Digamos que o cenário do confronto entre a Europa, os Estados Unidos e a Rússia, a propósito da Ucrânia, nos coloca na sequência de vários aspetos que marcam a situação atual:
1. A sequência da “Guerra Fria”, que terminou há 30 anos, com a vitória das democracias e de algumas ditaduras ocidentais contra a ditadura da URSS e o domínio que esta tinha sobre países da Europa de Leste e dos Balcãs;
2. A sequência da implosão do Pacto de Varsóvia, a que correspondeu uma contraditória expansão geográfica da Nato até às fronteiras da Federação Russa, o que eriçou as relações e ressuscitou a existência dos dois blocos políticos e militares;
3. O surgimento de uma ditadura orgânico-burocrática sob o comando aparentemente único de Putin, que manifesta intenções de se expandir (diga-se anexar) por regiões (ou países?) que pertenceram à ex-URSS, o que por sua vez tem três consequências:
3.1. Considerar-se Putin como uma ameaça por não se saber até onde vão as suas ambiciosas exigências, o que serve de justificação para o auxílio com armamento, aos países da vizinhança, por parte da Nato;
3.2. Levar a que os países que se tornaram independentes com a implosão soviética duvidem da sua segurança fora da Nato, logo, queiram aderir-lhe; a adesão à União Europeia também se traduz na independência económica;
3.3. Levar a que a conflituosa situação externa seja aproveitada para Putin responder à histórica exigência de todas as ditaduras: apresentar internamente a existência de um inimigo real ou fictício.
4. A histórica relação da Ucrânia com a Rússia. Pertencente durante séculos ao Império Russo, a Ucrânia é partilhada por populações distintas, mas com afinidades, umas falantes de russo outras de ucraniano, maioritariamente localizadas em diferentes espaços do território (que o rio Dniepre assinala). Porém, “não há uma família russa que não tenha um ucraniano ou um amigo, como não há uma família ucraniana que não tenha um russo”, como disse a historiadora Hélène d’Encausse, especialista da Rússia, numa entrevista à Le Point.
Putin tem revelado seguir uma estratégia que, como é obvio, explora o sucesso das operações que conseguiu. Anexou a Crimeia há oito anos e as reações foram nulas por parte dos países ocidentais, não passando de censuras, na base dos Acordos de Mintz – sobre os quais, pelo dito, há interpretações distintas de Kiev e Moscovo, na escondida convicção de que a península pertencia historicamente à Rússia. Todavia, também já houve na Ucrânia uma tentativa de proibição da língua russa – facto que fez eclodir preferências pela velha hegemonia moscovita.
Era tempo de Putin convencer o mundo que “libertaria” Donetsk e Luganzk, dar a entender que não iria além de Donbass e passar à invasão total da Ucrânia. Justificou-se que apoiava países que querem a sua independência e, agora, que quer impor um estatuto neutral, desmilitarizado e “acabar com o governo nazi” na Ucrânia. Na verdade, quer que fiquem todos sob a hegemonia da Rússia. Comportamento que incita especulações sobre a sua saúde mental.
Perante a guerra aberta contra a Ucrânia, as potências ocidentais, nomeadamente os EUA, partem para a ação diplomática conjugada com sanções económicas à Rússia e alguns dos seus dirigentes. O papel rotineiro da diplomacia consiste, como se sabe, em arrefecer os problemas e aventar soluções. Nesta fase, Putin ganha inesperada ascendência. Desde logo pelo estilo que impôs e pelas abébias que os líderes ocidentais lhe concederam. O Presidente americano, Joe Biden, anunciou dias antes que a invasão da Ucrânia pela Rússia começava “numa certa quarta feira” (sem dizer a hora, o que constituiu uma imprecisão que não existia na “guerra do Solnado”). Putin traduzia a cordialidade institucional devida aos chefes de governo, que iam falar-lhe a Moscovo, sentando-os numa mesa a seis metros de distância, sem nunca se ver o costumeiro e, por vezes fútil, aperto de mão. A impressão era que Putin gozava com os seus importantes confrades europeus.
