Senti sempre uma necessidade íntima de reclusão. Algo que pode ser visto como timidez mas que passa pelo regresso a um silêncio tão solitário quanto fundador, espaço mental de onde o essencial me parece revelar-se. Por exagero ou poesia, os que se mandam embora são-me parentes de uma condição que se torna mais do que circunstancial. Torna-se inevitável para o exercício do extremo de nós. O alcance de nossa mais intensa identidade.
A criança de Lauro António, na sua adaptação de Manhã Submersa, está como angustiante espelho de alguém que me imaginei e não pude deixar de mão. O que me comoveu não tem fim e o regresso àquele filme tem sido constante e enternecedor. Em algumas situações, perante a vastidão do cinema do mundo, escolhi Manhã Submersa como o filme da minha vida. Tantos outros se inscreveram na minha memória, tantos me inspiraram, me atormentaram, me obrigaram a avançar. Mas este diz respeito a uma comunhão estranha, algo inexplicável, que passa por me encontrar em detalhes como se em detalhes tivesse sido capturado em rigor.
O Lauro António sabia-o. Falámos disso por diversas ocasiōes. Convidou-me para jurado do festival que dirigia, convidou-me para a tertúlia que animava com entusiasmo, e por anos, no café de sua casa, convidou-me para debater o filme num evento em que o homenageavam por sua carreira e por sua idade. Em todos os encontros havia essa perplexa dádiva de ler meus livros. O Lauro António lia compulsivamente. Acumulava livros e lia-os urgente. Tinha pelos escritores um respeito e fascínio claro.
Depois, falava do seu pai, Lauro Corado, que pintava. Fizera uma exposição das suas pinturas na Casa das Artes de Famalicão e debatia os retratos, o modo como eram o olhar de um tempo, da idade, que perpetuavam aquilo que os filmes também buscavam impedir que acabasse. Era tudo para que não houvesse morte. A arte toda para que não houvesse morte.
Lembro-me de morrer o Camacho Costa e ele procurar alguma coisa para dizer e não conseguia mais do que afirmar que eram amigos. Como se a amizade tornasse impossível qualquer explicação ou qualquer morte. Tínhamos estado com o Camacho Costa, que adoecia num sorriso generoso, e não posso esquecer como o Lauro António repetia aquilo da amizade para se segurar num resto de bravura que não conseguia já ser um sorriso mas queria respeitar a altura do amigo que sorrira, sim, até ao fim.
Em que porcaria já vai este ano, colhendo meus heróis, meus amigos. Que obscena forma de haver vida quando a morte se torna tão frequente, tão rente.
Abrira em maio do ano passado a Casa das Imagens Lauro António, em Setúbal, e uma alegria imensa se conquistara por fim. Era onde se guardariam parte dos seus arquivos, imensos arquivos que ainda pude ver, e o Lauro António imaginava um modo de dinamizar o espaço e o universo do cinema a que dizia respeito. Mas a pandemia adiara tudo, e seguia adiando e fechando, impondo cautelas que frustraram constantemente a efetiva vivência daquela Casa.
Em junho de 2020, por um qualquer acaso e sempre pela maravilha, quieto naquele susto com o vírus, inventei cartazes para alguns dos filmes da minha vida e, por piada, enviei à Maria Eduarda para que se risse comigo e recebessem todos um abraço. Um pouco tempo mais tarde, o Lauro inventou de expor os meus cartazes falsos em Setúbal e a pandemia foi agendando e retirando de agenda a ideia que agora, finalmente, ia mesmo ver o dia. Só é pena que não tenha acontecido antes porque isso me teria levado a Setúbal para o ver e conversar, como queria, sobre o seu filme, que eu diria “nosso”, de tanta gente. É pena que não tenha sido a tempo de eu voltar ali e celebrar o seu trabalho e agradecer.
Por um instante, a manhã, o dia, o mundo inteiro se deixou submerso. A tristeza só pode ser cuidada agora pelo orgulho de havermos encontrado um artista, um cinéfilo, assim. Que nos apontou caminhos e nos observou com tanto empenho e delicadeza. A tristeza só pode ser cuidada pelo brio de haver a Maria Eduarda e o Frederico erguidos sobre a imensa e bela experiência de mover a memória do Lauro António. Nesse movimento, o país dos que se fascinam está todo unido. Todo inscrito.