Com 93 anos de idade e 80 de teatro, continua em cena. É consensualmente reconhecida como a maior atriz portuguesa do séc. XX e o palco continua a ser a sua “casa”, como diz ao JL. E não se trata apenas de um caso de longevidade, é uma força do teatro. O seu nome devia ser inscrito como sinónimo, no dicionário. O JL dedica o tema desta edição a Eunice Muñoz. Publica textos de Lídia Jorge, Inês Pedrosa e Rui Pina Coelho, os testemunhos dos atores e encenadores João Lourenço, Carlos Avilez, João Mota, Rui Mendes, Tiago Rodrigues, Diogo Infante, Ana Luísa Guimarães, Carlos Pimenta e Lídia Muñoz, a neta com quem contracena em A Margem do Tempo, que continua a digressão pelo país em janeiro. E entrevista Tiago Durão sobre o documentário sobre a atriz, que agora chega às salas, Eunice ou Carta a uma Jovem Atriz
Triste e alegre”, é assim que se sente Eunice Muñoz, agora que celebra 80 anos de teatro. “Triste porque termino a minha carreira, alegre porque tive grandes satisfações e alegrias”, diz ao JL. “Vivi com ela e por ela. E sinto que nada foi em vão.”
Quando olha para trás, no balanço de tantos anos, sente que o saldo de “grandes alegrias” “compensou” as tristezas que também teve. E sobretudo que o palco foi a sua “casa”: foi no palco do Teatro D. Maria II (TNDMII) que Eunice se estreou a 28 de novembro de 1941, na peça Vendaval, de Virgínia Vitorino, protagonizada por Maria Lalande e dirigida por Amélia Rey Colaço. “Tinha 13 anos quando aqui me estreei, ainda não sabia nada de nada, tinha apenas a experiência do teatro dos meus pais e dos meus avós”, recordava a atriz, numa entrevista ao JL, em 2009. “Fiquei sempre muito ligada à Amélia Rey Colaço, que foi muito carinhosa e compreensiva comigo. Era uma mulher extraordinária, que durante 40 anos dirigiu muito bem esta casa.”
A Amélia Rey Colaço não escapou o talento da jovem atriz que contrataria para a companhia, que seria a sua casa durante muitos anos. Agora voltou lá de novo para ser homenageada e mais uma vez pisar as tábuas, desta vez em A Margem do Tempo, ao lado da neta, Lídia Muñoz. “Sinto-me muito feliz com todas as homenagens que me têm feito”, afirma-nos a que é um verdadeiro “hino ao teatro”, como disse na cerimónia de homenagem Pedro Penim, o novo diretor artístico do TNDMII.
Um momento para a História do teatro, assegura Lídia Muñoz: “Ela não só fez 80 anos de carreira como chegou aos 80 anos de teatro a trabalhar, em palco. É impressionante, uma força da Natureza, uma força do teatro.”
BERÇO TEATRAL
Eunice Muñoz nasceu na Amareleja, em 1928, num verdadeiro berço teatral. “Só podia ser atriz, dada a minha família”, garante. E nunca se “arrependeu, nem dececionou” com o caminho que escolheu, como assegura oito décadas depois, com uma convicção que, de repente, lhe tornou forte a voz agora fraca.
Um caminho “natural”, já que os avós, os pais, os tios andavam de terra em terra, com o seu teatro ambulante, desmontável, ou nas sociedades recreativas de norte a sul do país a fazer dramas e comédias, peças em um ato, e tinham antepassados espanhóis e italianos ligados ao mundo do espetáculo. Eunice andava pelos cinco anos quando se estreou nessa itinerância teatral, a que não achava “particular graça”, como confessava ao JL numa entrevista, em 1990.
Era adolescente quando os pais se fixaram em Lisboa e depois da sua fulgurante estreia no Nacional entrou no curso do Conservatório, que concluiu ao fim de três anos. Entretanto, no Nacional foi, com 15 anos, a mais jovem Maria de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, e trabalhou no Parque Mayer durante o verão. E entrou no seu primeiro filme, Camões, de Leitão de Barros, que lhe valeu o prémio de interpretação.
