2021 começou de uma forma devastadora para o País, a viver atualmente o pior momento da crise pandémica. À tragédia humana somam-se as consequências económicas em diversos setores e o imobiliário não é exceção. E este ano será, seguramente, mais desafiante que 2020 nos vários subsectores deste mercado, como analisaram os vários especialistas ouvidos pela Visão Imobiliário.
As moratórias e outras ajudas estatais estão a segurar famílias e empresas a gerir a crise mas em setembro tudo pode acabar, semeando o colapso do setor, alertam os especialistas. Sem moratórias, as famílias podem entrar em incumprimento do seu crédito bancário e perder as suas casas e o mesmo acontece com os pequenos negócios como hotéis familiares, por exemplo, que poderão não resistir à recessão e acabar nas mãos de fundos oportunistícos. Alguns destes hotéis poderão mesmo reconverter-se em edifícios residenciais para o mercado de arrendamento que atrai cada vez mais investidores interessados em apostar em edifícios para arrendar à classe média e média alta. No retalho, a situação não é animadora com os centros comerciais a perderem valor junto do mercado de investimento mas nem tudo é mau – lojas de decoração, bricolage e eletrónica de consumo estão em alta, dinamizando também os retail parks, os espaços onde se inserem.
É desta que os preços das casas descem?
Quem vive em Lisboa ou no Porto assistiu nos últimos anos a uma transformação radical do espaço público e habitacional. Vibrantes e revitalizadas, as cidades atraíram estrangeiros de todo o mundo, com capacidade financeira para comprar casas que dificilmente estão ao alcance das maioria das bolsas nacionais. Daí que quando a pandemia se instalou e imobilizou literalmente o mundo inteiro, logo se vaticinou que os preços das casas nos centros destas duas cidades acabariam forçosamente por ceder à pressão da falta de clientes e ajustar-se à procura interna.
Mas isso não aconteceu. Em novembro passado, o preço de venda das casas em Portugal Continental variava uns modestos 0,3% em relação ao mês anterior, “consolidando o percurso de estabilidade verificado desde início da pandemia”, referia um relatório recente da Confidencial Imobiliário que acompanhou o mercado durante todo o ano de 2020. A pouca oferta de habitações para venda destinada à classe média associada a um incipiente mercado de arrendamento mantinha assim, o mercado a funcionar exatamente nos mesmos moldes dos anos anteriores.
Mas será esta uma tendência a manter-se em 2021? Talvez não. Para Luís Lima, presidente da Associação dos Profissionais e das Empresas de Mediação Profissional de Portugal (APEMIP) tudo dependerá da forma como se conseguirá gerir a confiança no mercado e também “a bomba-relógio”, como apelida, ao final do prazo das moratórias.
“Tudo vai depender do plano de vacinação. Está toda a gente à espera de ver os gráficos com os números de infetados de Covid-19 a baixar e a partir desse momento a confiança voltará a instalar se no mercado. Mas não será já. Os próximos tempos vão ser terríveis quer em termos económicos, quer ao nível da saúde”, alertou o presidente da APEMIP.
Com a crise sanitária intrinsecamente ligada à económica, tudo dependerá “também do grau de resistência financeira das pessoas – se a recessão demorar muito tempo, as famílias vão ter que realizar capital e acabarão por vender tendo em conta os preços que serão praticados na altura”, sublinha ainda Luís Lima.
Mas o pior cenário, reforça o responsável, tem já de antemão uma data marcada: setembro de 2021, altura para o qual ficou fixado o final das moratórias que estão a permitir adiar a prestação mensal do crédito à habitação. “Fui uma das pessoas que mais lutou pelas moratórias mas essa luta ainda não acabou. É preciso fazer alguma coisa até setembro de 2021, pois caso contrário será como uma bomba-relógio, poderá mesmo ser o colapso do setor”, referiu Luís Lima.
Um estudo recente lançado pela EY (Ernst&Young) intitulado “Portugal: Desafios para 2021” e que analisa várias atividades entre as quais a imobiliária, alerta também para essa questão lembrando que as moratórias têm, por enquanto, servido de balão de oxigénio para as famílias e, consequentemente, para o mercado imobiliário, que apesar de não se manter como em época “pré-COVID”, não sofreu de uma forma “tão impactante” como outros setores da economia.
“Reflexo dessa conclusão é que, por um lado, os promotores imobiliários que já investiam em Portugal continuam a ter sucesso na colocação de produto no mercado e, por outro, verifica-se que regra geral os preços de venda ainda não desceram significativamente como talvez fosse de esperar. Naturalmente, para este último fator, em muito contribuem as moratórias ao crédito à habitação aprovadas pelo Governo que vêm adiando um facto talvez inadiável que será a venda desesperada do património imobiliário por parte das famílias e a acumulação de créditos incobráveis por parte dos bancos”, aponta Tiago Rosa, senior manager da EY.
