Com o romance de estreia, As Primeiras Coisas, de 2013, venceu o Prémio Saramago e deu-nos a conhecer o Bairro Amélia, que é um território de ficção, mas se inspira diretamente no Vale da Amoreira, no concelho da Moita, bairro ocupado por quem chegava das ex-colónias em 1975, como o seu pai, onde cresceu. Nascido em 1978, diz-se “filho do 25 de Abril” e da democratização do País, mas, hoje, não hesita em assumir-se de direita.
O seu mais recente romance, Toda a Gente Tem um Plano (Quetzal, 216 págs., €18,80), volta a aproximar-nos da vida nos bairros suburbanos, e das derivas que daí podem nascer. Acompanhamos Calita, uma personagem que tanto nos atrai como repele, sempre à procura de um futuro, sempre a tropeçar. As semelhanças com a realidade não são mera coincidência.
Quando sentiu que a realidade do bairro onde cresceu, a sua vida e, sobretudo, as vidas à sua volta podiam transformar-se em literatura através de si?
Em 2007 o meu pai, que na altura estava a viver em França, veio de férias a Portugal. Contou-me muitas histórias e episódios do período em que o bairro começou, quando foi ocupado. Lembro-me de partilhar essas histórias, algumas bastante inacreditáveis, com um amigo e de ele me ter dito algo como “aí tens o material para o teu romance”.
Ficou a pensar no assunto…
Ele disse-me isso porque já lhe tinha falado de algumas tentativas que tinha feito, de uma aproximação a uma espécie de romance passado naquele ambiente. Mas nada do que eu tinha feito me soava a verdadeiro. Tinha as personagens, as situações, mas tudo me soava a falso, parecia vindo de alguém que não conhecia aquilo, a escrever de forma excessivamente melodramática, a querer fazer literatura. O tom não estava certo. Era tudo falso, só o meu desejo de escrever sobre aquele mundo era verdadeiro.
E como encontrou o tom certo?
Terá sido por volta de 2009, quando escrevi um texto que acabou por ser um dos últimos capítulos do livro As Primeiras Coisas, sobre o Zeca. Publiquei-o num blogue, que nem era um blogue literário…
Qual?
Era um blogue político, coletivo, o Cachimbo de Magritte. E fiz esse esboço de uma personagem, inspirada em alguém real, que até tinha esse nome. Foi aí que pensei: “E se eu fizer isto sobre mais personagens, acontecimentos, memórias?” Um pouco depois, pensei escrever sobre a experiência de, aos 15 anos, ter desistido da escola durante um ano para trabalhar num café lá do bairro. E quando comecei a escrever, percebi que já tinha alcançado uma tal distância em relação a esses acontecimentos que podia moldá-los literariamente. Gostei muito da sensação. Foi aí que comecei a encontrar o registo do que viria a ser As Primeiras Coisas.
No novo romance, Toda a Gente Tem um Plano, volta a escrever sobre uma personagem real. O Calita existe mesmo, certo?
Sim, mas chama-se Canina.
É alguém que conhece bem, ou houve um trabalho, quase jornalístico, de investigação?
Não houve grande investigação… O que houve foi uma afinidade entre duas pessoas, que cresceram no mesmo sítio e passaram uma parte significativa da infância e do início da juventude no mesmo lugar e que, depois, seguiram caminhos completamente diferentes. Já o tinha encontrado antes de escrever As Primeiras Coisas, e até inspirou algumas passagens e pormenores do livro. Voltámos a afastar-nos. Não éramos, propriamente, amigos. E há uns anos reencontrámo-nos, no Barreiro, onde vivíamos, ele numa casa abandonada. Fomos conversando, por acaso, e nunca cheguei a combinar nada como uma entrevista, ou algo assim. Numa das primeiras dessas conversas, ele disse-me: “Tens de escrever um livro sobre a história da minha vida.”
E ficou mesmo a pensar nisso…
Muitas vezes íamos no barco, os dois, numa viagem de 20 minutos, dava para me contar muitas coisas da vida dele, da infância, de que eu não fazia a mínima ideia. Era alguém que sempre que parecia que estava a recompor-se, sofria mais um golpe. A certa altura, sim, comecei a pensar que tinha de arranjar uma maneira de escrever sobre tudo isso, coisas que ele me contava em pequenos lampejos.
O Canina já leu o livro?
Não. Neste momento, está a trabalhar na Holanda.
Este livro sobre o Calita chegou numa altura em que a atualidade noticiosa nos pôs a olhar para bairros suburbanos, para jovens que são descritos como perigosos para a sociedade, para os acontecimentos que se seguiram à morte de Odair Moniz. Quando vê essas notícias, pensa em Calita, ou noutros “Calitas”? E em mal-entendidos que podem carregar injustiças no nosso modo de olhar?
Penso que além de um plano, toda a gente tem uma história. Eu não escrevo com essa intenção de corrigir os males do mundo, ou dar a conhecer uma realidade pouco conhecida… Mas acredito que a ficção, pelo seu método, que passa por aproximar-nos de vidas e histórias, permite furar a película que envolve as massas anónimas, seja de que estrato social forem, e olhar bem para casos individuais. O grande instrumento do romance é esse: permitir ver o indivíduo no seu todo, indo aos pormenores, ao seu interior. Nas nossas vidas, o que é que conhecemos das outras pessoas? Muito pouco… Perceções e generalizações que fazemos a partir de um ou outro pedaço de informação.
