Se o programa “Mais Habitação” fosse um filme, numa espécie de remake invertido protagonizado não por Jack Nicholson mas por António Costa, o título seria certamente “Pior é Impossível”. Dos investidores aos consultores imobiliários, dos proprietários de alojamento local aos arquitetos, são muitos os termos pejorativos para descrever o suposto plano de salvação para o setor da habitação que de salvamento pouco oferecerá principalmente para os jovens para quem se esperava o regresso do velhinho e bem sucedido crédito jovem.
O arrendamento coercivo dos imóveis devolutos, a machadada final nos vistos Gold, a transmissão da responsabilidade estatal para os projetistas no caso dos licenciamentos de obra e o fim indiscriminado da emissão de licenças para Alojamento Local (não só em Lisboa e no Porto mas em qualquer localidade que não configure ser uma zona rural) são as medidas-choque que revoltaram o setor, anulando por completo o impacto de outras medidas positivas e há muito pedidas como as parcerias público-privadas através da cedência de terrenos municipais ou a aguardada desburocratização nos licenciamentos para projetos imobiliários.
Mas vamos por partes. Paulo Caiado, presidente da Associação dos Profissionais e das Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal (APEMIP) achou que, na base do programa, estão “medidas assustadoras” que terão um impacto perigosamente generalizado e negativo para os portugueses e explica porquê: “Algumas destas medidas têm por objetivo baixar o preço das casas, como referiu o Primeiro-ministro. Ora, num país em que 73% dos agregados familiares portugueses são proprietários das suas casas (63% não devem nada ao banco e os restantes ainda a pagar a prestação), a mensagem que se está a passar às pessoas é que a sua principal reserva de poupança, o seu principal património de valor, vai ficar desvalorizado”. Para o presidente da APEMIP “não se combate a exclusão social, empobrecendo o todo mas ajudando as pessoas excluídas criando medidas de acesso às casas”.
O presidente da APEMIP considerou também “absurdo” o argumento do controlo da especulação dado pelo Governo para justificar o término dos vistos Gold. “Os vistos Gold pressionam os preços das casas para que segmento? Para os ricos, aqueles que compram casas de 700 mil euros! E estão todos preocupados com isso porquê? Isso faz algum sentido?”, questiona Paulo Caiado, lembrando que os Golden Visa “representaram em dez anos apenas 0,6% do total das transações imobiliárias”.
O programa, recorde-se, entrou em vigor em outubro de 2012, atraiu mais de 6,7 mil milhões de euros em investimento até dezembro do ano passado, dos quais 6.041 milhões de euros (89%) foram canalizados para a compra de bens imobiliários.
Desde sempre sob a mira da “Gerigonça”, o programa dos vistos Gold já tinha passado por restrições em 2022 quando a atribuição ao título de residência passou a estar inacessível para as zonas de litoral, exceto nas regiões de baixa densidade construtiva. Uma alteração que orientou os promotores para outras zonas como a Comporta ou as ilhas.
“O fim do programa será lamentável para algumas regiões do interior de Portugal, bem como para os arquipélagos da Madeira e dos Açores. Após as alterações efetuadas em 2022, estas regiões esperavam ver aumentar o fluxo de investimento, a partir do momento em que cidades como Lisboa e Porto deixaram de ser elegíveis. Acredito que o programa, tal como existe hoje, é um modelo afinado e bem definido que não expõe os centros urbanos e as zonas do litoral ao crescente desenvolvimento urbano, pelo que é lastimável que o programa chegue ao fim”, fez questão de salientar David Moura-George, diretor-geral da consultora Athena Advisers.
Na opinião do responsável, “os promotores irão tentar acelerar o lançamento de projetos que sejam elegíveis para o programa, estimando-se que haja uma torrente de novos lançamentos e algum congestionamento da procura na corrida por um Visto Gold até ao encerramento oficial do programa. Porém, muitos destes projetos estão dependentes da aprovação do Governo, pelo que será difícil antecipá-los”.
“Ataque à propriedade privada”
São muitas as críticas também do lado dos investidores. A Associação Portuguesa dos Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), em comunicado, fala de “um ataque” à propriedade privada, que retira confiança aos investidores e mantém o problema da habitação.
“Para além de insuficientes, as medidas propostas excluem a criação de mais habitação nova, a medida mais importante para responder à crise”, afirmou o presidente da APPII, Hugo Santos Ferreira.