Apesar de, mais tarde, ter entrado em filmes de João Botelho ou Lauro António, que considerava boas recordações, na referida entrevista afirmava: “O cinema não tem a ver com aquilo que eu amo profundamente, que é o teatro. Resume-se, no meu caso, a uma experiência interessante.”
No auge da sua carreira no teatro, em 1951, Eunice abandonaria os palcos. Trabalhou numa fábrica de cabos elétricos, vendeu cortiça ao balcão, foi secretária. “Não conhecia outra coisa, outro mundo, queria conhecer outras pessoas”, disse-nos. “E não estou arrependida de o ter feito. Não me arrependo de nada do que fiz na vida. Devo às pessoas que entretanto conheci, às pessoas diferentes das do teatro, muito do êxito que obtive quando retomei a atividade.”
Voltaria quatro anos mais tarde para dar corpo a Joana d’Arc, um dos seus papéis mais aclamados. Mas, por razões familiares, faria outras interrupções temporárias. Casou três vezes, uma das quais com o poeta António Barahona. Teve seis filhos. “As minhas fugas do teatro — que as fiz tantas vezes —, de dois, três anos, aconteceram porque o teatro me pesa muito, me leva muito de mim, porque eu sempre dei o melhor que tinha de mim própria”, explicava numa outra entrevista ao JL, em 1982.
Se não a empolgava especialmente o cinema, sempre gostou de dizer poesia, gravou discos, fez recitais. Também resistiu algum tempo ao apelo televisivo. A Banqueira do Povo seria a sua primeira experiência, mas faria depois séries e telenovelas como Todo o Tempo do Mundo ou Olhos de Água. “Ganhou o seu público no teatro e depois alargou-o mais com a televisão”, diz-nos João Mota: “É a grande atriz do povo.”
DA COMÉDIA À TRAGÉDIA
A “divina Eunice”, chama-lhe Carlos Avilez, o encenador e diretor do Teatro Experimental de Cascais (TEC), que a dirigiu em muitos espetáculos. E as vezes em que trabalhou com ela foram os “momentos mais felizes” da sua vida teatral, confessa ao JL: “Ela fez comigo peças lindíssimas”. A começar por Fedra, em 1967, um “acontecimento”, sublinha, uma interpretação “notável”. E a terminar, em 2011, com O Comboio da Madrugada, em que era “extraordinária”. Não poupa nos adjetivos, nem nos superlativos e todos são poucos para dizer do seu “enorme talento”.
Também João Mota tem dificuldade em encontrar a expressão certa para lhe fazer justiça. Nem “bicho”, nem “monstro” do teatro, “é uma mulher de grande entrega e transparência na vida e no palco”. E “uma voz única, tanto para a comédia como para o drama.”
A sua “essência”, escreve Lídia Jorge, “é isso mesmo, uma voz que persiste ativa na memória. Uma voz que não foi, uma voz que continua a ser” (ver texto).
Tiago Rodrigues, pelo seu lado, sublinha a “avassaladora e genuína paixão pelo teatro” que a define. “Os dicionários, na palavra ‘teatro’, já deviam ter acrescentado o sinónimo Eunice”, diz o ator e encenador, que foi diretor do Nacional D. Maria II nos últimos sete anos, tendo lançado a Rede Eunice, para levar espetáculos teatrais a vários pontos do país (ver caixa).
O ator Rui Mendes diz, de igual modo, que tudo em Eunice é “sinónimo de teatro”. E Lídia Muñoz afirma: “Ela é o teatro em si.” Da comédia à tragédia, é uma atriz com uma grande “polivalência”, como salienta Diogo Infante: “Há atores que são iminentemente trágicos, outros cómicos, dramáticos, e vivem até com esse ónus toda a carreira, Eunice vai de um registo a outro, com igual mestria, e isso define-a como intérprete.”