Mas, ponto mais importante da questão. A Ucrânia não faz parte da NATO, portanto, o célebre artigo 5º. não se aplica, ou seja, não há resposta militar à invasão da Ucrânia. Todos têm medo de uma guerra que descambe no ambiente nuclear. Ao Ocidente só resta a prudência das sanções, de início anunciadas, de caráter económico e político. Aliás, haveria dúvidas sobre a capacidade ocidental de mobilizar soldados para defender a independência da Ucrânia, até uma dada fase. A televisão a cores, mostrando os refugiados e dando nota da coragem do “David contra Golias”, pode ter alterado ligeiramente esta situação. Já há voluntários internacionais, a fazer lembrar a Brigada Internacional da Guerra Civil de Espanha.
No conjunto das retaliações económicas e financeiras tomadas pela Europa ficou de fora a questão dos combustíveis. A Europa é dependente da Rússia. A Rússia vive da exportação de petróleo e gás. Existem 2.500 quilómetros de tubagens para este efeito, diretamente à Alemanha, altamente dependente desses combustíveis. Pode pensar-se que nunca mais vão ser utilizados, embora tal tenha sido incluído pelo chanceler Olaf Scholz nas sanções? Quem perde mais com a suspensão do gasoduto Nort Stream 2? E porque não o oleoduto Nort Stream 1? O acordo assinado com a Rússia sobre o gasoduto prevê retaliações? Putin já respondeu que a Rússia cumpre os contratos. Os que lhe interessam, diremos nós.
A Rússia encontrará comprador na China, conforme acordo de fornecimento de gás já assinado há anos, também através de um gasoduto que só estará pronto em 2026. Ao que parece, o recente entendimento entre ambos, sob o ponto de vista da China, está mais na razão direta do que isso signifique de inconveniência económica para o Ocidente do que para o interesse próprio. Sendo a China o potencial rival económico dos EUA, a aproximação referida não é favorável para estes nem para quem considere que a China não tem o direito de vir a ter a importância a que o número de chineses faz jus. Os Estados Unidos ainda não compreenderam que teve maiores efeitos no mundo “a adesão da China à OMC, Organização Mundial do Comércio, do que o atentado às Torres Gémeas”.
Por outro lado, a hegemonia americana na NATO imprime-lhe uma postura igualmente criticável. Na linguagem, pensa que ainda vive no mundo unipolar pós-Guerra Fria. Na ação é mais prudente. Mas não deixa de oscilar entre o excesso, contra os fracos, como foi, entre muitos exemplos, o atentado contra o general iraniano Qasem Suleimani, em visita ao Iraque, e a cautela, contra os fortes, como está a mostrar agora em relação à guerra russa/ucraniana.
O teste à política de guerra não é como ela começa mas como ela acaba. Nesta linha, só Putin se tem pronunciado com várias ameaças e uma prática: a ameaça com o nuclear, enquanto vai destruindo um país. Parece que enfrenta contestação interna por boa parte da população russa, na parte ucraniana existe um elevado moral de resistência e de combate. As forças russas têm denunciado falhas operacionais. Mas a tática russa não é de forçar confrontos diretos. Com superioridade militar, num terreno plano que valoriza a observação aérea, vai cercando cidades e destruindo instalações de serviços essenciais à população, com flagelações para provocar sacrifícios e desânimo da população e, em consequência, a rendição do governo. Se se seguem ações dispersas de guerrilha, é uma hipótese que pode ser avançada, dado o número de alistamentos de civis que se tem verificado. A contestação interna pode vir a ocorrer, também, contra o “governo fantoche” que vier a ser instalado. Enfim, a Rússia pode ganhar a guerra, mas ganha também muitos problemas. As sanções vão-lhe causar danos difíceis de superar por um país isolado internacionalmente.
A Europa e os Estados Unidos deveriam dirigir a sua estratégia para o descrédito interno de Putin. A população russa é maioritariamente avessa a uma guerra com a Ucrânia (67%, segundo estudo efetuado antes da invasão). E a população ucraniana pensou que a implosão do sovietismo desencadearia uma aproximação à e da Europa. A Europa deveria pensar que a sua relação com a Rússia nem sempre coincide com os interesses norte-americanos e que a Europa também não se constrói totalmente sem a parte europeia da Rússia, país euro-asiático. Cremos que este é o melhor conselho que a geopolítica pode fornecer a todos, lembrando ao Ocidente que a Estratégia exige uma paciência oriental.