“Magnífico da Universidade e Salamanca. Excelentíssimos e ilustres autoridades que nos acompanham, devo dizer que a única outra vez que tive a honra de receber um doutorado honoris causa foi na Universidade de Bahia, e o título foi-me entregue em cima do que chamam um caminho elétrico, um camião com amplificadores de guitarras elétricas onde os músicos no carnaval tocam para a multidão dançar na rua. Mas parece-me impossível estar em Salamanca e não pensar no que escreveu Miguel de Unamuno.
Sou um cantor de canções populares. Os livros que tenho nunca estão organizados e as minhas leituras são na sua maioria de obras que me caiem nas mãos. Faz muitos anos que li Unamuno e não sei onde estão os seus dois livros que li, mas tenho a certeza de que muito do que ali encontrei ficou na minha cabeça. É sobretudo inesquecível o olhar de Unamuno sobre a língua portuguesa como um castelhano sem ossos. Na sua decisão de ver Espanha como uma unidade que se deveria assumir, ele convida a todos os ibéricos a pelo menos lerem as outras línguas que aqui se desenvolviam.
Unamuno, o mais castelhano dos bascos, leva-me a sentir a beleza da língua espanhola com as vogais claras, cujos sons não são negociáveis proporcionando uma espécie de superioridade sobre o português ou o catalão. Não digo que Unamuno dizia isso e sim que o que ele escreveu me fez sentir assim. O português do Brasil é talvez mais sem ossos do que o de Portugal. Este, na verdade, parece feito de ossos que se converteram em pó. As consoantes são como uma areia fina feita de lã de matéria do osso. Há anos compus e gravei uma canção a que chamo em português “Latim em pó”, ou seja, “Latin hecho polvo”. A canção chama-se “Língua”.
Unamuno, na verdade, vivia as trocas subtis das vogais e também das consoantes portuguesas com uma maleabilidade que as pessoas que falam castelhano deveriam escutar com carinho para enriquecer-se. No final dos anos de 1960 e início dos anos 70, enquanto eu me encontrava exilado pela ditadura militar que mostrou o que há de mais feio na alma brasileira, os autores hispano-americanos tornaram-se mundialmente importantes. O diretor de cinema brasileiro, Glauber Rocha, que dirigia um filme em Barcelona, chamou-me para que eu viesse de Londres encontrá-lo. E foi assim que descobri o boom da literatura latino-americana. Li Gárcia Márquez, Córtazar, Borges, Guillermo Cabrera Infante. Acredito que deixo estes dois por último porque foram os que mais me encantaram.
Tudo de Borges me parecia divino e Três Tristes Tigres, de Infante, maravilhou-me com os seus jogos com as palavras. Aproximei-me deste grande autor cubano através do poeta concreto do Brasil Haroldo de Campus. Encontramo-nos algumas vezes em Londres e sempre que ele vinha ao Brasil, ou se estivéssemos em alguma cidade europeia ao mesmo tempo, ele encontrava-me e conversávamos.
Acho que quero fazer um parêntesis porque escrevi estas palavras ontem à noite e não coloquei o que quero dizer também sobre Borges e a língua portuguesa. Quando Borges veio ao Brasil, ele deu muitas entrevistas. Ele gostava de dar entrevistas quando estava velho e numa delas disse que a palavra “luna” em espanhol é uma palavra de uma beleza plena e em português, infelizmente, “lua” não lhe parecia uma coisa bela. Então eu invocaria Unamuno para contrariar esta ideia um tanto pobre do divino Borges. Porque “Luna”, precisa, como tudo em castelhano, duas sílabas, uma consoante, uma vogal, uma consoante, uma vogal, e é como se se visse a lua com uma precisão como quando a vemos quando não há nuvens, quando não há imprecisão. Mas a “Lua” é como o espírito da “luna”. Levou ao aparecimento da palavra “luar”, que soa como um verbo. Talvez fosse um verbo há muitos séculos, não sei. Mas em português chamamos a luz da lua, luar. Então eu coloquei Unamuno contra Borges aqui.
Pois bem, continuando para terminar. Foram muitas as pessoas que me apresentaram o castelhano, desde um jantar com Garcia Márquez em Barcelona, ao lado de Glauber, a uma multidão de argentinos com quem tive a felicidade de falar e ouvir a língua. Ontem à noite, quando parei para escrever as palavras que estou a tentar dizer aqui, lembrei-me de tantos filmes mexicanos, tangos argentinos, boleros e mambos cubanos, canções peruanas de Chabuca Granda, canções chilenas de Violeta Parra, e não só filmes, mas também conversas com dois espanhóis que amo e sempre amarei, Fernando Trueba e Pedro Almodóvar. Da minha parte dedico a esses dois toda a beleza desta festa. Obrigado.” J