Luís Oliveira e Silva, 54 anos, é professor catedrático do Instituto Superior Técnico, onde coordena o Grupo de Lasers e Plasmas no Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear. Há um mês, numa cerimónia realizada na Academia de Ciências de Lisboa, recebeu a Medalha Blaise Pascal, sobretudo pela sua investigação em aceleradores a plasma. Em entrevista à VISÃO, entre muitos outros assuntos, fala sobre a importância deste prémio e também acerca do papel das universidades nas sociedades atuais. Olha para o poeta António Maria Lisboa, que diz “totalmente insubmisso”, como uma referência por causa do seu “desejo de ir mais além”.
Que importância teve ganhar a medalha Blaise Pascal, para si e também para a comunidade em que está inserido?
É sempre importante quando o nosso trabalho é reconhecido. Obviamente que estes reconhecimentos se refletem em mim, mas também são o resultado do trabalho que, ao longo do tempo, desenvolvi com a minha equipa e com as pessoas com quem tenho colaborado. Tudo isto não só tem reflexos na visibilidade do nosso trabalho, interna e externamente, como também acaba por amplificar o impacto do que fazemos.
A visibilidade continua a ser um dos problemas da academia?
Nunca senti essa dificuldade. Para nós, sempre foi importante transmitir o que fazemos. Claro que é um desafio conseguir comunicar para lá das fronteiras da nossa comunidade. Nem sempre o conseguimos, mas penso que estamos a fazê-lo cada vez melhor.
No seu CV, diz que o seu motto é “exceder-se de tal forma que não seja possível conceptuar-se”, uma citação atribuída por Mário Cesariny ao António Maria Lisboa. Em que medida se identifica com esta frase?
Gosto muito do movimento artístico do modernismo. O princípio do século XX foi muito estimulante, não só nas artes mas também nas ciências. É o período em que vemos a revolução da mecânica quântica, Einstein, tratou-se de facto de uma altura fascinante do ponto de vista cultural e científico. O António Maria Lisboa morreu muito cedo, com 25 anos, mas foi totalmente insubmisso na procura da visão que ele tinha da poesia, da filosofia poética que ele perseguia. Não tinha dinheiro, mas foi para Paris porque queria conhecer a comunidade surrealista da altura. E não estava disponível para fazer qualquer tipo de concessão em relação ao seu objetivo. Sempre entendi que devemos ser ambiciosos, que não devemos ceder nos objetivos que traçámos. Não é comum os cientistas assumirem-no, eu sei, mas sempre me inspirou este desejo de ir mais além.
Em termos de investigação, o que de mais importante tem em mãos?
Depende do que se considera importante… Há coisas importantes porque têm impacto na vida das pessoas. Há coisas importantes porque são intelectualmente mais estimulantes e me dão prazer. E depois há o que é importante para a comunidade.
Vamos primeiro à última hipótese: o que a comunidade científica considera importante.
Vou tentar explicar isto assim: a minha área genérica, que é a física dos plasmas, tem um grande objetivo desde que foi fundada, em 1958, quando se realizou uma conferência em Genebra, na sequência da qual se desclassificou a investigação. E esse grande objetivo é conseguirmos, no curto prazo, construir uma central de fusão nuclear que forneça energia para a rede elétrica. Isto tem dimensões de ciência fundamental, de ciência aplicada, de engenharia, de economia, de ética… Há dois anos, houve um grande resultado nos EUA, no Lawrence Livermore National Laboratory: foi demonstrada a ignição, o processo através do qual a energia que é libertada da fusão nuclear é superior aquela que foi injetada na pequena esfera de combustível. Até tornar isto uma central nuclear, uma central para produção de energia elétrica, há um conjunto de passos…
No ano passado, num artigo publicado no Público, escrevia: “Arrisco-me a prever (e a apostar!) que, nos próximos dois anos, outro enorme avanço irá acontecer na área da fusão nuclear, agora do lado da fusão por confinamento magnético.” Continua a apostar?
Continuo, continuo.
Falta um ano, portanto.
E acho que não vou falhar por muito [risos]. Esta procura da fusão nuclear tem seguido essencialmente dois caminhos: uma via com lasers, uma esfera de combustível que é irradiada ou comprimida; a outra via é criar um género de uma garrafa, um donut magnético que guarde lá dentro o combustível. A primeira foi seguida nos EUA em ligação ao programa de defesa, para testar as condições das armas nucleares. A Europa tem apostado na segunda via, associada a grandes máquinas, como o projeto ITER [Reator Termonuclear Experimental Internacional]. Muitas dessas máquinas foram desenhadas com tecnologia dos anos 80 e 90, mas entretanto tem havido evoluções, sobretudo nos materiais supercondutores, que permitem ter campos magnéticos mais fortes. Um conjunto de avanços, nomeadamente no MIT, permitiu lançar uma empresa, a Commonwealth Fusion Systems, que está a desenvolver uma máquina de confinamento magnético, mais pequena e mais fácil de construir do que a do ITER. Portanto, tudo indica que vão conseguir fazer uma máquina em que a energia que é libertada será maior do que a energia que é injetada. Ainda estamos longe de fazer uma central elétrica, mas estes passos estão a mudar completamente a perspetiva dos investidores, das agências de financiamento e dos governos.
