A imagem de Maria Rosa Dias a morder o lábio inferior é difícil de apagar. Dura dois ou três minutos, os suficientes para pensarmos que uma mulher de 92 anos não chora à frente de desconhecidos, ainda para mais armados de máquinas fotográficas, câmaras e microfones.
Quando se rebobina de memória a sua entrada no que sobra da capela de Nossa Senhora das Brotas, quase à saída de Adega, uma aldeia do concelho de Pedrógão Grande, ouvimo-la murmurar: “Ai, minha rica Nossa Senhora…”. Mas agora vêmo-la a cravar melhor o guarda-chuva nas telhas partidas no chão, com as duas mãos juntas na pega a fazerem força para baixo, e a abrir os olhos para travar as lágrimas. E percebemo-la numa prece muda, frente a um altar-mor que já não existe.
Talvez haja um carro a passar na estrada de alcatrão ou um trovão ao longe a anunciar mais chuva, mas nem damos pelos ruídos à nossa volta. Podemos jurar que se faz um silêncio absoluto no momento em que Maria Rosa fixa o olhar naquela parede onde antes estava uma pequena imagem de Nossa Senhora das Brotas, padroeira dos animais doentes. Foram tantos os anos a olhá-la que sabe de cor onde estava e como era a disposição das restantes imagens.
“A Nossa Senhora ficava no centro, aqui à esquerda tinha um Santo António e uma Nossa Senhora de Fátima, e à direita o Menino Jesus. Eu ainda não tinha tido coragem de aqui vir… Foi tudo embora, é uma tristeza. Agora como é que vamos ter dinheiro para arranjar isto?”
Promessas por cumprir
Maria Rosa traz a chave da capela num bolso, mas desde os incêndios de junho que ela se tornou desnecessária. O fogo fez desabar o telhado por completo e destruiu todo o interior, do chão de mosaicos aos azulejos que cobriam parte das paredes. Arrombada a porta da sacristia, ninguém ficou espantado por não haver vestígios dos armários onde se guardavam os paramentos, os livros e as toalhas. Ou ao perceber que o altar-mor e os bancos corridos tinham desaparecido da nave sem deixarem rasto. Os bocados de imagens que encontraram no chão misturam-se agora numa caixa com alguns bonequinhos do presépio, numa confusão esbranquiçada de gesso e barro. A de Nossa Senhora das Brotas está por algum milagre quase inteira.
“O teto era todo forradinho a madeira, por isso é que foi num instante”, já nos contara Lurdes Carmo, dona do Café Adega, que serve bons petiscos na estrada principal, mesmo defronte do caminho de terra batida que desemboca na capela. “Para mais explodiram as duas bilhas de gás que havia lá por causa dos velórios e das missas de sétimo dia e do mês. À entrada da rua temos uma caixinha das alminhas; quando se juntava dinheiro mandavam-se rezar umas missas.”
Já lá vai o tempo em que se rezava a missa diária na capela de Nossa Senhora das Brotas, mandada erguer pelo padre António, padrinho da avó de Maria Rosa. Mesmo a festa anual deixou de se realizar há uns dois ou três verões, mas sempre que havia uma promessa para cumprir, um velório ou uma missa por alma de alguém da aldeia, cabia a Lurdes ou a uma sua vizinha, a Sara, abrirem a porta.
Junho calhou ser o mês de Lurdes tomar conta da capela, mas no dia 17 “foi mesmo impossível lá ir”, há de repetir. “Ninguém conseguia sair com o calor e o fumo, ficou tudo dentro das casas. Explodiu um carro em frente do café e estavam aqui muitos clientes. E também não tínhamos água, não havia nada a fazer.”
Lurdes costumava ir à capela à segunda-feira, o seu dia de folga, embora diga não ser de missas. Gostava de ali estar um bocadinho sozinha, mas já foi avisando que não quer continuar a ser guardiã do templo. Quando a capela for arranjada, outras vizinhas que fiquem com as chaves que ela anda zangada com os deuses. “A minha companheira nisto, a Sara, morreu nos incêndios. Só tinha 33 anos.”
Capela de Nossa Senhora das Brotas
Adega, freguesia da Graça, Pedrógão Grande
É preciso reconstruir o telhado e o chão de mosaico, e rebocar as paredes.
O recheio ardeu todo: altar, imagens de santos, bancos corridos de madeira, mesa e armários da sacristia, paramentos e toalhas do altar.
Contacto: Café Adega (Tel. 960 452 412)
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