Todos os anos, o verão traz consigo uma certa letargia. Em Lisboa, por exemplo, aos dias quentes e ao progressivo esvaziamento da cidade, junta-se a pausa anual no calendário de inaugurações dos grandes museus e instituições culturais que nela existem.
Longe do reboliço dos primeiros meses do ano e no rescaldo da movimentada feira internacional de arte contemporânea portuguesa ARCOLisboa, surge finalmente o momento que parece ter sido desenhado para visitar exposições patentes em espaços que, pela sua menor dimensão, oferecem ao público um encontro mais intimista e intenso com a obra dos artistas em mostra.
É o caso de Ghost Ranch, Uma serenidade em êxtase e What Holds The Structure, as três exposições que a Rialto 6, a Galeria da Brotéria e a Galeria Foco apresentam, respetivamente, até 18, 9 e 5 de julho.
Ghost Ranch

Quem já ouviu As Quatro Estações de Antonio Vivaldi com atenção, terá reparado que a melodia mais melancólica da obra corresponde, não ao inverno, mas ao segundo andamento do verão. As notas arrastadas, em Sol menor, parecem dar voz ao lamento da terra que arde sob o Sol, cada vez mais seca e fraca.
É um lamento semelhante ao que nos acolhe quando entramos em Ghost Ranch, exposição de Henrique Pavão (HP), patente até 18 de julho, na Rialto 6, que pede o nome emprestado ao rancho onde a “mãe” do movimento modernista norte-americano, Georgia O’Keeffe, vivia, trabalhava e se deixava inspirar pelas paisagens montanhosas e áridas do Novo México.
O som cavo que emerge das profundezas da sala escura oscila entre um chamamento hipnotizante e aterrador. Tentando perceber a sua origem, mergulhamos na escuridão, apenas iluminada por uma vitrina sob os nossos pés.
Dentro dela encontram-se dezenas de ossos. “É o esqueleto quase completo de um boi que morreu à sede e que encontrei durante uma caminhada no campo”, explica o artista, que, para a preparar a exposição, isolou-se seis meses, na mais completa solidão, numa casa de taipa, no Alentejo.
Nos restos do animal sobre os quais caminhamos, em direção ao lamento que continua a ecoar no piso inferior, há, ainda assim, mais vida que morte. A morte ficou nos campos, que segundo alguns especialistas, dentro de 50 anos, serão um autêntico deserto.
Há uma ideia de ressurreição, pois fiz 59 moldes dos ossos e enchi-os com terra do sítio onde os encontrei, ou seja, desenterrei-os na forma da própria terra que os tinha engolido originalmente
henrique pavão
Aqui, explica Pavão, “há uma ideia de ressurreição, pois fiz 59 moldes dos ossos e enchi-os com terra do sítio onde os encontrei, ou seja, desenterrei-os na forma da própria terra que os tinha engolido originalmente.” Descendo as escadas, encontramos enfim a fonte das notas melancólicas.
Quais “guardiões da sepultura” do piso superior, surgem dois enormes amplificadores. Deles sai a voz de uma guitarra elétrica com uma afinação aberta em Ré menor, “o acorde mais triste do vocabulário musical do ocidente”, sublinha o artista, deixada em pleno campo alentejano, para ser tocada pelo vento. “É o som da paisagem, do ar a passar sobre as cordas, de pequenos insetos, que por vezes nelas poisam, de poeiras, do vento”, explica HP.

O mesmo ar que deu vida às cordas metálicas, foi também aquele que secou uma outrora verdejante paisagem alentejana, provocando a morte de muitos animais como o boi que se encontra “sepultado” na vitrine, alguns metros acima das nossas cabeças. “Esta peça não deixa de ser uma carta de despedida a essa paisagem”, revela o artista.
Se dentro da sala, o som da guitarra materializa a falta da presença física da mesma, lá fora, na vitrine que a Rialto 6 tem para a rua, uma outra obra faz exatamente o oposto.
Bull Guitar Drag (after Christian Marclay) mostra a quem passa pela Rua do Conde Redondo, uma guitarra que materializa uma ação invisível, também ela realizada nos seis meses durante os quais o artista se isolou no Alentejo.
Numa citação de Guitar Drag, de Christian Marclay, um vídeo de 14 minutos durante o qual uma guitarra amplificada é arrasta pelo alcatrão por uma pick-up, Pavão repetiu o gesto, mas com um boi.
“O boi disparou a correr e partiu a guitarra toda nos primeiros 10 segundos, portanto, em vez de um filme, fiquei só com o instrumento, recuperado por uma empresa de restauro e conservação para preservar o estado de destruição exato, e apresento-o quase como um artefacto, uma memória de um acontecimento específico”.
Nos ossos do boi, que jazem dentro, e nos da guitarra, que jazem fora, além das respetivas sentenças de morte, ecoam música e memória e, por isso, ecoa a eternidade.
Uma serenidade em êxtase