ENTREGA ÀS PERSONAGENS
Tal como o facto de ser uma atriz que se “põe mesmo nos pés da personagem”, faz notar Ana Luísa Guimarães, que encenou Dúvida, de John Patrick Shanley, em que Eunice contracenava com Diogo Infante, em 2007, no Teatro Maria Matos, em Lisboa. “Havia na peça uma grande discussão, muito dura, entre as personagens da Eunice e do Diogo. Era muito violenta e deixava-os a ambos bastante cansados. E houve um dia em que a Eunice me disse: ‘Ana, vamos parar aqui’ e sentou-se”, lembra a encenadora. “Peguei-lhe na mão e vi que ela estava a tremer por todo o lado. Ela confirmou-me que estava com o coração a bater muito. Percebi que tinha a ver com a intensidade que punha na cena. Há atores que funcionam de outra maneira, mas a Eunice sente mesmo aquilo que a personagem sente.”
Nessa altura, a atriz contou que numa novela havia também um momento de grande tensão, a sua personagem fazia um eletrocardiograma e verificou-se que havia de facto alterações, porque se emocionou realmente: “Essa capacidade de entrega à personagem, de viver o que ela está a viver, é extraordinária. E é realmente muito comovente e bonita a sua entrega à peça, ao ator, à encenação, à contracena”.
Talvez por essa entrega, com Eunice, a atriz desaparece sob a vida da personagem, salienta Rui Mendes. “Durante anos tentei perceber o que é que separa um bom ator de um extraordinário ator. Com a Eunice acabei por descobrir”, afirma. “Com ela acontece que, ao fim de poucos segundos, deixamos de ver a atriz e só vemos a personagem que verdadeiramente está em cena e que, por coincidência magnífica, é através dela que nos é dado admirar.”
MOMENTOS ÚNICOS
Das muitas dezenas de personagens a que deu vida e peças que fez, memoráveis quase todas, Eunice elege duas sem hesitações: Mãe Coragem e os seus Filhos, de Brecht, encenada por João Lourenço, em 1986, e Zerlina, a partir de Herman Broch, com encenação de João Perry, em 1988: “Pelo prazer que me deram”, explica. “E isso é muito importante para um profissional.”
Um “momento único”, considera o encenador João Lourenço, sobre Eunice em Mãe Coragem, que dirigiu: “Ela entrava a puxar a carroça e todos nós sentíamos que era o próprio teatro que estava a entrar em palco. Era pura magia”.
Para Carlos Pimenta foi um “privilégio” ter contracenado com ela em Zerlina, onde pôde aferir a sua “excecional capacidade de se focar no trabalho”. “Aconteceu um episódio que acho muito significativo. O cenário do Pedro Calapez não tinha escapatória e portanto nós tínhamos que entrar em palco antes do público. Ficávamos ali os dois, às vezes mais de 20 minutos, a ouvir aquele burburinho das pessoas a entrarem na sala”, lembra. “Ela fazia a sua concentração, tinha os seus rituais, porque não era atriz de ir da rua para o palco, e disse-me muitas vezes que não sabia se conseguiria entrar em cena. Eu entrava primeiro, deitava-me numa otomana, de costas para o sítio por onde ela surgia e sentia-o porque havia um movimento da luz. Quando se atrasava um segundo, eu ficava em pânico. Claro que Eunice entrou sempre, mas o facto de o dizer revelava o seu profundo respeito pelo público e o receio de não corresponder às expectativas, apesar de ser a enorme atriz que é.”
Não era a “responsabilidade de ser a maior atriz portuguesa”, salienta ainda Pimenta, que a fazia recear, mas “a de fazer bem o seu trabalho em cada espetáculo, perante as novas pessoas que assistiam”. “Isso mostra também a exigência e o esforço que se impunha”, diz. “Cada espetáculo é para ela uma estreia.”
A própria Eunice o reconhecia, numa entrevista ao JL em 1984: “Isto é tudo muito estranho, isto de ser atriz. Durante meses, trabalhamos aplicadamente num papel, numa peça. E depois, um dia, encontramo-nos perante nós próprios a perguntar: mas porquê isto tudo, porquê esta angústia, esta insegurança? Porquê viver assim, estar-se oprimido tantas vezes, sempre que se trata de enfrentar o público?”. E acrescentava: “No fundo, sinto que tenho que estar um pouco apanhada por uma personagem ou por um texto para que a coisa resulte. O que mais me aflige é sentir que não estou suficientemente apanhada. Não sei. Acho que ninguém sabe, não é?”.
