“Os serões (não «na província», mas em plena capital, nas então Avenidas Novas…) são talvez aqueles momentos familiares que mais me vêm à memória, quando recordo a minha infância e depois a adolescência.
Éramos uma família muito unida. O pai, jornalista brilhante (José Sarmento), falava-nos com emoção e saudades de todas aquelas personalidades com quem tivera contacto ao longo da vida. O António José de Almeida, Presidente da República, de quem se tornara amigo e fervoroso admirador desde o primeiro dia em que tinha sido incumbido de o entrevistar. O D. Pedro II, Imperador do Brasil, que foi esperar, quando ele chegou exilado a Portugal, José Sarmento era ainda estudante do liceu, mas já trabalhava no Jornal da Manhã.
No entanto o que mais me emocionava era quando ele falava dos escritores; então eu bebia as suas palavras, porque esses eram para mim os grandes criadores dos livros que sofregamente devorava desde que aprendera a ler.
O Raul Brandão, seu colega de liceu, a quem na intimidade da sua casa na Foz do Douro, tão frequentada pelo meu pai, chamavam ternamente o Baiúlo. Esse Baiúlo, que ele viria a considerar um génio, ao acompanhar a sua obra futura, onde, dizia, se pressentiam vestígios de Dostoievsky…
Esse Baiúlo que também amava as árvores, digo eu, hoje quase em êxtase «não posso ver uma árvore sem espanto». E com que emoção eu relembrei todas essas confidências quando tive a sorte de ser uma das figuras mártires, criadas por Raul Brandão na belíssima peça O Gebo e A Sombra, que no fim do anos 50 representei no desaparecido Teatro Avenida, com o meu grande amigo Rogério Paulo.
Havia ainda as história sobre o Fialho de Almeida, o Bulhão Pato, o Gomes Leal… E quando meu pai contava que tinha colaborado com o mítico Eça de Queiroz, eu seguia ainda mais sequiosa as suas palavras, sobretudo quando ele dizia que o Eça além de brilhante e perfeccionista, sofria também do aparelho digestivo e que de manhã trabalhava sempre de pijama e roupão… Isso ensinou-me logo a considerar que os artistas são igualmente seres humanos e não personagens distanciadas dos outros homens.
Então, depois de todas estas deambulações pelo passado, eu corria às estantes à procura deste e daquele autor referido, fechava-me numa sala em silêncio absoluto o silêncio sempre foi para mim imprescindível e vivia já todos aqueles dramas e era todas aquelas personagens, mesmo não pensando sequer vir a ser actriz! Sem me dar conta, estava já a recolher material para o meu trabalho psicológico futuro. Assim fui, por exemplo, a Teresa do Amor de Perdição, antes de a ter vivido no meu primeiro filme, em 1943.
Mas nas minhas descobertas, nesses assaltos às estantes dos livros, havia outros autores que me chamavam a atenção. Foi desta maneira que me maravilhei com os Humilhados e Ofendidos, de Dostoievsky, que se tornou no meu autor preferido, por volta dos meus 13 anos (idade não muito adequada para se ler autor tão profundo!). Curiosamente, também viria a ser, no Teatro Moderno de Lisboa, a sofredora Natacha. E seguiu-se a leitura do Crime e Castigo, O Idiota e as Recordações da Casa dos Mortos, inspirado nos seus tempos de presídio, que me viria a impressionar muito mais que qualquer outro livro. Porquê? Talvez por haver aí, afinal, menos ficção: começou nessa altura o meu maior interesse pelos livros de memórias e pelas biografias.
Voltando aos serões, embora se falasse seriamente de literatura e de outras artes, o ambiente era jovial e alegre, iluminado pelas gargalhadas cristalinas da minha mãe, muito espanhola e franca, dedicada e presente. Grande mulher, depois da morte do meu pai, quando eu tinha 15 anos. Os meus irmãos, muito mais velhos do que eu, eram igualmente grandes apreciadores das artes, o António chegou também a ser actor e foi ele que me ensinou os primeiros versos que comecei a recitar, à volta dos meus seis anos.
