Em 1981 eu fazia 10 anos de idade e buscava na pequena loja do senhor Martins os cromos de futebol e via as primeiras revistas. Comprava quase nada. Gostava das capas, das cores, as pessoas das revistas pareciam guloseimas de tão coloridas e sorridentes. Aos olhos de uma criança, faziam crer que ser-se cantor ou ator dava direito a muita alegria e redobrava o brilho da pele. Aquelas pessoas famosas eram de estrela própria, viviam em permanente sol, verão contínuo.
A minha família mudara-se nesse ano para as Caxinas e a timidez e um pasmo geral criavam no meu espírito certa solidão e sonho. Era meu jeito fantasiar, nunca como quem acreditaria vir a ter uma boa vida mas como quem inventava personagens maravilhosas, outras pessoas admitidas pela sorte para terem uma boa vida. Foi quando escrevi minhas primeiras narrativas. Aventuras e muitos desastres de amor, que eu julgava acontecerem necessariamente devido à falta de dinheiro. Aos dez anos de idade, eu ainda não concebia a traição e muito menos o fim do amor.
Era por causa dos folhetins, que a minha mãe lia entre costuras e cozinhados, que eu me convencia que as histórias precisavam de muitos solteiros e solteiras e casamentos no fim, cheios de vasos de plantas em flor e cães pequeninos que davam beijos nas orelhas. Naqueles folhetins, que não me deixavam ler por serem para meninas, ia-se muito à praia e nadava-se em ondas quentes, havia um lanche e um chá ou um copo de vinho quando as moças ponderavam perder a virgindade, cheias de hesitações mas apostando tudo no amor. Às vezes, à míngua, eu passava os olhos pelas sinopses na contracapa e até nas primeiras páginas. Todos os folhetins começavam com sonhos. Alguém julgava ser impossível encontrar a mulher ou o homem perfeitos. A grande dúvida dos amantes. O desajuste mais tremendo, não se saber onde encontrar o par certo, aquele talvez único para garantir a felicidade. Os folhetins são desafios à felicidade.
Eu sei que o senhor Martins pensava que eu, a demorar nas capas das revistas, queria roubar. As crianças eram muito pobres em 1981 ou 1982, roubavam como pela fome de algum direito, uma fome feia culpa da sociedade inteira. Habituei-me a ver com as mãos nas costas, como um menino bem comportado que não mexia em nada, e espreitava para os nicos das capas que ficavam para trás das outras, a querer ler as parangonas completas. Nunca poria a mão. Em algumas tardes, tendo respondido que queria só ver, ao fim de uns segundos o senhor Martins mandava-me embora. Facilitava a ansiedade dele que eu não assombrasse as pessoas-guloseimas a brilharem doces nos papeis que vinham impressos de Lisboa. E eu ia embora convencido de que as solteiras dos folhetins eram iguais à Elizabeth Savalla ou à Sónia Braga. Os solteiros eram todos como o Tony Ramos ou o Reginaldo Faria. Falavam pausadamente e tinham sempre um sorriso malandro, um sorriso do qual desconfiávamos. Eu sentia que namorar era um bocado malandro e até perigoso. Mas nunca me passaria pela cabeça que se pudesse conspirar ou ter maldade. Achava que amar era querer e ter sorte. A sorte era querer.
Por causa de tirar fotocópias a revistas emprestadas, escolhendo as páginas que eu não queria perder, comecei a ir à papelaria Sónia, que tinha uma fotocopiadora, coisa que o senhor Martins nunca teve. Gastava uns escudos míseros e, invariavelmente tímido, habituavam-se ali os senhores a ver-me como um cachopo esquisito fascinado por guardar pistas para histórias. Eu colecionava, nos meus cadernos de recortes, pessoas que serviam à imaginação. Ainda sem saber que desempenho teria a imaginação na salvação da minha vida.
Havia um funcionário que me entendia um pouco, acredito agora. E me apontava para as capas, falava-me do Michael Jackson e da Madonna, do Elvis Presley e dos Kajagoogoo. Achávamos os dois que o Boy George era uma menina de verdade disfarçada de ser um bocadinho rapaz. Esse funcionário era um tipo mais novo que, muitos anos mais tarde, jogaria torneios de damas com o meu pai. Tão limpo me sentia por poder entrar na papelaria demorando um pouco mais que um regozijo importante se inscrevia na minha autoestima débil. Ali, acabei por comprar meu primeiro livro. Ali, vi pela primeira vez uma capa do Jornal de Letras. Quando entrava na papelaria Sónia eu tinha a impressão de já ser muito mais do que a vida havia planeado para mim.
Muito mais tarde, eu disse ao senhor Martins que nunca lhe roubei nada. Ele respondeu que o surpreendi muito. Tinha crescido um bom rapaz rodeado de tudo quanto havia de errado. Ficar amigo do senhor Martins foi das primeiras conquistas profundas da minha vida. Passar de uma alma penada para ser um certo poeta à procura de um verão contínuo para colocar num verso. Seria o suficiente para tudo ter valido a pena.
1981
Ali, acabei por comprar meu primeiro livro. Ali, vi pela primeira vez uma capa do Jornal de Letras. Quando entrava na papelaria Sónia eu tinha a impressão de já ser muito mais do que a vida havia planeado para mim
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