Neste momento, o que lhe dá mais prazer investigar?
Duas questões que parecem disjuntas, mas que estão relacionadas. Em primeiro lugar, como é que conseguimos luz em matéria? Quais são as intensidades luminosas, qual o tamanho dos lasers que temos de usar para produzir eletrões, positrões, matéria, antimatéria no laboratório? Será que com laser de determinada energia conseguimos gerar eletrões e positrões como fontes para aplicar? Em segundo lugar, sabemos que há locais no Universo, com física muito semelhante a esta, onde existe apenas luz e subitamente aparece matéria e antimatéria. Sabemos que isto acontece, nos buracos negros, por exemplo. Estes objetos emitem ondas de rádio e têm propriedades na luz que não conseguimos explicar. As ferramentas, os métodos e os modelos computacionais que usamos para estudar estas duas físicas são muito semelhantes e isso é particularmente interessante porque nos coloca numa oposição que é única.
Como é que um cientista concilia o seu interesse em determinadas áreas e o interesse para a comunidade?
Só posso falar da minha própria experiência. Tenho uma teoria, que digo a todos os meus estudantes quando têm de decidir o que vão fazer: há problemas intelectualmente estimulantes em todas as áreas da atividade humana. E isto também acontece na Física: neste momento, estou a trabalhar nestes tópicos, mas se, por outras razões, tiver de trabalhar noutros, não há problema. Agora, o que me leva a mim a escolher? Os estudantes, as áreas em que eles querem trabalhar e se sentem mais entusiasmados. Muitas vezes, alinho os meus interesses de investigação com o que eles querem. Também é importante alinhar com o que as agências de financiamento estão a privilegiar. Porque, sem recursos, não consigo pagar aos estudantes, não consigo viajar, não consigo comprar equipamento.
Na Ciência, não é possível trabalhar sozinho, como apesar de tudo é possível na literatura, como aconteceu com António Maria Lisboa?
Bom, António Maria Lisboa conseguiu falar com André Breton e com os outros surrealistas, mas quando regressou dessa ida a Paris já vinha com tuberculose… Pelo menos na minha área, concordo que é muito difícil trabalhar sozinho, a Física é incompatível com esse trabalho de ermita. Talvez no princípio do século XX fosse possível, mas mesmo nessa altura a questão da comunidade científica já era importante…
Este ano, quer o Prémio Nobel da Física quer o da Química foram para a área do machine learning.
O que isso nos diz?
Acho que nos diz que existe uma grande excitação, um grande interesse à volta da aprendizagem automática. É natural, são ferramentas excecionais. Talvez exista também um grande desconhecimento sobre o assunto… Acho isso espetacular, é claramente uma fronteira, porque não percebemos exatamente como aqueles modelos funcionam. Para um físico, que se rege por leis, aquilo ainda é um bocadinho uma caixa negra, põem-se umas coisas de um lado, saem umas coisas do outro. Dou uma cadeira que se chama Descobertas da Física Moderna, que é uma cadeira menos técnica, mais de cultura e da história da Física, e reparei que, subitamente, os estudantes estão a escrever com uma fluência notável [risos]. Significa que estão a usar as ferramentas – e bem! A reflexão que faço é que, provavelmente, não faz muito sentido estarmos a treinar os alunos para escrever com alta qualidade, o necessário é explorar outras dimensões do que eles têm de aprender. Porque, de facto, ponho uma lista de pontos no ChatGPT e digo-lhe para fazer aquilo como se fosse o António Maria Lisboa e ele faz-me um poema que reproduz o vocabulário e o estilo. [Risos.]
Portanto, o Nobel é sobretudo um reflexo dessa descoberta?
Os físicos ficaram um bocadinho perturbados com a atribuição do Nobel… John Hopfield é formado em Física, mas em relação a Geoffrey Hinton já tenho mais dúvidas de que se enquadre naquilo que é o cânone da Física. Várias pessoas me provocaram, perguntando: agora dão o Nobel a pessoas que não são físicos? Citei Wolfgang Paul, um físico que era conhecido por ser bastante polémico e confrontacional, que dizia (não sei se me devia citar nisto…): “All science is physics or stamp collecting”. Portanto, a ciência ou é a física ou é coleção de selos [risos], que é uma frase muito…
Ortodoxa?