Por vezes ouvíamos também aqueles belos discos de ópera, na velha grafonola, depois substituída pela imponente telefonia. Começou aí a minha paixão pela Rádio. Onde me estreei aos 14 anos a dizer poemas e a interpretar teatro radiofónico, justamente num programa organizado pelo meu irmão, o António Sarmento, na antiga Rádio Sonora.
Nessa altura, frequentava eu o Colégio Elias Garcia, onde tive professores a quem muito devo. Claro que o meu pai, foi muito importante nesse maravilhoso caminho. Até porque nos últimos anos da sua vida, com graves problemas de artroses nas mãos, como já não conseguia escrever as suas traduções (e dizem que foi um exímio tradutor, mesmo de peças teatrais), era a mim que pedia que fosse escrevendo, enquanto ele traduzi correntemente os textos franceses, como, por exemplo, A Vida de Cristo, de François Mauriac; O Sonho, de Zola, e até alguns livros da Condessa de Ségur…
Em 1943 aconteceu a minha estreia no Cinema, no Amor de Perdição, pela mão de António Lopes Ribeiro. Mais tarde, também ele me levaria para o Teatro. Faz agora precisamente 60 anos que me estreei no Teatro da Trindade, nos Comediantes de Lisboa, na peça de Jean Giraudoux, A Mensageira do Deuses.
Assim começou esta longuíssima carreira teatral, com passagens pelo Teatro Nacional (oito anos), onde muito aprendi com Robles Monteiro, Amélia Rey Colaço, Ribeirinho, Palmira Bastos, Pedro Lemos… Houve personagens que nunca mais esqueci: a Lianor, do Tá-mar, do Alfredo Cortez, mulher de pé descalço da Nazaré; a Belmira, do Casaco de Fogo, do jovem Romeu Correia, a Inês de Castro, do Casona, a Maria e depois a Madalena, do Frei Luís de Sousa.
Depois, no Avenida, na Companhia do Teatro de Sempre, dirigida por Gino Saviotti, aquela Enteada, dos Seis Personagens em Busca de Autor, do Pirandello, que me proporcionou o meu primeiro prémio de interpretação. E, no TNP, de novo no Trindade, com o Ribeirinho, a Lucy Crown. No princípio dos anos 60, o belo sonho realizado, que foi a Companhia do Teatro Moderno de Lisboa, com os colegas da minha geração a tentarem, como eu, novos caminhos para o Teatro, numa «sociedade artística», a que se juntaram alguns jovens também sequiosos de novas directivas.
Aí, eu tive a noção do que era abarcar com a responsabilidade de pertencer à direcção de uma Companhia de Teatro, até porque me foi atribuída a difícil tarefa de gerente da sociedade (aliás, todos exercíamos vários cargos) e foi duro, mas ensinou-me a olhar com outros olhos as dificuldades que os grupos independentes carregam nos seus ombros e nessa época ainda mais, com o peso da Censura! Mas, lutando com todas as armas, conseguimos levar à cena do Cinema Império, generosamente cedido pelo engº. José Gil, peças de Shakespeare, Dostoiewsky, Steinbeck, Adamov, Mihura, Carlos Muñiz, José Cardoso Pires e Luiz Francisco Rebello, atraindo camadas mais jovens, que ainda hoje dizem recordar os nossos espectáculos, acrescentando alguns até que foi o TML que os despertou para o Teatro.
Entretanto eu continuava a minha permanente carreira na Rádio, com o Teatro das Comédias do meu querido Álvaro Benamor, de voz linda e romântica, com a Poesia, Música e Sonho, do poeta Miguel Trigueiros e com os inúmeros folhetins radiofónicos…
Seguiu-se aquela época áurea na Casa da Comédia, dirigida pelo Osório de Castro, com as Danças da Morte, em encenações do amigo Listopad, sempre com o Augusto de Figueiredo e o Benamor. E a Alice nos Jardins do Luxemburgo. Momentos inesquecíveis. Tudo isto a par das grandes noites de Teatro, na televisão… e foram tantas as peças, que não há espaço para enumerá-las. Assim como os filmes, de que lembrarei O Princípio da Sabedoria, do Macedo, e A Mulher do Próximo, do Fonseca e Costa.
