“Por todos os irmãos que morreram nos fogos, não só aqui mas em todo o Portugal, e também pelos seus familiares, oremos ao Senhor”. Estamos na igreja da Graça e é a segunda vez que ouvimos o padre Júlio lembrar que este não é um Dia de Todos os Santos como os outros. Uma hora antes, nem tanto, pedira o mesmo na igreja de Vila Facaia, frente a uma assembleia de olhos cheios de lágrimas. E depois do almoço repete a ideia em Pedrógão Grande, tem de ser.
“Nestes dias chora-se sempre”, dissera, pragmático, ao volante do seu carro a caminho da segunda igreja do dia. Nasceu em Escalos Fundeiros, um lugar ali próximo no concelho onde é pároco há já treze anos. Conhece bem os seus fiéis, sabe que são gente “de aguentar”, e até arrisca acrescentar-lhe um “como normalmente”. Mas também sabe que por estas bandas o inverno costuma ser rigoroso, e que com o mau tempo as pessoas se fecham em casa. “Quando vier o frio e a chuva as pessoas entram mais em depressão, não vão tanto ao café, não conversam com os vizinhos. E lá vem o problema das casas…”
Da lindíssima igreja de Vila Facaia até ao cemitério junto à estrada, já em Lameirinha de Cima, gastam-se uns minutos a pé. É um quilómetro de caminho, feito ao ritmo das Avé Marias ditas pelo Padre Júlio e algumas dezenas de fiéis que percorrem em procissão as ruas da pequena localidade. Para qualquer lado que olhem, veem sinais dos incêndios de junho. Há casas meio destruídas, o que resta das paredes escurecidas pela passagem do fogo, e a vila está rodeada daquilo que um dia foi uma floresta.
Aqui e ali também já se vê o verde de alguns eucaliptos que começaram a rebentar. O padre Júlio abana a cabeça. “Essa árvore não devia existir nesta zona. É tão ruim… É como as silvas, sobrevive a tudo.” Mas são as casas – ou a falta delas – que mais o preocupa. “A entrega está a demorar. Dizem que há muitas feitas, mas não vejo nada. Nós temos a consciência tranquila de estarmos a cumprir a nossa missão aqui. Se o Estado puder dizer o mesmo…”
Em junho morreram-lhe uns cinquenta paroquianos; foram tantos que nem quer fazer bem as contas. Aos que ficaram, a todos os que perderam familiares, amigos e vizinhos, e também aos que os incêndios deixaram sem terras, sem trabalho, sem meios de subsistência, não se cansa de pedir que tenham “confiança, fé em Deus e em si próprios”. Gosta de pensar que a palavra “esperança” ainda tem algum significado quando saída da sua boca e que as pessoas vão seguir o conselho que hoje voltou a dar nas homilias: “Não chorem”.
E pode-se pedir a alguém que não chore?
Sempre que Rafael corre a enfiar-se no quarto, Isabel Carvalho imagina-o a chorar. Dizem que os rapazes não choram, mas ele perdeu o irmão mais velho aos 16 anos “e da maneira que foi”. Diogo, o filho mais velho de Isabel, tinha 21 anos quando morreu no “corredor da morte”, aqueles metros de alcatrão da N236 onde ficou tanta gente. Na sua campa, no cemitério da Graça, lê-se que morreu a 18 de junho. É a data que consta da certidão de óbito, mas todos na região sabem que foi na véspera e a fazer o mesmo que o tio Mário – a tentar salvar as máquinas que tinham em vários terrenos. Eram ambos madeireiros e trabalhavam juntos. Mário não chegou a celebrar os 50 anos; morreu na estrada do Nodeirinho, deixando um filho órfão.
Frente à campa de ambos, coberta de flores e velas, Isabel chora. “O padre Júlio disse para não chorarmos, que temos de ser fortes, mas…” Mas agora está com uma cunhada e uma prima, só entre adultos, pode chorar à vontade e contar que há quatro meses e meio que vai ao cemitério todos os domingos. Em casa evita falar no Diogo e desliga a televisão sempre que surgem notícias sobre incêndios. “O Rafael não aguenta, foge logo da sala.”
No cemitério, por estes dias destino de romarias e homenagens, sente-se acompanhada. Só do Nodeirinho morreram onze pessoas, e algumas estão ali enterradas. “Tenho ali à frente um outro meu primo que também morreu no fogo, e a pequenina, a Bianca, está ali em cima, no talhão das crianças.” No próximo domingo, Isabel estará aqui novamente. Não tinha esse hábito, mas agora vai à missa aos domingos de manhã, onde ganha coragem para ir ao cemitério. O padre Júlio vai gostar de ler aqui que as suas palavras lhe dão força para continuar.
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