Mergulhou em vários arquivos e voltou a verificar as fontes para compor o puzzle completo de uma das mais importantes imposturas da História de Portugal. Em 1598, em Veneza, um homem apresentou-se como o Rei D. Sebastião, regressado, passados 20 anos, do norte de África, vivo e pronto para reassumir os destinos de Portugal. Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião, uma edição da Tinta-da-China, reconstitui esta farsa trágica que teve enorme repercussão na cultura portuguesa, podendo ser entendida como um dos pontos nevrálgicos da origem do Sebastianismo. O JL antecipa a chegada do livro às livrarias entrevistando o seu autor, prof. da Universidade de Rennes
Quando chegou ao Arquivo de Simancas, em Espanha, onde se concentra muita documentação sobre a história da Península Ibérica dos séculos XV e XVI (e não só), disse que queria consultar a secção dedicada a D. Sebastião. Pediram-lhe o nome e a nacionalidade, o que culminou com um sonoro: Ah… “Se é português, é óbvio que está a trabalhar sobre D. Sebastião”, disseram-lhe entre sorrisos. E a conclusão, sedimentada em anos de atendimento a historiadores e curiosos, não é de todo descabida. As lendas e os mitos que envolvem a morte de D. Sebastião no norte de África, em 1578, e a longa prevalência do Sebastianismo na nossa cultura têm sido alvo de inúmeros estudos, livros e… teorias da conspiração. Algumas nasceram há 400 anos e ainda têm eco em diversos aspetos da cultura portuguesa, embora já sem a força que tiveram entre o final do século XIX e o Estado Novo.
Foi nesse admirável mundo de equívocos e rumores que André Belo decidiu mergulhar. Nascido em Lisboa, em 1971, onde se licenciou e defendeu a tese de mestrado, tem trabalhado sobre as notícias manuscritas em Portugal no século XVIII. A Gazeta de Lisboa foi, aliás, o tema da sua tese de doutoramento, defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Desde então mantém-se interessado na circulação da informação e dos rumores em séculos mais recuados, o que, talvez inevitavelmente, o conduziu à intrincada teia de factos e contra-factos ligados ao destino de D. Sebastião e à sua sobrevida.
Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião é o resultado de dez anos de investigação em torno de uma das figuras míticas da cultura portuguesa e do mais importante falso Dom Sebastião que surgiu nas décadas seguintes à sua morte. Falamos de Marco Tullio Catizone, protagonista de uma impostura que teve ecos por toda a Europa, entre 1598 e 1603. Não falava português, mas num tempo em que a distância condicionava a circulação da informação (tal como hoje a velocidade também parece condicioná-la) talvez esse fosse um aspeto em que poucos quisessem reparar. Morreu às mãos das autoridades espanholas, que também reinavam em Portugal desde a crise dinástica provocada pelo desastre de Alcácer-Quibir, em Marrocos, mas o Sebastianismo encontrou boas pernas para andar, muito apoiado pelo labor panfletário de João de Castro e frei José Teixeira, partidários de D. António, Prior do Crato, e há muito exilados em França.
Tudo isto nos conta e reconta André Belo, verificando e aprofundando muita informação, num livro admirável que, sem descurar o rigor que se espera de um académico, se lê como um romance que nos cativa e em que não se acredita ser baseado em factos reais.
Jornal de Letras: Como se interessou pelo Sebastianismo?
André Belo: A Universidade de Rennes, onde sou professor, organizou um colóquio dedicado ao tema das “Falhas da Memória”. Abordava muitos períodos e geografias, da Guerra Civil Espanhola à China. O foco era essencialmente os problemas de memória e da sua transmissão na cultura de cada país. Quando fui convidado a participar, pensei no que poderia tratar e cheguei rapidamente à questão da morte de D. Sebastião, da identificação do seu corpo e da posterior criação do Sebastianismo.
A associação entre “Falhas da Memória” e Sebastianismo foi automática?
Foi. Na altura já sabia que o Sebastianismo era um problema de integração na memória de um acontecimento catastrófico. O que eu não sabia, e julgo que a maior parte dos portugueses também desconhece, é que as fontes da época são extremamente claras na descrição do reconhecimento do cadáver do rei a seguir à batalha por vários fidalgos e por um juiz português. Estes são dados que, para os historiadores portugueses, não deveriam colocar qualquer problema. Mas o que se vê, quer pelos testemunhos posteriores, quer pela persistência dos rumores ao longo dos tempos, incluindo na historiografia, é que isso nem sempre aconteceu.
