Pressente-se que a sua realização foi muito importante para David Small, a importância para cada leitor dependerá mais do modo como se relacionar com o percurso e opções do autor do que com qualquer outra coisa.
Stitches: A Memoir, por David Small.W. W. Norton, 2009. (14/20)