A solução, diz Luís Lima, poderá assentar num pagamento faseado da dívida acumulada durante todos estes meses, distribuindo esse valor até 2022. “Proponho que a partir de setembro, empresas e famílias comecem a pagar apenas os juros e só ao final de um ano, em 2022, se volte ao pagamento normal da prestação mensal e dos juros”, acentua o presidente da APEMIP, acrescentando estar convicto de que “o setor do imobiliário será um dos que mais rapidamente recuperará” se for bem gerido.
Outra proposta que poderá ser colocada em prática para fazer face à necessidade de estímulo do mercado em tempos de recessão é a redução da taxa do IVA para 6%, aplicável à construção nova no segmento residencial, (ao invés dos atuais 23%). “O IVA é um dos principais custos dos projetos imobiliários e a sua redução será um forte atrativo para os investidores olharem cada vez mais para este segmento de mercado. Relembre-se que o sucesso desta medida na reabilitação urbana foi evidente e foi um dos fatores que permitiu a regeneração das grandes cidades que até há poucos anos estavam em grande parte devolutas e degradadas”, lembrou Tiago Rosa, da consultora EY.
Casas para arrendar em larga escala
Escasso e caro, assim se poderia caracterizar em duas palavras o mercado de arrendamento em Portugal. O problema arrasta-se há décadas e acaba por empurrar as famílias portuguesas para a aquisição de casas aumentando, consequentemente, o seu nível de endividamento junto da banca.
Uma carência de mercado que tem dado nas vistas lá fora e atraiu fundos de investimento que querem implementar aqui algo que há muito se consolidou nos Estados Unidos ou no Reino Unido. Chama-se PRS (Private Rented Sector), Multifamily ou, à portuguesa, residencial de rendimento e consiste na construção de raíz de edifícios residenciais para fins de arrendamento tradicional geridos por entidades institucionais como seguradoras e empresas especializadas e com custos mais controlados para as classes médias. O interesse por parte dos investidores é recente e vai começar a tomar forma a partir deste ano. A consultora Cushman&Wakefield (CW) apelida-o mesmo de “setor-estrela” e no seu mais recente relatório aponta para negócios na ordem dos 500 milhões de euros que irão ser fechados em 2021.
Um outro estudo recente, desta vez da JLL, intitulado “Multifamily – A market on the rise”, referia que já estão a a ser planeados vários projetos residenciais de grande escala e que dentro de cinco anos estarão disponíveis cerca de 3.000 fogos para arrendamento ao mercado nacional.
Lisboa e Porto e respetivas Áreas Metropolitanas são os principais alvos destes investidores, estando atualmente alguns projetos já previstos para a zona da capital, diz a JLL.
Dentro da cidade, os eixos da Alta de Lisboa e Ajuda são as zonas com maior potencial para acolher este tipo de projetos, sendo áreas limítrofes como Miraflores, Carnaxide e Algés também localizações de grande interesse. Mas não só. De acordo com a JLL, “o mercado de Multifamily encontra oportunidades num raio de ação mais abrangente, considerando destinos atrativos os concelhos na margem sul do Tejo, como Almada e Barreiro, além de olhar ainda para Loures, a norte da cidade”.
Alguns destes projetos vão ser lançados já no próximo ano. “Há neste momento promotores que em vez de construir para vender, estão antes a construir para arrendar e admitimos que em 2021 vamos ver já projetos Multifamily a serem desenvolvidos de raiz para serem entregues em 2023 ou 2024”, apontou à Visão Imobiliário, Fernando Ferreira, responsável pela área de Investimento, na JLL, acrescentando que estes ativos se agrupam na mesma classe de outros produtos que já começam a consolidar-se por cá como as residências de estudantes e o senior housing, que vão ao encontro “do investimento feito nos últimos anos para promover Portugal como destino ideal para as pessoas viverem, trabalharem ou estudarem”.
O responsável adiantou ainda que os efeitos da pandemia sobre outros setores pode mesmo levar à canalização de edifícios com outros usos para este setor.
“Nos próximos tempos vamos ver a reconversão de hotéis e também de outro tipo de ativos para edifícios residenciais de rendimento. Eu diria que em 2023 já vamos ver os primeiros projetos a surgirem no mercado e em 2024, já com uma escala maior. E a partir do momento em que haja uma oferta qualificada e com alguma dimensão começaremos a ter uma evidência concreta de nivelamento de rendas, algo que não se conseguiu até agora”, assegura Fernando Ferreira.
