“Se há uma cultura europeia, é a formada pela Revolução Francesa”. Foi com esta ideia em mente que o fundador e diretor dos Artistas Unidos, Jorge Silva Melo, escolheu levar à Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura a peça
A Morte de Danton, de Georg Büchner – cuja ação se situa, precisamente, no contexto desse movimento revolucionário. Uma opção simbólica, mas, diz, sobretudo política: “Num momento tão convulso como o atual, em que estão em causa os princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que herdámos da Revolução Francesa, parece-me necessário voltarmos a discutir os fundamentos da democracia europeia”. Co-produzida pela Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, o Teatro Nacional D. Maria II e os Artistas Unidos, a peça estreia-se no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, a 2 e 3 de março, seguindo depois para o Nacional de Lisboa, onde fica de 15 desse mês a 22 de abril. Em palco, estão, ao todo, 32 atores e 12 figurantes (alunos da Escola Superior de Teatro e Cinema). Um número que, segundo o encenador, responde às próprias características do texto, que varia entre cenas intimistas e outras de grande multidão – “É preciso muita gente para recriar o vendaval da História”. Talvez por isso esta seja apenas a segunda vez que a obra é representada em Portugal (a primeira estreou em 1989, com encenação de Carlos Avilez e interpretação de 17 atores, entre os quais António Marques, João Vasco, Carlos Freixo e Anna Paula). Grande, média ou pequena. Para Jorge Silva Melo, a dimensão do elenco não constitui uma dificuldade no trabalho de encenação. Atira-se, primeiro, às cenas que julga serem “o coração da peça” e, depois, vai compondo o resto. Assim aconteceu com
A Morte de Danton: em dezembro do ano passado, começou a ensaiar as cenas mais íntimas com um pequeno núcleo de atores – Miguel Borges, Pedro Gil, Elmano Sancho, Maria João Pinho e Sylvie Rocha -, e só mais recentemente chamou os outros – entre eles estão João Meireles, Américo Silva, Pedro Luzindro, Rubén Gomes, Rita Brütt, Alexandra Viveiros e Nuno Pardal.O maior desafio foi mesmo ‘iluminar’ o texto. “É uma obra obscura, enigmática, irregular, extremamente metafórica, e que cria imagens tão rápidas que muitas vezes se dissolvem. Por isso, insisti bastante na cor de cada palavra, na perceção que o ator e o espectador têm do porquê de cada
deixa, na clareza das ações”, revela o encenador. Escrita em 1835, a peça é considerada o primeiro drama realista alemão. Foca-se no período do Reino do Terror (1793-1794), mais concretamente, no conflito ideológico entre dois dos principais líderes da Revolução Francesa, George Danton (Miguel Borges) e Maximilien Robespierre (Pedro Gil), que culmina na execução daquele primeiro e dos seus amigos, Camille Desmoulins (João Meireles), Lacroix (Américo Silva) e Philippeau (José Neves). “Como não foi possível que estas duas grandes personagens chegassem a uma solução? Por que há sempre um diálogo impossível? Por que há sempre a prisão, o desaparecimento, a morte de alguém? Rosa Luxemburgo e Lenine ou Gramsci e Lenine são outros exemplos históricos de conversas que ficaram por travar”, reflete Jorge Silva Melo, para quem o centro nevrálgico da peça é a lenta caminhada para a morte de Danton. Não se trata de saber se a personagem morre ou não no final – o título já o diz. Tornando-nos espectadores de julgamentos e execuções arbitrárias, sem provas ou direito a defesa, Büchner prende-nos – quais testemunhas impotentes – dentro do pesadelo das personagens. Sobretudo, de Danton. Um dos maiores heróis românticos da História do Teatro (aqui magnificamente interpretado por Miguel Borges), que inspirou algumas das mais marcantes personagens do século XX, como Baal da peça homónima de Bertolt Brecht. Danton reclama o ‘tudo ou nada’, oscilando entre momentos de grande intensidade e outros de puro niilismo – “A paz é o Nada”, dirá a certa altura. Para Jorge Silva Melo, há nele uma “ansiedade permanente”, um “inconformismo constante”. E daí o convite a Miguel Borges: “É o ator perfeito para essa exasperação dos sentidos. É um ator muito especial, único, e sempre surpreendente”, afirma. E conclui: “Quis trabalhar esta dicotomia entre o Miguel Borges, intempestivo, e o Pedro Gil [Robespierre], que é um ator, aparentemente, mais racional”. A VIDA CONTRA A VIRTUDE “É o destino que nos guia a mão, mas só naturezas fortes são o seu instrumento”. Eis a
deixa que, para Miguel Borges, melhor define a sua personagem. Vê-a mais como fruto das circunstâncias do que como herói: “Quando lhe perguntam ‘Porque fizeste a revolução?’, ele responde ‘Porque aquela gente metia-me nojo. Sou assim’. Ou seja, até que ponto foi pela pátria? Fê-lo, primeiro, por si mesmo”, argumenta. Um anti-herói aos olhos de quem também o é.Diz que não gosta de atores e não se vê como tal. Prefere os que “criam” aos que fazem teatro para “alimentar o ego”. É que, para Miguel Borges, interpretar é uma questão de sobrevivência: “Ultrapassa o trabalho. É a vida, a criação, as desistências, as conquistas, a angústia de querer chegar a um determinado sítio e não conseguir”. É a vida contra a virtude.Com apenas três obras de teatro, Georg Büchner (1813-1837) é estimado como um dos mais importantes dramaturgos alemães, o que se deve, em parte, ao caráter inovador de
A Morte de Danton. Por um lado, a peça rompe com aquela que era a tradição do drama histórico – nomeadamente, pelo desalinho da narrativa -, lançando uma série de questões que viriam a ecoar no teatro do século XX. Por outro, foi considerada por alguns autores como premonitória da linguagem cinematográfica, dadas as mudanças abruptas de
décor ou a rapidez com que se avança na narrativa. Jorge Silva Melo sublinha, além disso, a natureza niilista do texto – escrito antes do aparecimento do grande teórico do conceito, Friedrich Nietzsche -, e a existência de cenas, diz, “absolutamente geniais”, como aquela em que Simon (António Simão), um popular que trabalha como ponto teatral, insulta a mulher com vocábulos próprios da tragédia.”A terra tem uma crosta muito fina, eu digo sempre que um dia se pode cair por um buraco destes. Temos de andar com precaução, a terra pode rachar debaixo dos nossos pés. Mas vá ao teatro, é o conselho que lhe dou”, declara um dos cidadãos anónimos da peça. Fica a sugestão.
A Revolução ou o Nada
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Co-produzida pela Guimarães 2012 - Capital Europeia da Cultura, o Teatro Nacional D. Maria II e os Artistas Unidos,
A Morte de Danton, de Georg Büchner, estreia-se no Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, a 2 e 3 de março, seguindo depois para o Nacional de Lisboa, onde fica de 15 desse mês a 22 de abril