Mas sente que há uma injustiça nalgumas generalizações que se fazem quando rebentam estes casos nos chamados “bairros perigosos”?
Não me revolta, nem vejo como uma injustiça… O mundo é assim. Na maioria dos casos, vivemos com essas generalizações, que nos são confortáveis. O esforço humano que tínhamos de fazer para conhecer tudo, todos os contextos, é irreal, não é possível. Se uma pessoa vivesse com esse ideal de empatia… estoirava, não aguentava. Agora toda a gente fala de “empatia”, uma “empatia” completamente artificial e falsa, uma coisa idiota. Mas é importante que essa insensibilidade, que muitas vezes é um método de autodefesa e autopreservação, não degenere em ações que contribuem para agravar as injustiças. Eu não escrevo para corrigir perceções erradas, mas pode ser que, às vezes, tenha esse efeito colateral.
Se um leitor lhe disser “li o seu livro e senti imensa empatia pelo Calita e por pessoas como ele, obrigado”, fica irritado com essa tal “empatia”?
Ótimo. Se a pessoa se sentir bem, ótimo. Mas, na maior parte das vezes, sinto que essa questão da “empatia” é uma história que as pessoas contam para se sentirem bem consigo próprias. Não muda rigorosamente nada na vida das pessoas pelas quais dizem sentir empatia. “Ah, condoo-me com o sofrimento do outro.” E então?! E depois disso? Caímos quase no cliché do “coitadinhos dos pretinhos…”. Isso serve exatamente para quê? Para anunciares que és uma pessoa muito empática? O que muda na realidade? Mas amar uma personagem de ficção, sentir empatia por ela, é fácil, temos acesso a tudo, é uma construção. Na maioria dos casos, as pessoas não têm acesso a todos esses factos em relação aos outros. É mais fácil amares o Raskólnikov [personagem de Crime e Castigo, de Dostoiévski] do que o teu vizinho do 5º esquerdo.
Tem-se aproximado da chamada direita democrática em muito do que escreve, de opiniões partilhadas…
É engraçada essa necessidade de acrescentar sempre o “democrática” a seguir a direita. Antes era tudo corrido a “fascista”, agora já se fala em “direita democrática”, mas sempre em risco de contaminação, a qualquer momento caem para a extrema-direita e transformam-se em fascistas outra vez [Risos].
E parece ter alguma irritação com uma espécie de obrigação, em Portugal, de que todas as figuras das artes e letras sejam de esquerda. Ainda sente isso?
Ainda funciona assim…
Em 2020 assinou um manifesto [A Clareza que Defendemos], em que também estava o músico Samuel Úria, que levantou essa questão… Parece que é sempre surpreendente para a opinião pública ver figuras das artes a não alinharem pelos valores da esquerda.
É verdade. Muita gente olhou para o nome do Samuel Úria ali e pensou: “Mas porque é que este tipo é de direita?? Gosto tanto dele, canta tão bem, tem letras tão espetaculares…” Por defeito, estamos à esquerda. E se não estiveres, mais vale ficares calado, “pelo menos, disfarça e não digas que és de direita…”. No mundo das artes, e da literatura em particular, acho que isso não mudou muito desde meados do século XX, quando se dizia que havia uma ditadura política de direita no poder em Portugal e uma ditadura cultural de esquerda. Ainda é um bocadinho assim.
Coloca-se de fora dessa dicotomia ou assume-se como um escritor de direita?
Hoje não há grupos organizados, está cada um por si, mais ou menos… Os escritores não estão reunidos, não se encontram em partidos políticos. Há escritores de esquerda e de direita, mas estes últimos são mais difíceis de encontrar, é preciso procurá-los, alguns não quererão falar disso. Isso também não é o mais importante num escritor. Não me vejo como um “escritor de direita”.
Mas como alguém mais próximo da direita?
Claramente, sim. Não sou militante de nenhum partido, nunca fui. Mas identifico-me com o PSD, que tem correntes diferentes, como todos os grandes partidos, com algumas coisas da Iniciativa Liberal e até há coisas de um certo PS, não o atual, que não me repelem… Mas já votei PS, e não me arrependo.
Nesse assumir-se de direita há, também, um lado de irritação com uma certa esquerda?
Sim, muito. Estudei no ISCTE, no curso de História Moderna e Contemporânea, e lembro-me de uma vez estar a fazer um trabalho de grupo. Eu não tinha grandes conhecimentos de política, acompanhava a atualidade, mas não sabia quase nada dos fundamentos ideológicos de cada partido, não me identificava com nenhum… Tinha aquela atitude de concordar com umas coisas e discordar de outras, independentemente dos partidos e das ideologias. Até me lembro de ter votado no Bloco de Esquerda nas primeiras eleições em que concorreram, em 1999. Estava, então, nesse tal trabalho de grupo, para aí em 1997, e cometi a imprudência de dizer aos meus colegas que nas autárquicas desse ano tinha ponderado votar no CDS-PP. Percebi rapidamente que não devia ter dito uma coisa dessas… Fui logo ostracizado, olharam para mim como se tivesse dito que andava a violar velhinhas. Há um grande sentimento de superioridade moral da esquerda, sem dúvida. Eu sempre fui um bocado do contra, e ao ver algumas reações a certas coisas que eu dizia e escrevia, percebi que isso até me dava algum prazer.