Bastante ortodoxa. Não quero que pensem que partilho desta opinião, que não partilho. Mas há aqui qualquer coisa de bastante profundo: a física tem uma forma de olhar para os problemas, procura um conjunto de leis fundamentais, princípios baseados em simetrias, leis de conservação, isso tudo… E o seu sucesso, desde Galileu, é baseado nesta perspetiva. Muitas das outras ciências reproduzem também uma parte dessa procura e, portanto, é normal que as fronteiras da física se expandam cada vez mais, à medida que a maturidade nas outras ciências se aproximam desta visão.
A Europa está preparada para recuperar a distância que tem perdido face aos EUA no que diz respeito à Ciência?
Do ponto de vista competitivo, não estamos numa situação que nos seja muito favorável. As grandes instituições de referência, que atraem as melhores pessoas do mundo, estão nos EUA. A Europa tem de fazer escolhas e encontrar uma voz – até porque a China também está com uma pujança e uma capacidade extraordinárias, já está a ultrapassar os EUA naquelas métricas de produção científica. Gosto de pensar que sou um otimista, mas a realidade é bastante dura. A Ciência que tem impacto na vida das pessoas é feita com investimentos significativos e o investimento europeu em Ciência é uma fração, um terço ou um quarto, do investimento norte-americano.
Qual o papel das universidades e dos cientistas num mundo dominado por fake news, opiniões e desprezo pela evidência, sobretudo na tomada de decisões?
Tenho pensado muito nisso… As universidades são instituições, quase por definição, imutáveis, no sentido em que as coisas mudam em escalas de tempo muito longas. São, por isso, instituições muito fortes. Estão cá há 900 anos e, provavelmente, daqui a 900 anos, ainda cá estarão.
Provavelmente, foi isso que as fez sobreviver.
Pois, mas nesta fase a velocidade e a transformação tecnológica e social são absolutamente avassaladoras. Como é que as instituições se adaptam a isto? Se há pessoas, se há comunidades que conseguem – não diria guiar, porque parece um pouco paternalista – colaborar na interpretação do mundo de uma forma crítica, sistemática e estruturada são as universidades.
Como é que isso pode ser feito?
Não sei, há uma grande diferença nas escalas de tempo. Todos sentimos que é cada vez mais importante o contributo das pessoas que são especialistas, que têm o conhecimento científico, que conseguem fazer as sínteses e as análises. O problema é que a velocidade a que essa reflexão é feita nas universidades ainda é um bocadinho lenta para aquilo que são as necessidades atuais. A curto prazo, podemos dar mais visibilidade a essas pessoas para que a sua voz seja ouvida de forma mais presente. A médio prazo, na minha opinião, o maior impacto ainda é na formação e no treino dado por um professor universitário. Se fizermos as contas, no final da carreira, um professor cruzou-se com um número extraordinário de alunos. Se ele conseguir transmitir um conjunto de valores (nem é tanto o conhecimento para resolver equações…) que os alunos vão depois transportar para os seus contextos, isso tem um valor muito superior a qualquer informação que eu consiga transmitir durante uma aula.
No Orçamento do Estado (OE), o que está previsto para a investigação em 2025 é o valor mais baixo desde 2018, menos 68,1 milhões do que em 2024. Os constrangimentos financeiros no Ensino Superior em Portugal, para ensino e investigação, são um problema grave?
Do ponto de vista macro, há um indicador que nos deve deixar muito orgulhosos, que é o número de investigadores por mil habitantes. Trata-se de um valor comparável aos dos maiores países europeus. Mas, depois, há um outro número que nos deve deixar muito preocupados e o OE é apenas uma parte desse problema: qual é o financiamento disponível por investigador? E aqui estamos muito abaixo. Em relação aos EUA, é um fator 8 ou 9, mas até em relação a países que nos estão relativamente próximos é muito baixo: julgo que República Checa é um fator 2, Irlanda entre 2 e 3. Já fiz estas contas todas, até ajustando ao custo de vida, e há aqui um intervalo de investimento. Continuamos subfinanciados, e a diferença é muito grande. O meu grupo não sofre deste problema, porque atraímos muito dinheiro europeu, mas isto tem custos: significa equipas reduzidas a limites muito críticos e significa também que tudo é muito mais imprevisível. Não fomenta nas equipas a confiança para arriscarem mais, para ter projetos de médio e longo prazo. Tudo isto só aumenta a desigualdade. É o princípio de Mateus: os mais ricos ficam mais ricos, os mais pobres ficam mais pobres.