Professor de História Económica na Universidade de Oxford, o israelita Avner Offer tem uma carreira distribuída por universidades dos EUA, da Austrália e sobretudo do Reino Unido, onde se radicou. Em conjunto com Gabriel Söderberg, investigador do Departamento de História Económica da Universidade de Uppsala, na Suécia, lançou recentemente The Nobel Factor (O Fator Nobel), com a chancela da Princeton University Press, um livro que é uma análise minuciosa da lista de laureados com o Nobel da Economia.
No início do livro explica que o Nobel da Economia não é bem um Nobel. Porquê?
Os prémios iniciais resultaram do testamento de Alfred Nobel e começaram a ser atribuídos em 1901. O de Economia só surgiu em 1969, como iniciativa do Banco Central da Suécia, que fez a doação. O galardão recebeu até um nome ligeiramente diferente, o de Prémio de Ciência Económica em Memória de Alfred Nobel. Foi um gesto deliberado da família Nobel, para o distinguir dos outros, mas não resultou. Acho até um pouco insultuoso, mas acabou por tornar-se um Nobel como os outros, com o mesmo prestígio.
Disse insultuoso?
Sim. A família Nobel não se mostrou disposta a alargar a lista dos Nobel à Economia. Até porque o próprio Alfred Nobel não tinha a Economia em grande conta e não quis criar um prémio nessa área. Por outro lado, nem a Fundação Nobel nem a Academia Sueca das Ciências quiseram abrir mão do dinheiro do prémio e optaram então por um nome ligeiramente diferente. Mas nem acho isto hoje já uma questão muito relevante.
O seu livro parte do princípio de que os tempos mudaram por volta de 1970. Em que sentido?
Portugal estava numa situação diferente, mas noutros países europeus a ideia política dominante era então a social-democracia, que se baseia na igualdade de direitos. É a igualdade perante Deus, perante a lei, o voto para homens e para mulheres. E todos têm direito à sua segurança económica. Na década de 1970 deu–se a viragem para a economia de mercado. Cada um tem direito a tanto quanto consiga ganhar no mercado. Um princípio de desigualdade, portanto. Há quem chame a isto um sistema de meritocracia, mas não é verdade, porque não recompensa as pessoas só pelas suas capacidades, mas também pelo dinheiro, pelo seu capital. E penso que o Nobel da Economia tem sempre fornecido a teoria que justifica esta perspetiva então surgida. Veio dar-lhe a autoridade de uma Ciência.
Em termos práticos, como tem o Nobel influenciado a economia mundial?
Deixe-me dar um exemplo. Antes de 1970, a taxa marginal de imposto paga pelos mais ricos, isto é, só a parte do IRS que ultrapassa determinado patamar, era de 70% no Reino Unido e 90% nos EUA. Mas surgiu a “teoria da tributação ótima”, que considerava aquele princípio desencorajador do trabalho, do esforço. Esta teoria valeu um Nobel a James Mirlees em 1996. E a taxa marginal de imposto desceu para 35 a 28 por cento. Gerou-se uma tal desigualdade, que hoje constitui um grande problema internacional. Mas começou por ser justificada por essa teoria económica de que cada um ganha o que merece.
Menciona várias vezes o papel de Milton Friedman e da sua Escola de Chicago. Aliás, diz que ele era o economista mas citado.
Só durante uns anos.
Depois, essa escola não se revelou um fracasso?
Receio que não. A Escola de Chicago continua a ser muito influente. Além do mais, está alinhada com a grande finança. Portanto, cumpre o papel de justificar os interesses desses grupos. Aliás, economistas ligados à Escola de Chicago continuam a receber o Nobel, como Eugene Fama, por exemplo, em 2013. E Friedman ainda é muito citado. Fazendo as contas ao conjunto dos Nobel que analisei, desde o início, em 1969, até 2005, o economista mais citado no total é Friedman. Mas, numa média anual, o mais citado é quem representa o oposto dele, Joseph Stiglitz, que é o laureado mais próximo da social-democracia. Aliás, quando o Comité Nobel escolhe os vencedores, tenta cuidadosamente encontrar um equilíbrio, entre esquerda e direita, entre teorias, entre Chicago e os seguidores de Keynes. Eles procuram parecer justos. O mais importante para o Comité é ser credível, para levar as pessoas a pensar que aquilo representa a melhor economia que é feita.
Se tentam ser equilibrados, onde está o problema?
A esquerda dos laureados com o Nobel é, mesmo assim, constituída por pessoas a favor de soluções de mercado e não da social-democracia. Acreditam nos mercados, que se baseiam na desigualdade.
Acha, portanto, que o prémio foi criado para combater a social- -democracia?
Não exatamente. A social-democracia não se apoia numa teoria profunda. Não precisa de teoria, porque a ideia é muito simples. Há períodos no ciclo de vida, seja a maternidade, a velhice, a doença ou o desemprego, em que as pessoas não têm capacidade para produzir. Portanto, os que estão a produzir suportam os que estão dependentes. E, ao longo da vida, todos vão passando por ambas as situações. É a ideia de que os cidadãos têm direito à satisfação das necessidades básicas da vida, como subsistência, habitação, educação, saúde, apoio na velhice. A social–democracia faz isso com mais eficiência do que o mercado. Mas não tem o apoio intelectual e científico que o Nobel dá.
Também vê ligação entre “O Fator Nobel” e a crise financeira que começou em 2008?
