Estou apaixonado por Cristo e, como em todas as verdadeiras paixões, quero nada saber do que dizem os outros acerca do assunto, o que lhes parece de despudorado, de alarve ou invulgar. Todas as paixōes são uma pouca saúde acerca da figura amada. Somos incólumes ao que há de erro, e se nos alcança, se é para depois de nossos sonhos, nossas forças, nossa inteligência, nossa beleza, limpidez, honra, mérito, nossa idade ou nosso tempo. Se está viva, a figura que nos ocupa. Por quantas pessoas mortas me apaixonei, pergunto agora. Quantas vezes por Thomas Tallis ou Pergolesi, Bach, William Blake, Katheleen Ferrier, Callas, Corelli, Sumera, Vergílio Ferreira, Daniel Faria.
Tenho pouca paciência agora para me acanhar com tão importante sentimento. Estou como os adolescentes que querem beijar na rua, dar a mão, aparecer de corpo fosforescente abrindo um clarão na escuridão em volta. Levo minhas dúvidas para a alegria dos dias, não tenho medo de duvidar, tenho medo de não estar mais apaixonado. Não sentir paixão, encontrar-me no mundo vazio dessa inexplicável força que justifica tudo, isso seria de temer. Mas eu leio Cristo na ternura da humanidade. Como está por símbolo de toda a esperança e bastaria isso para me convencer. Um Cristo que é o cúmulo de séculos de auscultação do divino, uma auscultação do pressentimento com que tantos de nós lidamos sem jamais poder definir. Bastaria que Cristo fosse essa obra colectiva, pessoa sagrada que as pessoas todas fizeram, incansáveis, como se cada uma, pela eternidade, cinzelasse a pedra de Bretel Thorvaldsen e, exactamente por isso, ela fosse perfeita.
É sem pulmões que se está diante do Cristo de Bertel Thorvaldsen na Catedral de Nossa Senhora em Copenhaga. Já pouco se respira diante da réplica no seu museu, mas a entrada na Catedral afunda-nos nesse lado de lá do mundo, uma outra parte do caminho que não se pisa do mesmo modo, não se normaliza no mesmo mapa. É de outra natureza. Sob as mãos perfeitas daquele gigante, pequenos e baralhados, podemos apenas entender o fascínio, tudo o mais é sem palavra. A apneia não nos mata. Muito ao contrário. É pura prova de vida.
Sentam-se por ali os que choram. Bem os vi, uns poucos, a chegar e a tombarem pelos bancos compridos no mesmo deslumbre. Choram. Certamente metidos na mesma paixão, sem quererem saber das convenções mais populares, atentos também ao jeito de sobrar algo de tantos séculos. Ali chorámos todos, lentamente, sem som, a ver como se ergue na pedra uma ideia de Deus diante de nós, a nossa ideia de Deus, tão humana e, ao mesmo tempo, tão rigorosa quanto seria uma árvore com seus frutos frescos na estação devida.
Pode ser que afinal aquela pedra respire. Pode ser que nos use os pulmões, alimentada por nossos órgãos todos para satisfazer seu gigantismo. Uma pedra apenas quieta para os desatentos ou incautos. Eu não sei como um escultor pode fazer algo assim porque não acredito que se possa fazer algo assim. É a paixão que cumpre o destino da obra, como cumpre o destino de um Deus. Não se faz a paixão, sucumbe-se a ela exactamente pelo mesmo mistério com que os deuses haverão de existir. A paixão e Deus são da mesma natureza. Haverão de dialogar incessantemente, sem nunca perderem a palavra, porque jamais dirão tudo. São a voz infinita. A palavra extensa pela eternidade.
Os que ali se sentaram, obviamente procuravam dizer alguma coisa que não se pode dizer porque não tem idioma, não sobe à boca, não tem precedente senão na impressão estranha de ter sido necessário ali chegar. Silentes mas nem por isso imóveis, porque estar sem pulmões traz um frenesi peculiar que freme no corpo todo, somos a pluma pesada que, assim mesmo, ala. A carne ala. Não é verdade que seja armadilha, um engodo da encarnação.
Que boa paixão esta que não tem ciúme e se celebra quando alguém mais a partilha. Talvez seja uma paixão também pelas pessoas todas, essas que mantêm a esperança e a querem simbolizar de alguma maneira. Nem que num delírio. Na imagem depurada de alguém que, talvez apenas louco, por aqui andou a sonhar primeiro. A sonhar muito antes de nós. Para mim, serve, sim. Serve-me para todas as tarefas do coração.