Podia ser só um clínico e professor catedrático da Universidade de Toronto com jeito para a escrita e alguns artigos científicos. Mas não é. Em Maps of Meaning: The Architecture of Belief (Mapas do Significado: A Arquitetura das Crenças) explicou a natureza humana à luz dos conceitos mitológicos do psicanalista suíço Carl Jung e da psicologia evolucionista. Após lecionar na universidade norte-americana de Harvard e ser consultor do secretário–geral da ONU Ban Ki-moon, Jordan B. Peterson converteu-se num pensador com fama mundial. Aos 56 anos, o youtuber tem uma legião de seguidores que veem nele um líder (ou superpai) da sociedade pós-moderna, que diz o que pensa num estilo frontal. Em 12 Regras Para a Vida: Um Antídoto Para o Caos (Lua de papel, 487 págs., €17,90), uma dessas regras é, simplesmente, “Levante a cabeça e endireite as costas”. Nada leva a crer que este homem elegante e afável é um agitador de mentalidades, avesso ao politicamente correto e apostado em ressignificar o conceito de masculinidade. “Há muito poucas diferenças entre a capacidade para o caos e a destruição e a força de caráter – esta é uma das lições mais difíceis de aprender na vida.” Ouçamos o que tem a dizer.
Que balanço faz da digressão que já dura há três semanas?
Muito bom. Passei por 200 cidades com auditórios cheios [assim aconteceu também na Nova SBE, em Carcavelos]. É muito gratificante falar para tantos milhares de pessoas interessadas em organizar as suas vidas, na família e na comunidade. No primeiro livro, investiguei a raiz psicológica das atrocidades dos regimes totalitários e, para as evitar, é preciso fortalecer a responsabilidade individual para que, quando as coisas começam a correr mal, haja a coragem de fazer algo logo no início, e não tarde demais.
Ter crescido num clima inóspito moldou o seu caráter?
Certamente. Quando se vive num sítio duro (Alberta do Norte, Canadá), não se romantiza a Natureza, ela pode matar-nos, como sucedia a homens embriagados que morriam congelados após saírem de um bar e antes de chegarem a qualquer sítio. Com 40 graus abaixo de zero lá fora, fica-se grato por ter um sítio quente.
No livro descreve em detalhe o comportamento da lagosta. O que nos ensina esse crustáceo territorial, “com 350 milhões de anos de sabedoria prática” , regido por hierarquias de dominância?
No Ocidente, há quem pense que as hierarquias nasceram com o capitalismo e fomentam a desigualdade. Não é assim. Estas estruturas de organização milenares devem ser olhadas de forma mais séria. As pesquisas neste campo mostram que, quando as sociedades se tornam ricas e igualitárias socialmente, as diferenças entre homens e mulheres, ao nível da personalidade e dos interesses, tendem a aumentar. Isto é mais evidente nos países do Norte da Europa: oportunidades iguais não se traduziram em mais semelhanças entre os sexos.
As diferenças de género estão no cérebro ou são socialmente construídas?
Há uma grande diferença entre dizer que o género é parcialmente construído ou apenas socialmente construído. Existe uma visão totalitária que ignora as evidências científicas de que somos, também, criaturas biológicas. Subjacente a ela talvez esteja a motivação de manipular essa variável e criar uma pessoa neutra em termos de género, não sei.
Foi o que esteve na base da contenda com a Universidade de Toronto, há dois anos, por se recusar a usar pronomes pessoais construídos no trato com pessoas transgénero?
A questão era: obrigavam-me a fazê-lo, o que é contra a liberdade de expressão. Estes pronomes não resultaram de manifestações espontâneas, mas de imposições ideológicas de académicos que entendem que o género é só uma construção social, e eu não entro nisso! Uma das razões pelas quais discordo das feministas coletivistas é por acharem que a sociedade é uma tirania patriarcal. Pois é, mas só numa pequena parte. Estamos bem melhor do que no passado e muitos locais do mundo estão a prosperar, e não é porque uns tiranizam outros mas porque, de um modo geral, há cooperação e confiança. Só precisamos de estar vigilantes para que a hierarquia não seja corrompida, para que não se entre na patologia da ordem. Falta é gratidão e há alguma cegueira! Quem vive no Ocidente e não reconhece isto está adormecido. Tudo podia ser tão pior, e geralmente tem sido. Não se deitam abaixo as muralhas que nos protegem, a menos que se queira ser comido pelos monstros, que estão em todo o lado.
Até em nós.
Com certeza. Em certas circunstâncias, a proteção é apropriada e a compaixão também, mas quando isso se faz em demasia, é destrutivo e pode devorar-nos.
É problemático ter compaixão em excesso?
À medida que a criança cresce, é preciso recuar na proteção e fomentar a autonomia. A proteção excessiva atrofia, razão pela qual digo que a compaixão é uma força devoradora.
Estudou as origens do mal. Como vê a tecnocracia e a ganância humanas, concentradas, muitas vezes, no tal 1% da população?
Há uma descrença nas grandes narrativas que unem as pessoas. Na sua ausência, não é viável competir nem cooperar em paz, e por isso continuam as guerras. As patologias do caos, onde tudo desmorona por falta de estrutura, não diferem das patologias da ordem, que “rigidificam” tudo numa estrutura única. Porém, não devemos descartar narrativas sem ter uma alternativa a elas.
Como interpreta o “trumpismo”? Estamos perante uma lagosta com um problema?
[Sorri.] Bem, pode entendê-lo assim, mas veja, Trump é uma anomalia difícil de categorizar politicamente. Vai ao Canadá, por exemplo, e diz: “Este acordo de comércio livre não é bom para o meu país, vamos renegociar”, como fazem os homens de negócios. Isto enerva a elite intelectual e é sentido como uma ameaça à ordem internacional.
