Lisboa segue hoje um destino igual ao de outras capitais do mundo ocidental no que diz respeito às dinâmicas habitacionais mas o que funciona bem nas outras e aqui falha redondamente? A questão de uma eficiente mobilidade urbana, fundamental para quem poderia viver na periferia a metade do preço, ficou de fora das medidas estatais e a construção modular, contemplada no programa Mais Habitação, é ainda uma miragem em Portugal. Melhor gestão de terrenos estatais e municipais em parceria com os privados, mais linhas e mais e melhores comboios/barcos/autocarros para esbater os tempos de deslocação de quem vive nas periferias e uma aposta assertiva na construção offsite (feita em fábrica e montada no local), que reduz preços e tempo de construção, são soluções defendidas por Ricardo Sousa, CEO da Century21 em Portugal e Espanha, em entrevista à VISÃO Imobiliário.
O Ricardo lidera as redes da Century21 em Portugal e Espanha e portanto, conhece bem os dois mercados. Madrid tal como Lisboa é uma cidade com muita pressão habitacional mas tem conseguido gerir este problema de forma menos tumultuosa. Uma das formas tem sido através da boa gestão de terrenos públicos, que estão sem uso e que são colocados ao dispor dos promotores, com contrapartidas que acabam por beneficiar a habitação acessível…
Sim, um deles é o Castelhana Norte, que é um projeto integrado com todas as infraestruturas de comércio, de serviços e de residencial e que na prática permite o crescimento da cidade pela Castelhana em direção ao Norte. E depois temos na parte sul de Madrid – e esse é mesmo puramente residencial – uma aposta grande nesta parceria público-privada para construção de habitação acessível onde, ao todo, vão ser construídas mais de 140 mil casas, é impressionante… São projetos que envolvem várias câmaras municipais, é feito numa lógica metropolitana de olhar para o território e de otimização desse território, numa lógica de expansão nestes macro-projetos… O Castelhana Norte mais amplo porque inclui vários serviços, comércio, escritórios, e o outro a sul, muito focado no residencial. É algo que falta aqui na Área Metropolitana de Lisboa, essa visão metropolitana da cidade, olhar para as necessidades e ver como deve evoluir a infraestrutura de transportes públicos, a expansão do metro e do comboio… É o que estão a fazer em Madrid. É preciso aproximar o sítio onde vivemos do local onde trabalhamos, onde nos divertimos, etc. E isso faz-se como uma boa rede de mobilidade urbana.
Tem alertado muitas vezes para a necessidade gritante de um maior reforço estatal na mobilidade urbana para se colmatar os problemas habitacionais. Nas outras capitais europeias, a esmagadora maioria da classe média e média alta vive nas periferias mas o sistema de transportes funciona de forma mais eficaz…
É isso… Outro caso que se pode olhar é Amesterdão, que há muito gere estas questões do turismo e do difícil acesso à habitação, etc… Eles desenvolveram um conceito que a que chamam ‘cidades-satélites de Amesterdão’, onde basicamente o desenvolvimento urbanístico da parte residencial é devidamente complementada com uma boa rede de transportes públicos, nomeadamente o comboio, com mais linhas e mais frequência. Ou seja, pode-se estar a 100 quilómetros em cada uma destas cidades, mas a cada 8 minutos consegue-se ter um comboio rápido para, em pouco tempo, estar no centro de Amesterdão. E é mesmo preciso olhar para estes exemplos… O tamanho de Lisboa não vai crescer… As opções passam por crescer verticalmente – e há locais onde não se pode, até porque se levantam questões sísmicas, por exemplo – ou procurar outras opções para quem trabalha na cidade ou simplesmente quer vir à cidade … É preciso olhar para o que está a ser feito lá fora…
A inflação e o fantasma das taxas Euribor está já a ter impacto no número de transações concretizadas. Essa redução da procura poderá levar também a uma desaceleração no lançamento de projetos imobiliários?
Todos nós conhecemos pessoas que até querem vender – e teriam uma mais-valia interessante – mas não o fazem porque não têm alternativa para fazer o seu upgrade. Assim, temos famílias que estão em casas demasiado pequenas para a dimensão do seu agregado familiar ou casas enormes com apenas duas pessoas residentes… Portanto, sabemos que há procura mas está suspensa à espera dessa oferta. E a promoção imobiliária está consciente de que o mercado existe. O desafio é o rendimento líquido dos portugueses. Qual é a equação difícil de resolver? O preço do terreno, o custo de contexto (toda a parte do licenciamento) e o custo de construção. Em relação ao terreno, é preciso olhar para onde as pessoas se estão a concentrar? Na Área Metropolitana de Lisboa. E o que está a acontecer aqui? Se temos um PDM que continua a limitar por exemplo, o crescimento em altura, se temos zonas que ainda não estão urbanizadas, terrenos que não têm licenças de construção, tudo isto faz com que o preço da matéria-prima mais importante, que tem o peso maior na construção de uma casa, esteja superinflacionado. Nós falamos das casas demasiado caras, mas temos que olhar para o que vem anteriormente. Os promotores querem construir casas a preços acessíveis, mas a verdade é que têm dificuldade em encontrar um terreno a preços acessíveis. A isto acrescem os custos de construção e aquilo que esta procura está disposta a pagar. É aqui que se torna desafiante… Até há um compromisso importante por parte dos principais promotores que já disseram publicamente que querem participar na solução para criar habitação acessível e até já existem projetos em análise, mas não há soluções de curto prazo. É preciso ter essa consciência de que isto é um processo longo, mas temos de arrancar já. As regras de construção também estão desajustadas da realidade, das novas tecnologias, dos novos materiais que existem e cumprir com este ‘desajuste’ também faz aumentar o preço das casas…
O Programa Mais Habitação já tem, pelo menos no papel, a vontade de dar impulso à construção modular mas de facto existem pouquíssimas empresas a investir neste mercado em Portugal. Como é em Espanha?