Usando ainda o título desse congresso, no caso do Sebastianismo pode dizer-se que há uma tensão entre a “falha” e “memória”, na medida em que tem persistido uma recordação ainda que constantemente deturpada?
É verdade que o Sebastianismo criou uma memória outra em lugar da plena integração dos factos relacionados com a morte do rei na batalha. Como isso aconteceu ou foi acontecendo não é um processo nada linear, está cheio de momentos em que se redescobre (como eu redescobri…) que afinal o corpo foi claramente identificado e de outros em que prevalece a deturpação dos factos ou uma construção literária.
Que objetivos definiu para a sua investigação?
Contar a história com rigor e contribuir para uma memória mais crítica sobre esse acontecimento. Comecei pela morte do rei e acabei por me interessar pelos vários falsos reis e em particular o de Veneza, Marco Tullio Catizone, o que acabou por ser o centro da minha investigação e o que me motivou a escrever este livro. Queria contar essa história do princípio ao fim, porque não existe nenhum relato que o faça satisfatoriamente.
O que o seduziu no falso D. Sebastião de Veneza?
Foi o que teve mais impacto, incluindo a nível internacional, envolvendo uma rede de diplomatas e embaixadores. Havia quem tivesse dúvidas, quem assegurasse que não era. Fez correr muita tinta e alimentou em Portugal boatos e rumores, numa espécie de anseio sebastianista. É muito interessante ver que as notícias que circulam à escala europeia chegam a Lisboa e depois se transmitem oralmente. Essa dimensão de difusão da informação é muito surpreendente. Temos tendência a pensar o processo histórico como progressivo, mas no fundo verificamos que de uma maneira completamente diferente, por razões tecnológicas e físicas da sociedade da época, as notícias circulavam à distância, por vezes deformadas, o que hoje também acontece. O falso D. Sebastião de Veneza é ainda o que está na origem do Sebastianismo letrado, aquele que vai vingar, de João de Castro e outros. Pode dizer-se que é aqui que o Sebastianismo nasce ou pelo menos se cristaliza em torno deste episódio.
Será certamente um episódio com muitas interrogações, desde logo sobre o que move esta figura a abandonar a sua vida e a assumir um destino quase tão trágico como o de D. Sebastião.
É uma questão à qual é impossível responder. Quais as suas motivações? Ascensão social? Era tão difícil encarnar D. Sebastião, sobretudo para quem não falava português. Ao longo do livro ando um pouco à luta com essa questão e tento dar ao leitor armas para formar a sua opinião. Que há uma grande dose de inconsciência, no sentido de uma pessoa se projetar noutra figura, é sugerido no fim do livro, mas estes são também termos e conceitos de agora.
Mais fáceis de discernir são as intenções de João de Castro, frei José Teixeira e de outras figuras que estiveram por trás desta impostura…
Sim, estão claramente ligadas à oposição política em Portugal ao governo filipino que vem dos seguidores de D. António, Prior do Crato. É o último estertor desse grupo que queria chegar ao poder através da aparição de D. Sebastião, em que eles acreditaram de uma forma mais ou menos continuada, e serem eles próprios protagonistas de uma revolução dinástica ou da restauração do que havia, com a consequente ascensão social.
Em todo este caso, estamos no campo das fake news, para usar uma expressão bem atual?
Fake news é uma expressão que vem do inglês e da atualidade, o que pede todo o cuidado. Mas podemos dizer que sim. É uma situação que mostra como operam os rumores e as falsas notícias. Aliás, eles estão presentes em toda a História da Humanidade. São tão antigos quanto a transmissão de informação. Nesse sentido, não há nenhuma novidade essencial hoje em dia. Não sou especialista na análise da atualidade, mas penso que talvez tenha havido uma espécie de crença (sempre um pouco arrogante) num mundo em que a informação podia ser controlada, incluindo com a ajuda da tecnologia. Até há bem pouco tempo a informação estava institucionalizada com as suas hierarquias e os seus órgãos de difusão credíveis. Mas nada disso acabou com os rumores.
Os famosos mitos urbanos?
Exato. Quando era jovem lembro-me de um rumor sobre um terramoto iminente em Lisboa. Para quem viu o filme das Doce, é incrível pensar como uma das cantoras foi alvo de um boato que teve um enorme impacto nos anos 80. Claro que nem todos os rumores são iguais e igualmente importantes ao longo da história, mas sempre existiram.
Mas será este um caso paradigmático de inversão do ónus da prova, com as autoridades oficiais da época a ter constantemente de remeter as pessoas para os factos e documentos?