E veio o 25 de Abril, com o Brecht, proibido até então. As Espingardas da Mãe Carrar, primeiro trabalho meu, com o João Lourenço como encenador, ele que eu lembro sempre com ternura dando os primeiros passos como actor, a meu lado, na Inês de Castro! No contexto da peça, recordei bem a tensão que se vivera em nossa casa, durante a Guerra Civil de Espanha, onde a minha mãe ainda tinha alguns familiares. A ânsia dos noticiários na rádio, também depois prolongada durante a II Guerra Mundial.
Logo a seguir a este espectáculo, na Casa da Comédia, a inauguração do antigo Teatro Aberto, com outro Brecht –O Círculo de Giz Caucasiano – mais um êxito do João Lourenço, como encenador.
O Victor, com quem eu me casara em 1947, assumiu em fins de 1976, a Direcção Europeia da Organização Internacional da Aviação Civil, com sede em Paris, onde permanecemos durante seis anos. Foram tempos enriquecedores para a carreira profissional dele e que a mim me deram oportunidade de conhecer novas gentes, outras maneiras de viver, já que ao acompanhá-lo nas suas missões aos países com que trabalhava, de um e de outro lado da chamada Cortina de Ferro, pude, em plena Guerra Fria, visitar uma grande parte dos países do Leste e conhecer cidades maravilhosas como Praga, Budapeste, Leningrado ou Moscovo. Nesta última, foi com emoção que visitei uma das casas consultório (agora museu) do Anton Tchekov – o meu dramaturgo entre todos mais amado! Em Paris, a nossa casa .cava em pleno Quartier Latin, ali à Contrescarpe, entre o Jardin des Plantes e os espec-taculares Jardins do Luxemburgo. E nesses dois lindos espaços, ao ar livre, passei muitos dos meus melhores momentos, divididos entre as longas visitas aos museus da pintura da minha predilecção, incluindo o Centro Pompidou, ainda novidade e as deambulações pelas velhas ruas da capital.
Ali, em Paris, tinha finalmente o tempo todo à minha disposição. E, escrevendo, como sempre faço, parti à procura de mim. Dessa escrita nasceram, sem eu dar conta, as minhas primeiras memórias – Retrato Inacabado – que o Daniel Ribeiro, o António Rolo Duarte e por fim o José Carlos de Vasconcelos permitiram que fossem publicadas. Mas sem esquecer a poesia, dei vários recitais na Gulbenkian.
E quando regressei definitivamente a Portugal, contente por também voltar a estar com o Rui, o nosso filho, que pelos seus afazeres profissionais tinha continuado em Lisboa… esperavam-me o Listopad e o saudoso Curado Ribeiro, para realizarmos no Teatro Aberto, a Comédia à Moda Antiga, do Arbuzov, em tradução do Carlos Porto. E esperava-me o público, a quem tanto devo, que sempre me acompanhou desde os primeiros tempos na Rádio e que não me tinha esquecido, apesar do meu longo afastamento.
Depois fui também dirigida pela primeira vez, pelo meu amigo Carlos Avilez, na Virginia Woolf memorável para mim, este espectáculo.
E marcaram-me também muitas outras personagens, nessas épocas seguintes, como a Liuba, do Jardim das Cerejas, a Madalena, do Frei Luís de Sousa (mais uma vez!), a Mrs. Alving, dos Espectros, a Amanda, do Jardim Zoológico de Cristal, até a esta Margrethe, do Copenhaga, que abandonei há dias… (se é que as abandono totalmente, alguma vez!), de todas estas me ficou uma saudade e talvez alguma coisa em mim das suas diversas personalidades, que pode vir a enriquecer-me no caminho da compreensão da alma humana, E como nota final: quando representamos num palco, os nossos «serões» são partilhados com o público. Estabelece-se uma permuta de sentimentos.
E se esse público se entrega, se sabe ouvir e sentir, em comunhão com o autor e os actores, ajudados pela visão do encenador, todos saíremos mais ricos, para melhor viver a vida do dia seguinte.”
A Autobiografia de Carmen Dolores
A atriz Carmen Dolores morreu no passado dia 15 de fevereiro, aos 96 anos. Voltamos a publicar a autobiografia "Vivendo outras Vidas" , presente na edição do JL de 25 de maio de 2005, para que possa recordar a vida da atriz, através das suas próprias palavras