Quando chegava a Lygia Fagundes Telles, a palavra passava como se uma prece fosse partilhada e a multidão incrédula movia-se para a ver. A figura elegante e frágil era de um sorriso imenso e havia certa luminosidade, como se diz das personagens encantadas dos filmes. Alguma coisa produzia uma fantasia, a quase irreal aparição que só pode ser de quem já mais pertence à grande mitologia do mundo, e não ao atrito da vida. A escritora perfeita era só amada, porque em todas as pessoas estava inscrita sua obra enquanto construtora de nossa própria identidade, uma obra onde todos estamos filiados, comprometidos através do quanto moldou nosso modo de gostar de histórias, de dizer em português, de ser gente.
Ela cumprimentava numa gratidão sincera. Saía quase nunca porque se adoentava e a idade mandava ter prudência, mas dizia obrigado mil vezes porque todas as pessoas lhe declaravam amores e comoviam-se. Era muito especial que quem inventara a Ciranda de Pedra pudesse ainda falar, ser testemunha gigante da gigante que era. E ela repetia sua gratidão como se tivesse visto de perto uma mulher magnífica sem aceitar convencer-se inteiramente de ser ela essa mulher magnífica. Eu disse isso. Que ela era tão maior do que se permitia conceber. Ela era a escritora perfeita. Tomou as minhas mãos como quem recolhia um copo de água fresca. Quer vista a partir dos livros, quer vista diretamente no olhar, Lygia Fagundes Telles era pura limpidez. Jamais esquecerei isso.
Para mim, é a autora das casas, de como as pessoas se apaixonam e de como sonham ou sofrem em seus quartos e salas, como crescem as crianças rodeadas de retratos sobre os móveis, as toalhas bordadas nas mesas, as refeições cheias de decoro, as janelas abertas de onde se escutam conversas que vão no passeio, na rua que é da vizinhança e de todos os boatos e problemas possíveis. É a autora das personagens sensíveis e suas abstrações, momentos de loucura ou de insondável, algo que não podemos dominar, não se sabe explicar mas nos agride ou assusta, nos enternece ou fascina. Para quem a lê, pessoas são estudos e tendências, são aproximações por vezes cheias de vontade mas também absolutamente à deriva, mercê das circunstâncias, como se definidas por um destino inelutável que justifica livros e o sofrimento sincero do leitor. É sempre pelo exercício da empatia. Lygia Fagundes Telles experimenta a empatia. Por isso, o primeiro efeito de a ler é amá-la.
Julgo que comecei a ler seus livros na juventude, depois das aventuras adolescentes que me demoraram um tempo nos livros de Enid Blyton. Alguém me disse que as ansiedades pueris das meninas de Blyton podiam pressentir-se nas mulheres de Lygia, como se a minha educação sentimental ficasse cuidada se maturasse as leituras desta forma. E eu consegui alguma edição da Livros do Brasil e mal comecei fiquei adulto. As meninas de Blyton não podiam nada comparadas com as mulheres de Lygia. Estas eram numa frequência intensa, porque já não havia senão amor para resolver, a máquina sempre falha da família, as viagens que terminam ou adiam relações, a sobrevivência e o decoro. Já nada parecia a brincar ou sanável com um lanche de bons scones. Lembro que as primeiras leituras da obra da escritora brasileira me trouxeram a convicção de que me eram mostradas e explicadas as famílias. Estava exposto às famílias e os véus do texto não me escondiam nada, apenas atiçavam e propunham um desafio que eu queria superar.
Clarice Lispector apelava para que Lygia não sorrisse no momento de lhe fazerem uma fotografia. Sorrindo, não seriam levadas a sério pelos homens dominando a cena literária. Clarice está invariavelmente convicta dessa necessidade, vista numa infinidade de retratos severos, sem trégua. Contudo, Lygia, que jamais representará uma mulher submissa, rendida ou simplesmente fácil, permitiu sua doçura e tantas vezes a vemos como naquela retribuição de carinho, uma gratidão que eu vejo como segurança. Ela entendeu que gostar do mundo, gostar dos outros, não diminuía em nada sua obra. Muito ao contrário. Comprovava sua genuinidade. Essa busca honesta por vislumbrar respostas novas, palavras novas, ideias novas que pudessem ajudar, fazer mais por todos, alindar que coisa é essa de se ser pessoa e haver sociedade. O sorriso de Lygia nos retratos é um triunfo. É um tremendo triunfo.