Aí acho que estamos numa situação de diferença ou de alteridade. As autoridades, e hoje em dia também pode acontecer por outros motivos, deparavam-se com grandes dificuldades. Lidavam com a distância e com um grupo aguerrido, os sebastianistas, que propagavam informação em sentido contrário. Tudo isso fez com que as autoridades tivessem sentido a necessidade de verificar informação. Mas naquela época fazê-lo era efetivamente complicado. Conto o episódio de um homem que se apresentou em Nápoles vindo da Índia com uma carta para D. Filipe I (de Portugal), mas o vice-Rei não acreditou nele. E ele era mesmo quem dizia ser.
E podemos comparar o trabalho dos historiadores com o das autoridades da época? Estarão os historiadores constantemente obrigados a remeter os leitores para os factos já conhecidos?
É sempre preciso regressar às fontes, e neste caso em particular, porque se reproduziu sucessivamente a ideia de que o corpo de D. Sebastião não tinha sido encontrado. A maioria fê-lo certamente de forma inconsciente. Em parte compreende-se essa preguiça crítica, na medida em que verificar tudo é um trabalho que nos impede de avançar, escrever, fazer novas investigações. É preciso confiar no que já foi estudado, mas ao mesmo tempo ativar o espírito crítico. Como diz uma fórmula de Lucette Valensi que cito no livro, informação não é sinónimo de conhecimento. É preciso recolhê-la e saber interpretá-la. Se não o fazemos, aí sim, parece que estamos sempre a recomeçar.
Há ainda, relativo a este tempo e a muitos outros, várias teorias da conspiração. E ainda recentemente o livro de um jornalista, José Gomes Ferreira, denunciava um hipotético complô de todos os historiadores para esconder a verdade oficial dos portugueses…
O Sebastianismo pertence a um tipo de raciocínio que remete para a teoria da conspiração. Está presente no pensamento de João de Castro e frei José Teixeira, embora à época não se usasse essa expressão. E como se vê esse espírito conspirativo mantém-se atual. No exemplo que me está a dar e em outros, é importante que os historiadores intervenham e demonstrem a falsidade das obras que se baseiam em teorias da conspiração. A insinuação de que os historiadores estão ao serviço de interesses ocultos é falsa e insultuosa.
Os Painéis de S. Vicente, um dos ícones da arte portuguesa, também são alvo de muita especulação e infinitas teorias. O período da expansão portuguesa é terreno fértil para invenções e mitos?
É claramente um período muito importante para a identidade portuguesa, ligado a um nacionalismo que comemorou os feitos do passado com uma visão acrítica. O que interessava era glorificar e celebrar, não tanto entender a complexidade do passado. Há também a teoria segundo a qual Colombo era português, o que já foi desmentido em diversos estudos. É de facto uma época em que as pessoas investem muito, apesar de não ser a única. Os historiadores têm tentado refutar essas teorias da conspiração. Quem as cria são por norma pessoas fora da academia, sem publicações relevantes, que se dirigem diretamente ao público, por vezes com grande visibilidade e sem contraditório.
O que explica a longevidade do Sebastianismo? Todos os países precisam dos seus mitos?
Sim, a construção nacionalista precisa desses mitos e lendas para se sustentar. A longevidade específica do Sebastianismo explica-se pelo grande trabalho de construção por parte dos escritores e dos intelectuais do final do século XIX e da centúria seguinte. Até ao 25 de Abril de 1974, o investimento no mito sebastianista fez parte do material ao qual os escritores foram buscar inspiração, alimentando uma certa visão do passado decadentista, regeneradora e messiânica. Entre todos os factos de uma história muito longa, este é seguramente um dos mais importantes.
Que impacto teve a Revolução dos Cravos no Sebastianismo?
Penso que contribuiu para que o mito se tenha esfumado, marcando uma rutura. Como ideologia, o Sebastianismo já não tem o significado de há 30, 40 anos. Mas ainda subsistem alguns estereótipos dos portugueses sobre si mesmos, ligados ao saudosismo e ao fatalismo.
Das manhãs de nevoeiro às calculadoras nos apuramentos dos campeonatos de futebol, esse sebastianismo quase anedótico ainda parece muito presente…
São vários elementos complexos que se interligam e que podem subsistir de diversas formas. Em alguns casos, há até um lado lúdico em alguns desses estereótipos ou formas de encarar cada situação. No futebol, por exemplo, Portugal já mostrou que é capaz de ganhar competições importantes [risos]. O nosso conhecido “complexo de inferioridade” é, hoje, muito menor, convivendo às vezes com algum triunfalismo. Mas mesmo em relação aos estereótipos tudo depende como cada um vê a nossa cultura, visão essa que nunca é uniforme.