Uma espécie de Guerra Fria num registo escaldante…
Mas Trump não envolveu os norte-americanos em guerras estúpidas e contraproducentes, como se verificou com os seus quatro antecessores. Há outra coisa a acontecer também: o terror das guerras mundiais, que foram catástrofes nacionalistas. Desde então, os europeus têm multiplicado esforços na regulação das interações entre nações e na criação de uma estrutura abrangente. Isto traz um problema: quanto maior a estrutura que une, maior a distância entre os cidadãos e quem os governa, burocratas sem rosto, dos quais as pessoas se sentem desligadas, e preocupadas por não terem qualquer autonomia ou controlo.
É pai de uma rapariga e de um rapaz, já adultos. Como educar para a autonomia?
Educar é algo que deve ser individualizado e deve permitir que as crianças assumam riscos. Se uma pessoa for ansiosa, insegura ou não tiver coisas para fazer, tende a proteger os filhos em demasia. Impede que corram riscos e se desenvolvam de forma competente. Infelizmente, isto passa-se em muitos parques infantis. Se as crianças se magoam acidentalmente, os pais ensinam-nas a ter medo: “Vês, avisei-te que ia acontecer.”
A boa parentalidade é estar presente, sem sufocar nem deixar andar?
O capítulo 5 do livro é sobre limites. Como saber que o seu filho se comporta de modo inapropriado. Se os pais são casados e comunicam bem, podem criar uma pessoa sensata em conjunto. Quando o vosso filho faz coisas que vos irritam e desagradam, é altamente provável que outros achem o mesmo. A coisa mais importante a fazer é ensiná-lo a socializar, a brincar bem com os outros e, mais tarde, a ser respeitoso com os adultos. Se querem ter um bom relacionamento com os vossos filhos para a vida, não permitam que eles façam coisas que vos levem a não gostar deles e a não agir no melhor interesse deles.
Hoje, muitas famílias não correspondem ao modelo tradicional. A figura da autoridade é imperativa? E no seio do casal?
Quando não existe essa figura, é mais difícil. Pense numa mãe solteira com um adolescente mais alto do que ela – não é assim tão óbvio que seja bem-sucedida a regular o comportamento dele ou que ele lhe dê ouvidos, até porque está a tentar ser autónomo. As estatísticas mostram que quando existe um casal, funciona melhor, mas isso não implica que as famílias monoparentais estejam condenadas ao fracasso, apenas que é difícil criar um filho sozinho, além de se trabalhar, porventura, mais. É por isso que a monogamia existe, com os progenitores a partilharem a educação dos filhos.
Quando lia o seu livro, lembrei-me da canção Boys Don’t Cry , dos The Cure. Sugere aos rapazes que endureçam, que limpem o quarto e que não sejam meninos. Este guia é uma tentativa sua de repor a ordem, no panorama da autoajuda?
Passamos o tempo a falar de direitos, de autoestima, de felicidade individual, e isso é pouco, falta profundidade. Pretendo chamar a atenção, de rapazes e de raparigas, para assumirem a responsabilidade por eles mesmos e, depois, na família e na comunidade. A responsabilidade dá significado à vida. Quando estabeleço essa relação nas palestras, as pessoas ficam em silêncio: ainda não tinham tido esta conversa como deve ser.
Costuma dizer que “pensar é difícil” e que “viver traz sofrimento”.
Basta estar atento às conversas triviais para perceber isso. Todos conhecemos ou vivemos situações de pobreza, perdas, dependências, solidão, doença, famílias fragmentadas ou disfuncionais. É preciso fazer alguma coisa com valor, no meio de tudo isto, dar-lhe um sentido e manter a casa em ordem. Nas viagens que fiz, conheci milhares de pessoas que conseguiram pôr a sua vida nos eixos. A minha meta é contribuir para que haja mais indivíduos honestos, responsáveis e resilientes. A cada relato que ouço, penso: “Boa, mais uma pessoa a conseguir!”
Como encara o movimento #Metoo?
Lembre-se de que 5% dos criminosos cometem 95% dos crimes. Casos como o de Harvey Weinstein, que foi longe demais. Estas reações e contrarreações são consequência do debate público. Haja liberdade de expressão para se chegar a um meio-termo. Não tenho mais nada a dizer sobre isto.
As mulheres têm razão ao afirmar que eles só querem ser rapazes Peter Pans e não homens a sério?
Hoje continua a ser importante querer confiar em alguém, sobretudo em tempos difíceis. Isso faz-se através de uma maturidade saudável, que não é passar da dependência para a tirania. O Peter Pan fica preso à Terra do Nunca por ser incapaz de encontrar uma alternativa ao capitão Hook, um tirano aterrorizado com a morte.
Mas o mito do Super-Homem também já não é credível. Na Regra 12 refere que ele só vingou junto dos fãs quando perdeu muitos dos seus poderes. Em que ficamos?
[Risos.] A alternativa é a maturidade recíproca. Um bom parceiro é alguém em quem confiar. Ser produtivo, honesto, forte e generoso é um bom ponto de partida. Porém, negociar é difícil. Cada um deve fazer o que pode para tornar isso real no quotidiano: ter um diálogo constante.
Assume na sua vida a monogamia e a religião como pilares…
E na verdade são para todos, quer tenham quer não tenham consciência disso. As estruturas básicas que nos guiam são religiosas, até mesmo no plano psicológico, porque pensamos através de histórias.
A neurociência e a religião nem sempre se dão bem…
Depende das pessoas com quem falar!