A proposta “de arrendamento compulsivo de imóveis devolutos é um ataque à propriedade privada”, o fim da concessão de novos ‘Vistos Gold’ é “precipitada” e irrefletida e as medidas e incentivos para a construção nova são “inexistentes”. “Com exceção das alterações introduzidas nos processos de licenciamento municipal, não foi anunciada nenhuma medida que incentive a colocação de mais construção nova no mercado”, reafirma Hugo Santos Ferreira.
Arquitetos rejeitam responsabilidade nos licenciamentos
Mas até na simplificação dos licenciamentos, uma exigência há muito era pedida por quem está no mercado habitacional, não houve consensos. A Ordem dos Arquitectos já veio dizer, em comunicado, que vai não só solicitar uma audiência à Ministra da Habitação “com carácter de urgência” para a discussão do pacote de medidas, como vai apelar à convocação do Conselho Nacional de Habitação.
De entre as mais polémicas, para os arquitetos, está a responsabilização que passará a existir nos processos de licenciamento. “Os arquitetos acolhem a responsabilização, mas, enquanto técnicos qualificados e profissionais regulados, reclamam-na com responsabilidade. E, para tal, é preciso que o Estado faça a sua parte e que esta não seja, uma vez mais, uma demissão do Estado das suas obrigações”, sublinha-se a OA.
Diz a OA que a cadeia de valor da habitação está subvertida: “há muito que referimos a incoerência de trabalhar num país que não quer pagar pelo trabalho de mais de uma dezena de projetistas – técnicos qualificados com responsabilidade sobre o que se constrói – 5% do custo da obra, mas que não questiona pagar 5% sobre o valor da venda a um único operador”.
Valores de referência para os custos do trabalho dos projetistas “não existem”, acusa a Ordem, e por isso “adjudica-se tudo ao custo mais baixo, como se os serviços intelectuais não tivessem valor. E agora aumenta-se a responsabilidade e anunciam-se duras sanções para os incumprimentos. Pois então dêem-se aos projetistas as condições para exercer a sua responsabilidade”, aponta-se no comunicado.
Outra proposta do pacote governamental aparentemente mais consensual mas que afinal se reveste também de alguma controvérsia é a alteração do fim dos imóveis de comércio ou serviços para habitação, “sem necessidade da licença de utilização”.
A Associação Portuguesa de Empresas de Gestão e Administração de Condomínios (APEGAC) vem alertar que essa alteração “implica ultrapassar o que dispõe o Código Civil, no que respeita aos imóveis no regime da propriedade horizontal, que impõe a aprovação por todos os condóminos quando se pretenda alterar o fim da fração”, diz Vítor Amaral, presidente da APEGAC.
Além disso, frisou o responsável, “a alteração do fim deve implicar a garantia de condições de habitabilidade, para o que será necessária, em muitos casos, a realização de obras não só no interior das frações, como nas partes comuns, que estão sujeitas à aprovação da assembleia de condóminos”.
“Alojamento Local é o bode expiatório”
Polémica foi também a medida anunciada para o Alojamento Local (AL) – o fim das novas licenças para qualquer localidade do país, excepto em zonas rurais, a manutenção das atuais só até 2030 com reavaliação a partir daquela data de cinco em cinco anos e a criação de uma taxa extraordinária.
“A Direção da ALEP considera que o Governo pretende acabar com o Alojamento Local e, não o querendo fazer agora, adiou o seu fim para 2030. Todas estas medidas irão criar não só uma enorme incerteza perante o investimento privado como torná-lo inviável”, diz a associação em comunicado.
A ALEP sublinha que não entende a causa desta “perseguição” do Governo ao Alojamento Local e que o mesmo é usado como “bode expiatório”.
“Quando em Portugal existem 723.000 imóveis vazios, não serão, com toda a certeza os 100.000 alojamentos do AL, na sua grande maioria fora dos centros urbanos, que prejudicam a habitação”, referiu Eduardo Miranda, Presidente da ALEP.
O responsável sublinhou que ‘até hoje, a ALEP sempre colaborou com os vários Governos de forma a que o setor fosse crescendo de forma sustentável. Nunca houve qualquer tipo de falha de comunicação. Fomos, hoje, surpreendidos com todas estas medidas gravíssimas sem nunca termos sido ouvidos sobre as mesmas por nenhum representante do Governo.’ O setor, refira-se, contribui com mais de 40% do alojamento do turismo nacional.