Acho que há várias ligações. A primeira constatação a tirar é que não era suposto a crise financeira ter acontecido. Embora o Nobel distinga os mais brilhantes economistas, isso não serve de muito se a teoria proposta está errada. E a verdade é que nenhum desses economistas de topo previu a crise. Por isso, creio que boa parte da teoria que tem sido defendida está incorreta. Outra questão é a rebelião política a que estamos a assistir das pessoas com menos educação contra o establishment, seja à direita ou à esquerda. São fenómenos como o Brexit no Reino Unido, Trump nos EUA, Le Pen em França, mas também, o Syriza na Grécia, Corbyn no Reino Unido ou Sanders nos EUA. A base da teoria de mercado é que cada pessoa só tem direito ao que merece.
Mas é a rebelião dos menos instruídos, porquê?
A minha ideia e de outros economistas como Thomas Frank é que, nos anos de 1980, de 1990 e até durante a última década, mesmo os partidos de esquerda trocaram o direito à igualdade pela meritocracia. A Educação Superior expandiu-se muito, há cada vez mais pessoas com diplomas, com credenciais, com doutoramentos. Para se estar na vida pública é preciso ter frequentado uma boa universidade. Os políticos valorizam muito isso, porque acham que lhes dará direito a altos salários, a privilégios, a pôr o Estado a trabalhar a seu favor, a irem olhando para o setor privado. O modelo tem sido o governo de especialistas, de peritos. O espaço público, à direita e à esquerda, foi capturado por este género de pessoas. E a maioria fica de fora deste jogo.
Porque não tem as mesmas ferramentas?
A maioria não tem diplomas, não tem credenciais, não tem a possibilidade de manipular o sistema a seu favor enquanto pessoa “instruída”, e acabou por se fartar. Estas pessoas viram que a esquerda, que supostamente defenderia os seus interesses, estava também a defender os seus próprios interesses. E hoje estamos a assistir a movimentos de rebelião contra o domínio dos “instruídos”, dos “inteligentes”. Isto só foi possível pelo fracasso do sistema de mercado. O maior foi o de 2008, mas houve outros. A instituição mais “meritocrática” do mundo é o Prémio Nobel. Atribui uma avultada quantia a quem tiver mais mérito. Aquilo que o Nobel representa, o domínio dos “inteligentes”, teve influência no que está a acontecer.
Como acha que irá a União Europeia sair desta crise? Viva?
[Risos] Sou um perito no passado e não no futuro. Mas creio que a UE está a atravessar uma crise existencial. Atravessa, aliás, duas crises. Uma é a financeira, mais concretamente a do euro. O Banco Central Europeu, dirigido por pessoas sem mandato de ninguém, os chamados independentes, tem aplicado uma política de austeridade, que é, aliás, teoria económica muito pobre. Mas creio que, mesmo assim, a crise financeira ainda é a menor, porque pode ser resolvida politicamente. Se se achar que o BCE está a fazer um mau trabalho, pode substituir-se as pessoas ou dar-se-lhe instruções diferentes. Já a outra crise, a da imigração, é muito mais difícil de solucionar. Essa é realmente a crise existencial, embora a financeira também seja séria.
Mas chama-lhe existencial, porquê?
Se a Europa quiser proteger-se da imigração, os valores que representa não sobreviverão, mas também não resistirão a um grande influxo de imigrantes. É um dilema realmente difícil e não vejo quem possa resolvê–lo. Haverá pressão para que se criem barreiras que mantenham as pessoas fora, mas, quando começamos a construir muros contra o exterior, mais tarde ou mais cedo acabamos a construir muros também no interior.
Um país como Portugal estaria melhor dentro ou fora da Zona Euro?
A minha resposta não vale de muito, porque não conheço bem Portugal e não sei quais seriam os custos da sua saída do euro. Mas, como o euro está sob uma grande pressão, creio que a esperança estaria na sua reforma. Stiglitz acaba de publicar um livro sobre o euro, onde faz um conjunto de propostas, como a criação de um euro do Norte e um euro do Sul, onde presumo que Portugal se integraria. Mas creio que seria preferível, embora não tenha aprofundado muito esta questão, uma reforma dentro da própria Zona Euro.
Acha que, depois do Brexit, outros países vão sair? E, já agora, quais?
A minha posição é que o Brexit não foi a palavra final. Temos de lutar dentro da Grã-Bretanha para reverter essa decisão. Não sei se teremos ou não êxito, mas em política nada é final. Às vezes ganha-se e outras perde-se, mas há que continuar a lutar. O desempenho da UE deixa muito a desejar, não tem sido um grande sucesso. Mas isto é uma questão de identidade. Senti uma grande perda em ser privado da minha identidade europeia, com o Brexit. Pensava em mim como um europeu. As diferentes línguas, as diferentes cidades, pertencem-me também a mim, como parte da minha identidade. É muito triste ficar sem isso.
Mas defende um novo referendo?
A questão é qual deve ser a mensagem. Por mim, defendo a criação de uma coligação contra o Brexit. Pode concretizar-se no parlamento ou através de novas eleições gerais. Isto pode demorar anos e traduzir-se numa série de cenários. Há vários argumentos a invocar. Por exemplo, o parlamento não foi consultado e seria maioritariamente contra o Brexit. E as pessoas não votaram a contar que ficariam mais pobres, que perderiam o emprego, que a moeda se desvalorizaria, que os preços subiriam. Talvez deixem de pensar o mesmo, quando isso começar a verificar–se. Creio que a saída estaria na convocação de novas eleições. Mas há motivos por que lutar.
Entrevista publicada na Revista Visão 1275 de 10/08/2017