Não foi auspiciosa a estreia de Fernando Medina no Eurogrupo, no passado dia 4 de abril. Todos sabemos que se trata de um grupo informal que reúne os ministros das Finanças dos estados-membros da União Europeia, mas haverá certamente limites. Ou então fomos nós, meros portugueses, que não atingimos a ironia de Paschal Donohoe.
O ministro das Finanças irlandês quis receber calorosamente o homólogo português na sua estreia no Eurogrupo, a que preside, e decidiu partilhar uma das suas visitas à capital portuguesa. “A última vez que estive em Lisboa, Mário [Centeno] levou-me ao museu de Pessoa e conheci a sua viúva”, disse entre muitos sorrisos, para, triunfalmente (ou não se estivesse a referir ao autor das odes futuristas), acrescentar: “Para mim, foi tão emocionante conhecer a viúva de Fernando Pessoa, como seria para o meu filho conhecer o Cristiano Ronaldo.”
Pela reação de Fernando Medina, sorridente e afirmativo, não sabemos se terá pensado que Paschal Donohoe não batia bem da bola ou se terá ficado na dúvida: pode-se, mesmo num grupo informal, quebrar as regras do protocolo e da boa educação e corrigir o anfitrião diante tantas câmaras e correligionários?
O caso é complicado, como se sabe, porque a vida amorosa de Fernando Pessoa continua a ser um grande mistério. Talvez a monumental biografia de Richard Zenith, que chega às livrarias portuguesas no próximo mês de maio pela mão da Quetzal, venha levantar um pouco o véu de tão opaca intimidade. Até lá, para viúva, resta-nos D. Ophélia Queiroz, embora há muito falecida, mas esse pode ter sido um pormenor facilmente ignorado pelo entusiasmo de Paschal Donohoe. Aliás, certamente conhecedor da linhagem de D. Ophélia Queiroz, é bem provável que o ministro das finanças irlandês estivesse, afinal, a testar Fernando Medina, tendo na cabeça o famoso Anti-Soneto de Carlos Queiroz, poeta e sobrinho da doravante designada, para efeitos desta crónica, “viúva de Pessoa”: “O nosso drama de portugueses,/ O nosso maior drama entre os maiores/ Dos dramas portugueses,/ É este apego hereditário à Forma:/ Ao modo de dizer, aos pontinhos nos ii,/ Às virgulas certas, às quadras perfeitas,/ À estilística, à estética, à bombástica,/ À chave de ouro do soneto vazio/ – Que põe molezas de escravatura/ Por dentro do que pensamos/ Do que sentimos/ Do que escrevemos/ Do que fazemos/ Do que mentimos.”.
Antes do início dos trabalhos do Eurogrupo, Paschal Donohoe, que vem de um país com uma fortíssima tradição literária, onde pontuam alguns dos grandes nomes da literatura mundial, sobretudo dos séculos XIX e XX, deve ter sentido um enorme apelo de liberdade, esse desejo tão forte de “prazer” e de não “cumprir um dever”. Ou seja, libertar-se da “forma” de que fala Carlos Queiroz, esquecer o rigor dos factos e dos números e dos falecimentos. E por aí foi, afirmando o seu inebriamento em relação ao “drama em gente” pessoano, que naquele momento ele próprio continuava.
Com um namoro tão longo, ainda que com grandes sobressaltos e tantas vezes mais literário do que real, D. Ophélia Queiroz merece certamente o estatuto que o ministro das finanças irlandês lhe outorgou. É que, naquela relação, havia sempre, e pelo menos, uma mão-cheia de emoções. Dava até para parafrasear o conhecido poema de José Luís Peixoto e dizer que “na hora de pôr a mesa, éramos cinco”. Isto é, o Fernando Pessoa, o Alberto Caeiro, o Ricardo Reis, o Álvaro de Campos e D. Ophélia Queiroz. Mas ela era capaz de tolerar tudo, até as cartas dos heterónimos. A 25 de setembro de 1929, por exemplo, o engenheiro naval, já um pouco toldado na sua fúria modernista, mas ainda senhor da sua boa verve, escreveu-lhe uma epístola em nome do amado. Dizia-lhe então Fernando Pessoa, via Campos, que D. Ophélia estava “proibida de (1) pesar menos gramas, (2) comer pouco, (3) não dormir nada, (4) ter febre e (5) pensar no indivíduo em questão.”
Não é isto amor, afastar o que se quer tão perto? Eles sempre tiveram os seus arrufos. De resto, no dia em que Pessoa primeiro se declarou, D. Ophélia não teve os modos mais delicados. Encontraram-se na Valada & Freitas, Lda., na Rua Assunção, 42, em Lisboa. Era um negócio de brocas onde o poeta estava empregado. Com 19 anos, D. Ophélia respondera a um anúncio e fora admitida três dias depois. Passadas poucas semanas, e aproveitando uma quebra no fornecimento de luz, ou seja, com o escritório às escuras, Fernando Pessoa (12 anos mais velho) viu a sua oportunidade. Aproximou-se com um candeeiro a óleo e disse-lhe: “Oh, querida Ophélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para mediar os meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! Até do último extremo, acredita!”. Reação? Um não saber o que fazer, pegar no casaco e encaminhar-se para a porta. No entanto, astuto, o poeta fez o avanço final. “O Fernando levantou-se, com o candeeiro na mão, agarrou-me pela cintura, abraçou-me e, sem dizer uma palavra, beijou-me, beijou-me apaixonadamente, como louco”, segundo o relato posterior da própria.
Seguiram-se muitas cartas de amor, todas ridículas e recomendáveis, vários bilhetes (“kiss me”), algumas prendas, sobejas ações repentinas como a do candeeiro, demasiadas esquisitices, muitos equívocos e um noivado sempre recusado pelo poeta. Pessoa tinha um jeito especial para destemidos avanços e grandes recuos. Nos dias seguintes à declaração de amor, agiu como se nada se tivesse passado, dando origem à primeira missiva da sua desconcertada amada. Em todo este relacionamento, parece aplicar as Regras de Bem Viver que Nietzsche defende num dos seus poemas, agora reeditados, na tradução de Paulo Quintela, pelas Edições 70: “Para bem viveres a vida/ deves ‘star acima dela!/ Aprende, pois, a elevar-te!/ Aprende a olhar para baixo!// O mais nobre dos instintos/ enobrece-o com prudência:/ pra cada quilo de amor,/ um grão de desprezo-próprio.”
Mais insondáveis são certamente as regras do nosso Paschal Donohoe. Será que defende, como Oscar Wilde, “que a cada bela impressão que causamos, conquistamos um inimigo. Para ser popular é indispensável ser medíocre”? Ou, seguindo ainda o escritor irlandês, tão incompreendido no seu tempo, estará mais próximo de um outro aforismo seu, já que há quem diga que confundiu Pessoa com Saramago (que foi Pessoa pelo menos num romance): “Se soubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria muito mais silêncio neste mundo.”
Contra eventuais sanções do ministro das Finanças irlandês, apenas posso regressar, em minha defesa, à poesia de Nietzsche e desta página lhe dizer: “Quem não for capaz de rir, que não leia o que está escrito!”