RECONHECIMENTO E CUMPLICIDADES
Depois de Lisboa e Porto, Zerlina foi apresentada em vários sítios do país e também no Brasil, onde Eunice teve como anfitriã Fernanda Montenegro, como lembra Carlos Pimenta: “Reconhecia-se o grande prestígio que tinha no meio teatral brasileiro. Era a maior atriz brasileira que recebia a maior atriz portuguesa.”
No final dos anos 60, Avilez também fez uma digressão com Eunice, pelo continente africano: “Íamos por 15 dias, com a Fedra, e ficámos dez meses, tendo ela a generosidade de fazer várias peças connosco. Foi mais um reconhecimento da simplicidade e do talento espantoso dessa mulher.”
Mais recentemente, com A Dúvida, Eunice fez igualmente uma digressão pelo país, sempre com uma calorosa receção do público. “Esse foi um momento de grande cumplicidade, porque além de termos sido muito bem recebidos em todos os sítios onde fomos com o espetáculo, fizemos uma digressão gastronómica”, recorda Diogo Infante. “Porque ela é muito petisqueira, o que proporcionou momentos muito divertidos.”
De resto, é sempre muito prazeroso “trabalhar com alguém como Eunice”, segundo o ator e encenador. “Além do seu talento e experiência, ela percebe o que se pretende, quase só num olhar, num gesto, e devolve em dobro”, adianta. “Lembro-me que quando isso acontecia nos ensaios d’O Ano do Pensamento Mágico, de Joan Didion, o monólogo em que a dirigi no Nacional, eu me ajoelhava, às vezes, a agradecer-lhe essa generosidade e ela ria. É realmente muito especial trabalhar com Eunice.”
A cumplicidade com Diogo Infante, então diretor do TNDMII, no processo de criação desse espetáculo, que falava do amor, da perda, da morte, ficou, de resto, registada, na já referida entrevista ao JL, em 2009, por altura da estreia. A artista, então com 81 anos, afirmava: “Tenho medo da morte, evidentemente. Mas não muito. Não me debruço assim tanto sobre mim própria, mas antes sobre os outros.”
O LONGO ADEUS
Aos 93 anos, Eunice Muñoz voltou de novo a pisar o palco, em A Margem do Tempo, que estreou em maio, no auditório com o seu nome, em Oeiras. Esteve afastada mais de uma década, na sequência de uma queda, quando estava a fazer O Comboio da Madrugada, e de posteriores problemas com as cordas vocais. Mas está de regresso para a despedida, partilhando a cena com a neta, Lídia Muñoz. “É muito especial, principalmente por ela que é uma esplêndida atriz”, diz Eunice. “Deixo-lhe a minha personagem, porque sei que ela a vai tratar muito bem, vai ser uma segunda Eunice.” A neta agradece a generosidade da avó, mas recusa tal responsabilidade: “Tenho muita sorte de estar com ela e aprender com ela, mas nunca vai existir ninguém como a Eunice. Porque não é só uma atriz, mas outra coisa que não se explica.”
Comprovou-o nesta “desafiante” criação: “As pessoas podem ver o resultado final, que é muito bom, mas o processo foi muito melhor, porque ela todos os dias experimenta coisas diferentes e são todas boas. Já tinha trabalhado com ela, há uns anos, num outro espetáculo, e agora voltei a ver essa forma muito especial de trabalhar”.
Lídia, de resto, acentua o grande significado de A Margem do Tempo, que tem encenação de Sérgio Moura Afonso e música de Nuno Feist. “Não só tenho a sorte de estar a trabalhar neste tempo, como estou a fazer o último espetáculo da minha avó”, salienta ainda. “ Ela é a maior atriz do mundo e tenho o privilégio de participar neste momento super emocionante de estar com ela no mesmo palco.”
A Margem do Tempo já se apresentou em vários locais do país, numa digressão com “salas sempre cheias, a esgotarem em poucas horas”: “Não conseguíamos chegar a toda agente e ela fica sempre com muita pena.” Em janeiro, retomar-se-á a digressão, para o longo adeus de Eunice.