Os mais penalizados
2021 vai ser um ano difícil para dois setores específicos do imobiliário: a hotelaria e os centros comerciais. “Esses são, sem dúvida, os grandes pontos de interrogação… Ainda que a vacinação e o consequente levantamento progressivo das restrições à mobilidade das pessoas vá seguramente contribuir para a recuperação da indústria hoteleira, existe, por outro lado, uma dificuldade crescente por parte de alguns pequenos operadores”, diz Paulo Sarmento, diretor do departamento de Investimento da CW.
Estes hotéis, “alguns de matriz familiar, que já estão em dificuldades apesar de todas as ajudas, moratórias e layoffs, vão passar um inverno muito difícil. Muitos nem chegarão a setembro, o final do prazo das moratórias”, reforça Paulo Sarmento, perspetivando para essa altura um maior fluxo de transações envolvendo unidades hoteleiras na mira de fundos oportunísticos.
Bem longe da mira dos fundos de investimento estão os centros comerciais, neste momento. A ‘culpa’, diz Paulo Sarmento, é do Governo que mudou as regras do pagamento das rendas.
As rendas das lojas dos centros comerciais assentam habitualmente numa componente fixa e numa variável quando o estabelecimento atinge uma espécie de ‘break-even’ da sua receita mensal. No ano passado, porém, o Governo decretou que as rendas seriam pagas apenas com base na componente variável. Uma medida que veio ao encontro das aspirações dos lojistas mas que enfureceu os proprietários dos centros comerciais que viram neste momento o seu valor de mercado “reduzido a zero”, sublinha o mesmo responsável.
“O maior negócio de sempre do imobiliário português desde que há registos – a venda do portefólio dos seis centros comerciais do Sierra Fund (entre o quais o Colombo), por 525 milhões – concretizado em fevereiro do ano passado, antes do confinamento, é uma operação que dificilmente seria fechada hoje… A incerteza que existe sobre o setor dos centros comerciais devido à alteração legislativa introduzida pelo governo e que basicamente impede os proprietários dos centros comerciais de cobrar rendas fixas, obviamente semeou o caos”, aponta o responsável da CW, sublinhando que neste momento é impossível transacionar shoppings em Portugal porque ninguém tem uma visão de como vai ser o comportamento destes ativos nos próximos tempos ao nível das rendas.
“Se não se sabe quanto é que um shopping vai faturar, também não se sabe quanto é que ele vale. E onde não há um preço, não há um negócio, não é?”, interroga ainda Paulo Sarmento.
Culto da casa estimula negócios
A pandemia empurrou as pessoas para dentro das suas casas e o confinamento prolongado levou-as a aprimorar os seus espaços. Lojas de decoração, bricolage e eletrónica de consumo viram as suas receitas disparar trazendo dinamismo aos espaços comerciais onde se encontram integradas, uma tendência que se irá manter em 2021, demorado que está o processo de imunização da população face ao coronavírus.
“Temos registado uma recuperação mais célere nos retail parks em relação ao formato dos centros comerciais e isso deriva de três situações: a primeira é o sentimento de segurança que as pessoas sentem pelo facto de serem projetos ao ar livre, bastando aos clientes estacionarem frente à loja e irem diretamente ao espaço. A segunda é a própria dimensão das lojas que permite um maior número de pessoas no seu interior. E terceira é que encontramos nos retail parks formatos que não foram expostos a esta crise como a decoração, bricolage e a eletrónica de consumo”, explica Carlos Récio, diretor do departamento de Retalho da CBRE, consultora que gere oito centros comerciais e seis Retail Parks.
Menos sorte está a ter o comércio de rua nas zonas centrais de Lisboa e do Porto, arredados que estão os turistas que asseguravam as suas receitas. Mas as quebras não alteraram nem deverão alterar os valores das rendas em 2021, diz Carlos Récio. “Ao contrário de outras cidades europeias com mais dimensão, em Lisboa e no Porto as zonas prime para retalho são reduzidas a duas ou três ruas apenas. Daí a sua capacidade de resiliência. O que se está a assistir é a prática de incentivos adicionais como descontos nos dois próximos anos que já se prevê que sejam mais difíceismas não uma quebra drástica no valor das rendas”.
Já nas zonas secundárias é diferente e já se começa a sentir a pressão “com a quebra das rendas, em alguns casos, a chegar aos 20%”, uma tendência que se manterá em 2021.
Um ano que será mais um teste à resiliência de um dos mais importantes setores da economia nacional.