Nasceu em 1978. Vê-se como um filho do 25 de Abril, resultado das chamadas conquistas de Abril?
Factualmente, se não tivesse havido 25 de Abril eu nem teria nascido [o pai de Bruno veio de Angola em 1975 e conheceu a mãe em Portugal]. Mas imaginando que havia um Bruno, mesmo assim… Sem o 25 de Abril esse Bruno não estaria aqui a ser entrevistado pela VISÃO, era muito improvável. A democratização, a escola pública alargada, as bibliotecas públicas… isso mudou tudo. Mesmo nos anos 90, ouvi gente na minha família a dizer que o Ensino Superior era para os filhos dos ricos. E eu senti bem esse fosso em relação aos meus colegas cujos pais já eram licenciados, um fosso enorme. Vivia a 40 minutos de Lisboa, mas era como se vivesse noutro planeta. As transformações que vieram do 25 de Abril permitiram que esse fosso fosse, pelo menos, disfarçado. Não sei se hoje não se está a aprofundar mais, outra vez.
Festeja o 25 de Abril?
Não, não desço a avenida, não saio à rua com cravos… Mas também não festejo o 25 de novembro [Risos]. Se a esquerda vê as comemorações do 25 de Abril como uma afirmação tribal, pronto, fiquem lá com a festa. Eu considero-me um filho do 25 de Abril, sim, e sei que essa é a grande data da transformação que houve em Portugal. Quando vêm com essa conversa do 25 de novembro… A data que marca o fim de uma ditadura de 48 anos foi o 25 de Abril, que deu início a um processo, que tem outras datas, claro. Tornou-se um jogo de disputa simbólica: a ver se tenho força suficiente para impor a minha data… Não festejo o 25 de Abril, mas passo aos meus filhos a importância de vivermos em democracia, com liberdade. E tenho um bocadinho de libertário, mas não sou maluco.
Isso do libertário, hoje, faz pensar naquela espécie de anarcocapitalismo do Javier Milei, na Argentina…
Às vezes, é preciso um tratamento de choque. As coisas podem chegar a um tal estado de entropia, que é preciso haver um choque. Como no caso de um sítio sem regras, de cada um por si, seria preciso um reforço do Estado para regular as coisas… Eu acredito no Estado ao serviço dos indivíduos, num Estado regulador, mesmo que mínimo… O problema é que um Estado que só regule tem pouco poder até para regular. Mas quando ganha força, já não quer ser só regulador e pode transformar-se numa grande máquina que se alimenta a si própria. Enfim, não vamos resolver aqui essas questões… Costuma dizer-se que as democracias são frágeis. Mas ainda bem que são, porque fortes são as ditaduras! São frágeis, chatas, é tudo aborrecido… É só gente sem carisma, uns chatarrões. O António José Seguro, por exemplo, que, coitado, até leva porrada, com uma fúria que não percebo, dos seus correligionários… Acho-o um tipo muito decente, comprava-lhe um carro usado, até dois, mas olho para ele e penso: “Eu não votava neste gajo.” É o rosto de quão aborrecida pode ser a democracia. E as pessoas querem emoções… O André Ventura dá emoções, não só aos seus eleitores como a muitos jornalistas, mesmo os que nunca votariam nele.
Esta dupla Trump/Musk, com tanto poder, assusta-o?
O excesso de poder é sempre mau. O poder absoluto corrompe absolutamente, não é? E quando há uma tal concentração de poder, isso é um perigo. Uma das coisas boas dos EUA é aquele sistema dos “checks and balances”, que, supostamente, permite limitar esse poder absoluto… Mas claro que há um perigo, até porque a fonte de informações da maioria das pessoas hoje passa pelas redes sociais, especificamente pelo Twitter [atualmente X, propriedade de Elon Musk]. Não sou catastrofista, não acho que os EUA vão transformar-se numa ditadura, não creio que vá ser o fim do mundo, mas pode ser o início do fim… [Risos.] Até onde é que o império está disposto a ir para não colapsar? E quando está disposto a chegar até certo ponto, pensando, por exemplo, em armas nucleares, isso não significa que já colapsou? Espero que quando sair do poder, Trump não tenha estragado muito.
E acha que têm potencial literário?
Todos os indivíduos têm um potencial literário. Um romance é sempre a forma como o contas, não há apenas factos, não basta uma boa história. Estou a pensar n’O Outono do Patriarca, do García Márquez, que narra a vida de um ditador duma forma barroca que condiz com aquele ambiente… Para o Trump, imagino talvez um romance escrito pelo Bret Easton Ellis, com muitas referências a marcas, muito simplismo e tremendismo.