É também da eternidade que, de certa forma, se fala em Uma serenidade em êxtase. Patente na Galeria da Brotéria, até 9 de julho, a mais recente exposição de Sara Chang Yan (SCY), uma das seis finalistas do Prémio Novos Artistas Fundação EDP 2024, apresenta um olhar sobre o Mundo pautado pelo espanto.
O espanto da descoberta, do encontro com o desconhecido, a capacidade de nos maravilharmos com a nossa própria incapacidade de perceber a verdadeira dimensão do que significa estarmos vivos.
Nos desenhos que SCY apresenta na Brotéria, há, não só uma entrega total a este espanto, como também um aparente “treino” intencional de confiança: nos caminhos misteriosos através dos quais o desenho é capaz de guiar a artista até conceitos imensuráveis da sua vida interior, seja o de “um calor-fresco”, o de “ternura” ou mesmo o de “Deus”.
“O desenho tem que me fascinar, tem que comportar algum mistério, permitir-me descobrir na folha em branco uma coisa que me surpreenda. Se não, estou só a repetir coisas que vi”, sublinha SCY, enfatizando o papel de “guia” que a folha em branco desempenha na sua prática artística.

Quando esta pede para ser dobrada, então dobra-a, se faz sentido ser cortada a X-ato, o corte é feito sem receito, e acaba por recordar a artista, graças à luz que atravessa o papel, de que uma folha, tal como uma alma, tem sempre dois lados, ambos “desenháveis”.
Nas obras suspensas do teto e pintadas numa das paredes da galeria, que a artista afirma espelharem a sua vivência enquanto ser humano, com todas as questões que isso implica, encontramos, ao invés de representações ou metáforas de alguma coisa, simples gestos de procura.
As folhas cortadas em formas que não têm nome, as manchas de tinta que não seguem um padrão, os pontos pintados sem uma regra específica e, sobretudo, os desenhos que surgem tanto no lado de luz como no lado de sombra do papel, plasmam a vida de alguém que revela estar em busca “da sensação de Deus”.
O que quer isto dizer? Que, como SCY procura diariamente uma coisa que “só se pode sentir e à qual não se pode dar um nome” e, porque as suas vivências “acabam por aparecer sempre no trabalho”, chega a composições que “acabam em algo sem nome, que é concreto e se sente, mas cujas formas não remetem para nada”.
Deus, para mim, sente-se. Não se entende. O sentir chega até nós e, mais tarde, transforma-se em formas e pensamentos
Sara Chang Yan
Mais do que racionalizar, a artista procura desenhos abertos, sem frente nem verso, que possa sentir e ir descobrindo à medida que se descobre a si mesma. “Deus, para mim, sente-se. Não se entende. O sentir chega até nós e, mais tarde, transforma-se em formas e pensamentos”, assegura.
What Holds The Structure
Do outro lado da cidade, em What Holds The Structure, também Maria Appleton (MA) deu forma ao “sentir”.
Na exposição patente na Galeria Foco até 5 de julho, a artista reflete, material e conceptualmente, através de obras têxteis, sobre o impacto que a perspetiva e o ponto de vista têm na forma como cada um ganha consciência da verdadeira dimensão da teia de acontecimentos que compõem a sua vida.
Essa teia é, muitas vezes, mais complexa do que uma rápida primeira impressão poderia sugerir, parece querer recordar-nos Maria, mal entramos no piso térreo da galeria e nos deparamos com Senses of Existence.
A obra, que à primeira vista se apresenta como uma densa mancha de cor retangular, formada pelo cruzamento de centenas de linhas de todas as cores, revela-se, mal mudamos de posição e começamos a circundá-la, uma sequência de planos horizontais e verticais, semelhantes às ameias de um castelo.
Se, por um lado, torna-se mais fácil perceber a verdadeira forma da estrutura, por outro, percebemos que precisaremos de mais tempo para conhecer bem os seus contornos e propriedades.
No andar inferior, a artista mergulha no campo da intuição, essa luz que, por vir de dentro, é capaz de nos guiar quando as tramas se adensam e os novos planos parecem surgir todos de uma vez
“What Holds The Structure” [O que sustenta a estrutura] é, subitamente, afirmação que soa a pergunta. No caso de Senses of Existence, uma vez que a estrutura é moldada por finos varões de ferro, apoiados em perfeito equilíbrio uns nos outros, a resposta seria: a estrutura sustenta-se a si mesma.
Se, no piso térreo, MA explora a revelação progressiva de planos, servindo-se, para isso, da luz natural e da movimentação dos visitantes no espaço, no andar inferior, a artista mergulha no campo da intuição, essa luz que, por vir de dentro, é capaz de nos guiar quando as tramas se adensam e os novos planos parecem surgir todos de uma vez, mais depressa do que acreditamos ser capazes de aguentar.
Em Reconstruction of Loss [Reconstrução da Perda], por exemplo, à linhas que se cruzam numa estrutura retangular, a artista acrescentou nós feitos com fios de linho, tingido de preto, retirados das obras do piso superior. A perda de um lado é a reconstrução do outro, o vazio atravessado pela luz do Sol, no andar de cima, é nó atado com a força da intuição, no de baixo.
Uma força particularmente celebrada em Intuition, obra exposta na última sala da mostra. Um retângulo com mais de dois metros por três, feito de tecido refletor e algodão, divide o espaço semi-circular, ocultando aquilo que Appleton define como “um farol interno, uma luz escondida que apenas se revela a quem não tem medo de olhar para lá da barreira de tecido”.


