
Voltaire, o homem contra o dogma
A terra tinha tremido como nunca em Lisboa, no Terramoto de 1755, e uma guerra, a dos Sete Anos (1754-63), assumira contornos de violência inéditos, dividindo a Europa e deixando o mundo em colapso. Nesse período, um cientista e filósofo alemão, Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), publicava um tratado em defesa do optimismo: se Deus criara o mundo, então todo o mal que nele existisse teria de ser encarado em função de um bem maior; vivíamos, segundo Leibniz, no melhor dos mundos possíveis. Era também o tempo em que Igreja e Estado, na França natal de Voltaire, tinham uma espécie de pacto de horror, com a justiça pelo meio a aplicar sumariamente e a condenar à tortura e a pena de morte. Voltaire reagiu a tudo isto com um livro, uma pequena sátira onde desconstrói a filosofia de Leibnitz e o fanatismo religioso e parodiando tragédias recentes. Publicado em 1759, Cândido ou o Optimismo ridicularizava todo o pensamento e poderes então vigentes e, mais de 250 anos depois, permanece um dos títulos mais célebres do cânone ocidental.
O livro centra-se na figura de Cândido, um jovem ingénuo, filho bastardo da irmã do barão Thunder-ten-tronckh, um “dos mais poderosos senhores da Vestefália”, educado segundo os mais elevados preceitos da época pelo filósofo Pangloss, seguidor dos ensinamentos de Leibniz, que instruía o jovem no conceito de que “o que existe não pode ser diferente, porque tendo sido tudo criado para um fim, tudo é necessariamente para o melhor dos fins”, ou seja, “tudo vai pelo melhor”.
O rapaz ouvia-o, enquanto se apaixonava pela prima, a “muito rosada, fresca, gorducha e apetitosa Cunegundes”, a filha do barão. Ele era “um jovem dotado pela natureza com os sentimentos mais suaves. A sua fisionomia retratava a sua alma. Possuía raciocínio justo e o espírito simples; era decerto por essa razão, penso eu, que lhe chamavam Cândido.” Um dia a jovem Cunegundes vê o professor Pangloss com uma criada e dá azo à imaginação. Convida Cândido para a encontrar atrás do biombo e, no momento em que os dois dão um beijo, são descobertos pelo barão que o expulsa do castelo aos pontapés. É então que começa a verdadeira educação de Cândido, no que se pode chamar uma caricatura ao bildungsroman, o romance de crescimento então em voga.
Num tom jocoso, entre o picaresco e a farsa, suportável devido à boa dose de absurdo da escrita, Voltaire narra a incursão de Cândido num mundo para ele totalmente desconhecido, o mundo real do século XVIII, uma sucessão de horrores e violência, fora da proteção dos muros do palácio, nada complacen te com as suas ingenuidade e bondade, prova dolorosa acerca da teoria do otimismo do seu mestre Pangloss.
Após a sua expulsão, o palácio é invadido pelos búlgaros, Cunegundes violada, os pais e o irmão dela torturados, e Cândido forçado a combater como soldado. Ferido, é socorrido por um benfeitor, que pouco depois também acolhe e trata Pangloss, doente de sífilis.
Os três embarcam para Lisboa, onde chegam em pleno terramoto, a grande catástrofe que aconteceu no Dia de Todos os Santos e que fez tremer o mundo católico, que vê a natureza como uma espécie de intermediária da vontade de Deus. Se Deus era bom e misericordioso, como explicar a catástrofe? Voltaire deu um forte contributo para esse abanão no fanatismo religioso ocidental, não só com Cândido ou o Optimismo, mas com o Poema Sobre O Desastre de Lisboa. Um e outro títulos fazem parte da génese do Iluminismo, que por sua vez iria originar a Revolução Francesa e marcar a entrada na modernidade.
Era o racionalismo a questionar a mitologia religiosa que vira no terramoto um castigo de Deus por males que era preciso continuar a punir. Voltaire escolhe o absurdo para desmontar a crueldade implícita nesse raciocínio.
É no arranque do capítulo VI: “Após o tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do País cogitaram em que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto de fé.” Ainda se está no início de Cândido ou o Optimismo e, com Cândido, já os leitores se vão interrogando: perante tanto sofrimento, onde está a bondade do mundo de que falava Leibniz? Ele faz a pergunta assim: “Se este é o melhor dos mundos possíveis, como serão os outros?” É a pergunta recorrente de Voltaire ao longo dos 30 capítulos em que se divide o livro que também é sobre a necessidade e civilizar, ou, como o célebre Iluminista escreveu, da criação do jardim como lugar onde o homem se pode cumprir, na sua função num mundo comandado pela natureza e não pela vontade de um Deus benevolente que quer benevolentes os homens. A metáfora do jardim ou da horta por cultivar sobreviveu até aos nossos dias. Não um jardim fechado que tenta proteger do mal, mas a horta aberta onde o homem se realiza.