“Tenho de vir aqui todos os dias. Ainda é a minha casa… Para ver como está a minha casa.”
– “Lucília, não penses nisso. Tens onde dormir, comida não te falta, já te trouxeram muita roupa para vestires… Até a psicóloga da Pampilhosa vem cá falar contigo a cada oito dias” – diz Abel Martinho.
– “É verdade… E isso é o melhor! Mas a minha casa, vizinhinho…” – responde com um lamento inacabado.
O fogo de 15 de outubro entrou pela aldeia de Ceiroquinho adentro. A casa de Lucília Batista ficou totalmente destruída. Por sorte – ou por “milagre”, acreditam outros habitantes -, as chamas não devoraram qualquer outra primeira habitação. Houve mais cinco que arderam, mas os seus donos já não vivem nesta aldeia da freguesia da Fajão, situada no fundo de um vale, entre pequenos montes que as chamas pintaram de preto. Lucília foi a mais penalizada.
“Queria ter ido a minha casa buscar algumas coisas, mas quando lá cheguei já ardia por todo o lado”, conta-nos. “Fiquei apenas com a roupa que trazia no corpo”. Lucília ia continuar a relatar o que aconteceu naquela madrugada de domingo para segunda-feira, mas foi interrompida por Abel Martinho, natural da aldeia e amigo de longa data: “É verdade, só ficaste com a roupa que trazias. Mas agora, com o que já te deram, tens roupa suficiente para te mudares duas vezes por dia!”, gracejou o senhor de 78 anos, tentando animar a conterrânea que por estes dias tem acolhido em sua casa.
Os habitantes de Ceiroquinho encontram muitas vezes Lucília Batista parada na rua a olhar para a ruína em que se transformou a sua habitação. “Creio que parte do sistema nervoso dela ficou afetada. Mas quando ela está aqui parece que se acalma”, explica Abel, que desde que se reformou tem dividido o seu tempo entre Alfama, onde mora, e a sua aldeia natal.
Lucília Batista é uma das 13 pessoas que vive em Ceiroquinho. Na noite do incêndio, foi ajudada pelos vizinhos até à hora em que apanharam uma carrinha da junta de freguesia que os levaria até ao lar de Fajão. Só regressaram no dia seguinte para fazer contas aos danos.
Passou-se quase um mês desde essa noite, mas ainda ninguém parece estar recomposto do choque. E todos sentem necessidade de contar a sua história, com uma mensagem comum: “Não foi o fogo que passou aqui, foi o diabo!”.
Os habitantes estão solidários com a dor de Lucília. Sabem que podia ter sido a casa deles e não fazem mais do que advertir a vizinha para o perigo que corre de cada vez que se aproxima das ruínas. “Bem me dizem para não vir para aqui porque ainda é perigoso… Pode cair-me uma pedra na cabeça, mas tenho de vir ver”, justifica.
Ainda que a olho nu os destroços pareçam todos semelhantes, Lucília consegue identificar com facilidade vários elementos que antes ocupavam os três andares. “Ali encostado à janela era o banco onde me sentava”, descreve enquanto aponta para quatro peças de ferro que miraculosamente continuam unidas. “E aquilo era a minha cama”, explica, olhando para uma compacta peça enferrujada que só Lucília é capaz de detetar no meio dos escombros.
Abel Martinho garante que a sua amiga não vai deixar o ritual de olhar diariamente para aquelas paredes que a viram crescer. “Não pára quieta, só quando se deita. E desconfio que ela até dá muitas voltas na cama”, diz, bem-humorado. É difícil impedir Lucília de seguir esta prática quase masoquista. Os habitantes de Ceiroquinho nem tentam fazê-lo: “É a sua terapia.”
VISITE AQUI O SITE – “Uma Redação com o Coração no Centro de Portugal”
Vamos ter uma redação itinerante no Centro do país durante todo o mês de Novembro, para ver, ouvir e reportar. Diariamente, vamos contar os casos de quem perdeu tudo, mas também as histórias inspiradoras da recuperação. Queremos mostrar os esforços destas comunidades para se levantarem das cinzas e dar voz às pessoas que se estão a mobilizar para ajudar. Olhar o outro lado do drama, mostrar a solidariedade e o lado humano de uma tragédia. Para que o Centro de Portugal não fique esquecido. Porque grande jornalismo e grandes causas fazem parte do nosso ADN.