Viajar! Perder países! / Ser outro constantemente, / Por a alma não ter raízes”. Quando Amiteshwar Singh leu estas palavras de Fernando Pessoa pareceu-lhe que tinham sido escritas a pensar na sua vida. O estudante de Informática de 23 anos viveu no Punjab, Índia, até aos 15 anos, mas passou por Áustria, Dinamarca e França antes de chegar a Portugal, em 2011. Apesar de falar quatro línguas, Franky (como é tratado pelos amigos e familiares), confessa que o português “é muito difícil”. No entanto, é na língua de Camões que prefere conversar com a VISÃO.
Os pais são proprietários de uma mercearia numa das zonas mais centrais do bairro da Mouraria (onde também vivem), o Largo do Terreirinho. É lá que se cruza com moldavos, chineses, paquistaneses, franceses, portugueses… Prova de que as ruelas da Mouraria são das mais multiculturais de Lisboa. Franky divide-se entre os estudos e a ajuda na loja. A maior parte dos seus amigos são portugueses e africanos, mas admite que o habitual é “as pessoas aproximarem-se de quem é do seu país”. A presidente da direção da associação Renovar a Mouraria (uma das forças dinamizadoras do bairro), Inês Andrade, 44 anos, dá-lhe razão. “A convivência no dia a dia entre os vizinhos de vários países não é muito permanente”, constata a também residente na Mouraria, que calcula em mais de 50 as nacionalidades que se cruzam no bairro. São as crianças as principais “desbloqueadoras culturais”: “A maior convivência é entre os miúdos nas escolas e nas ruas do bairro”, assegura Inês, que procura fomentar “laços de convívio” entre as várias comunidades através da associação.
Quando fala dos vizinhos imigrantes, é precisamente uma criança que vem à memória de Vanessa Correia, 29 anos, nascida e criada na Mouraria, proprietária do café Parreirinha, na Rua da Guia: “Vimos o Afonso crescer e tornar-se um encanto de menino. Toda a família é muito simpática”, diz, referindo-se aos vizinhos que vivem e exploram um restaurante de comida chinesa do outro lado da rua. O olhar rasgado de Afonso, 3 anos, revela a sua ascendência asiática. A mãe, Junjuan Zhang, 39 anos, conta que o rapaz, nascido em Portugal, “é um menino do bairro”: “Gosta dos arraiais e canta pela Mouraria”. A filha mais velha, Chuanjiaci Liu, 14 anos, ajuda a traduzir o diálogo, interrompido pelas gargalhadas de mãe e filha.
Basta descer até à Rua do Capelão para encontrar mais vizinhos internacionais. Emília Almada, com 78 anos vividos no bairro, não tem dificuldade em definir Mitesh Maisuria (tratam-no por Mika), o barbeiro que veio da Índia para explorar o cabeleireiro a dois passos de sua casa: “É uma pera doce!”, exclama. Mika, 33 anos, também não poupa nos elogios à vizinhança, “todos amigos e todos com muito respeito”. As paredes do salão refletem a diversidade da clientela, com imagens de deuses Hindus misturadas com a Nossa Senhora de Fátima…
Viajar no bairro
Mohammed Faruk, 41 anos, recorda-se bem do impacto à chegada à Rua do Benformoso: “Parecia que estava na minha terra!”, conta. Foi lá que decidiu instalar o seu restaurante de comida tradicional do Bangladesh. Há 17 anos em Portugal, confessa que é na Mouraria que se sente em casa. Dos 11 apartamentos do seu prédio, dez estão ocupados por outras famílias do Bangladesh – claro que conhece os vizinhos todos. Está orgulhoso das mudanças no bairro a que assistiu nos últimos anos: “Antigamente, havia muitos problemas, mas agora as ruas estão limpas e podemos andar descansados. Vêm mais pessoas e isso é bom para o negócio”.
A professora da Universidade Nova de Lisboa, Margarida Marques, especialista em migrações, destaca a transformação da Mouraria “numa zona efervescente da cidade”. Além do investimento da autarquia ter dado origem a uma “requalificação interessante”, também os imigrantes “foram um dos instrumentos para a renovação” porque a sua presença e os seus negócios ajudaram a atrair as pessoas para aquela zona da cidade.
Jaya Ram Gautam, 36 anos, ainda tem dificuldade em acreditar que numa zona tão pequena seja possível “conhecer pessoas de tantos países e com tantas línguas diferentes”. Trocou o Nepal por Portugal há três anos. Tem uma loja de têxteis nepaleses na Rua da Mouraria, bem perto de casa. Admite que é mais fácil criar relações com os vizinhos da Índia ou do Bangladesh porque têm mais em comum, enquanto com os chineses, por exemplo, a língua é uma dificuldade quase inultrapassável. Entre os portugueses, se há quem tenha curiosidade sobre a sua cultura e a religião Hindu, já “algumas pessoas mais velhas têm medo da imigração por causa dos acontecimentos recentes na Europa e confundem tudo”.
O paquistanês Ghulam Distgir, 36 anos, já deu conta de algumas pessoas se afastarem à sua passagem, mas sublinha que sempre se sentiu bem-vindo em Portugal, onde chegou há oito anos. Uma ida ao Centro Comercial da Mouraria é uma viagem, tal é a diversidade geográfica dos produtos vendidos e dos lojistas. Local ideal para Distgir estabelecer a sua agência de viagens. Muitos dos seus clientes são imigrantes que querem ir visitar a família. Também Distgir só regressou ao Paquistão ao fim de cinco anos em Portugal. A mulher, Rizwana Distgir, 33 anos, ex-professora de Inglês e Matemática, considera os portugueses muito disciplinados – o que lhe agrada bastante. Apesar de pouco familiarizada com o conceito de “vida de bairro”, basta ouvi-la para perceber que esse é o maior encanto da Mouraria: “Uma razão para continuar a viver aqui é conseguir fazer muitas coisas a pé. É fácil, por exemplo, encontrar talhos com carne Halal [de acordo com as regras islâmicas]”. Agrada-lhe a independência que encontrou em Portugal. “No Paquistão, as mulheres só podem sair acompanhadas por um homem e aqui podemos sair sozinhas”, explica.
Apesar de ter vindo de outro país, Angola, Ana Fernandes, 67 anos, já vive na Mouraria há mais de trinta anos. Vê as mudanças com bons olhos, só lamenta que a pressão imobiliária motivada pelo turismo leve muitos a abandonarem o bairro. “Adoro ver gente e adoro este intercâmbio cultural”, anuncia, acrescentando: “Mesmo que tivesse muito dinheiro não sairia daqui”. Afinal, a Mouraria oferece-lhe tudo o que precisa: “Tenho sossego em casa e o mundo inteiro na rua!”.
Por um bairro melhor é a iniciativa que une a VISÃO, SIC Esperança e a Comunidade EDP em busca dos vizinhos mais ativos do País. Participe, dê ideias, contribua. Tudo por um bairro melhor.