Isso é um ponto muito importante. A Century21 está em Espanha desde 2005. Desde essa altura que há dois temas que são de debate público e que realmente se trabalha, se discute, se investiga e se promove: um é a industrialização da construção (a construção offsite) e outro é a questão dos terrenos. E esta é, de facto, a base fundamental para termos mais soluções de Habitação e, mais ágeis. O Programa Mais Habitação toca na questão da construção offsite mas tem de haver mais investimento e mais incentivo ao desenvolvimento dessas fábricas. Por vários motivos e um deles, é hoje, o grande desafio na construção – a escassez de mão-de-obra. Não há mão-de-obra e é cara! O que é que permite a construção offsite? Melhores condições de trabalho, maior capacidade de atração e retenção de talento de maior qualidade, mais segurança… São tantas as vantagens que deveria ser um dos pontos centrais nesta discussão. Não podemos olhar só para “o hoje” pois temos um ciclo tão longo, de construção, de licenciamentos, que é pouco realista acreditar que se resolvem os problemas com estas soluções de curto prazo… Em Espanha, por exemplo, há um promotor que só no ano passado comercializou mais de 3000 casas, metade feitas com o processo construtivo em offsite, segundo afirmam. São cotados e divulgaram agora os resultados, é impressionante. 3000 casas produzidas e entregues.
Quão atrasados estamos neste processo modular em comparação com os nossos pares na Europa?
Em 2010 já estávamos atrasados, em 2023, eu diria dez anos pelo menos de atraso para que este processo se torne massificado.
Temas como a mobilidade, a construção offsite acabam, de facto, engolidos por outros que suscitam mais polémica como os Vistos Gold ou o Alojamento Local (AL)…
O problema, em minha opinião, reside mais na mobilidade urbana do que propriamente na crise da Habitação. Por exemplo, a Linha de Cascais está há mais de um mês em greves, o que é que se passa? O que se passa no mercado imobiliário residencial é um sintoma, não é a doença. Reflete outros problemas que temos, sociais, demográficos, etc. E a cidade de Lisboa que evoluiu primeiro e ganhou atratividade na retenção de empresas e talentos, cresceu a nível turístico, deu um salto e muito mudou desde a altura em que o mercado internacional era praticamente só o Algarve. Claro que o número de camas teve de crescer… Crescemos nestes dados mas não crescemos na construção de casas, logo, a consequência é óbvia. Não se está a tratar desse problema e aí temos de fazer o nosso papel, dar a voz e alertar para essas questões porque é muito mais simples falarmos do AL, quando o AL não é o problema.
Diz no último balanço que o peso dos clientes estrangeiros na Century21 representaram 15%, mas com tendência a decrescer. E que muitas até já estão a ir para Espanha…
Sim, Espanha nesse aspeto tem tido muito mais cautela. A nova “Ley de la Vivienda” é muito interventiva mas tudo o que é AL, turismo, mercado internacional, vistos Gold, não foi absolutamente alterado. E a verdade é que lá fora existe a perceção de que em Espanha há uma maior estabilidade no aspeto da atratividade deste tipo de investimento. O peso dos estrangeiros cresceu na Century21 Espanha, os clientes que nos procuram cá perguntam pelo outro lado da fronteira e tudo aquilo que nós oferecemos como território também existe por lá, ou algo similar…
E como são os preços para este segmento?
Em Espanha, o mercado internacional consegue comprar em Alicante, Múrcia, casas de costa, como eles lhes chamam, abaixo dos 200 mil euros, ou 250 mil euros. E há uma parte significativa de pessoas, incluindo do mercado português, que procuram esse tipo de imóveis. Nós cá temos como ponto de referência os 400 mil euros para segunda habitação ou para investimento. Por isso, de facto, estamos a sentir que há clientes estrangeiros que já estão a trocar Portugal por Espanha…
Essa saída ou menor pressão dos estrangeiros no mercado nacional pode trazer algum alívio nos preços?
Todas as estatísticas mostram que o peso e aquilo que eles compram não justifica essa ideia de pressão de preços no mercado da classe média… O problema do que está a acontecer em Portugal nada tem a ver com o mercado internacional. E acredito que a maioria das pessoas sabe disso. Até porque o que se vive em Lisboa não tem nada a ver com o que se vive na Guarda ou Covilhã, ou Portalegre ou Castelo Branco. E essas cidades precisam mais do que nunca dessa capacidade de atração de pessoas porque o Turismo traz investimento, traz oportunidades, traz emprego… Não vejo que de uma forma generalizada as pessoas digam “ainda bem que os estrangeiros se foram embora para ver se os preços baixam”. Até porque 75% dos portugueses são proprietários por isso se os preços baixarem significa que o seu património desvaloriza. Hoje mais do que uma disputa entre regiões, temos duas realidades: quem tem casa e quem tem ainda de aceder a casa. Para quem ainda não tem casa, é um desafio muito grande. Mas a maioria dos portugueses está numa situação melhor hoje do que estava: são proprietários e têm a casa paga ou quase paga. Por isso é que não podemos olhar para o problema generalizando e sim, é preciso segmentar, identificar bem as causas e as consequências dos problemas para que se possa identificar exatamente quem precisa de ajuda. Portanto, eu não vejo que a maioria dos portugueses veja uma desvalorização do valor dos seus imóveis com bons olhos. Nós salientámos bem isso no nosso estudo: as medidas de apoio foram demasiado generalizadas e deviam ser pensadas para quem realmente precisa. O Estado tentou ser demasiado genérico, houve avanços e recuos… Ser demasiado generalista pode não chegar eficientemente a ninguém.