Com tanta incerteza política, económica e até mesmo social no mundo, é fácil perder de vista os muitos problemas que temos à porta de casa. E como diria aquela icónica senhora de uma reportagem da TVI, estes problemas “não é muitos, e não são poucos, não é? Bastantes!“. Portugal está cheio de bombas-relógio, algumas a estourar (como a habitação), outras com o rastilho já a arder.
Posso começar por duas questões pelas quais tenho particular interesse: o envelhecimento da população e a reforma. Portugal é, ao dia de hoje, o quarto país mais envelhecido do mundo. É uma estatística que por um lado me enche de orgulho (os nossos velhotes são rijos e estão aí para as curvas), mas por outro, do ponto de vista do futuro, preocupa-me. Perdoem-me a frontalidade, mas os idosos nunca são o futuro de um país. O que significa que nas próximas décadas Portugal vai ter um conjunto de desafios relacionados com a falta de renovação geracional, baixas taxas de natalidade, falta de mão de obra jovem no mercado de trabalho, maior isolamento social, menor dinamismo da economia… E, claro, uma pressão acrescida no Sistema Nacional de Saúde (cuja própria saúde não está em bom estado) e no sistema de pensões. Com que idade pensa reformar-se? E quanto pensa que vai ganhar na reforma? As estimativas mais recentes apontam para que as pessoas que se reformem em 2050 só venham a receber de reforma o equivalente a 38,5% do seu último salário! Pois, vá começando a fazer contas à vida…
Numa fase em que só agora é que começam a existir planos de apoio do Estado para as creches, já devíamos estar num patamar completamente diferente, com uma aposta séria e reforçada nos… lares. Se vamos ter um país de idosos empobrecidos, ter uma rede pública robusta de lares e outros serviços de apoio à terceira idade não é uma utopia, é uma inevitabilidade.
Se o envelhecimento da população é um dos exemplos mais gritantes dos problemas estruturais que Portugal precisa mesmo de endereçar, há muitos outros e que afetam praticamente todos os níveis da nossa sociedade. O sistema de educação precisa urgentemente de ser revisto. A educação devia ser o verdadeiro desígnio de qualquer país, pois são as crianças e os jovens que um dia vão levar isto para a frente. Quanto mais apostarmos na qualidade da educação, melhor seremos enquanto País. Aquilo que tenho visto nos últimos anos é uma cada vez menor competitividade do ensino público face ao ensino privado (que tem o seu espaço e é necessário), mas que se não for devidamente equilibrado, vai criar uma sociedade ainda mais desigual, na qual os que têm dinheiro são aqueles que acabam por conseguir as melhores oportunidades de acesso aos melhores cursos nas melhores faculdades, perpetuando um ciclo no qual o elevador social deixa de funcionar.
A justiça precisa ser mais célere, prática e acessível. Um país onde a justiça funciona mal, torna-se mais propício para os que têm mais recursos prolonguem quase infinitamente os seus processos, enquanto os mais pobres sentem que não podem sequer recorrer a um dos mais importantes meios de equilíbrio de forças que uma sociedade dispõe (em teoria, um rico e um pobre, um inteligente e um totó, um gordo e um magro, são todos iguais aos olhos da justiça).
Sobre a habitação nem preciso de escrever muitos caracteres, mas vou ‘roubar’ uma ideia que vi num comentário deixado num vídeo do YouTube. A casa que comprei há sete anos vale hoje muito mais, o que em teoria me torna um pouco mais ‘rico’. Mas se o negócio fosse feito hoje, provavelmente eu já não conseguiria comprar a casa onde moro – o que é um claro sinal de pobreza.
A desertificação do interior precisa de ser estancada, sob pena de termos um território ainda mais desigual (e, num país geograficamente pequeno como o nosso, justifica-se sequer tamanha desertificação?).
Na saúde, o SNS precisa de passar de um modelo corretivo, que trabalha maioritariamente sobre os problemas de saúde das pessoas, para passar para um modelo preventivo, trabalhando para evitar tanto quanto possível que os cidadãos precisem de recorrer ao SNS (precisamos de construir uma sociedade mais saudável, no fundo). A este propósito, recomendo a leitura do livro o Suicído da Espécie, que é para o qual andamos todos, de uma maneira ou de outra, a contribuir.
E que áreas estratégicas quer Portugal ‘atacar’ na Ciência e na Tecnologia? Em que domínios queremos ser os melhores do mundo em 2050? É que para isso acontecer, as sementes já deveriam ter sido lançadas ontem – não é amanhã, nem depois. Somos um país de turismo e de mar, mas curiosamente não temos grandes ‘campeões’ digitais e tecnológicos nesta área. Porquê?
Em algum momento, no futuro, um Governo terá de ter a coragem de tomar todas as decisões difíceis que nenhum outro até aqui se atreveu a fazer. E a palavra coragem não é escolhida pela prosa – considerando que muitos dos problemas aqui citados são óbvios, só posso interpretar que sobre eles pouco ou nada está a ser feito pela falta de coragem. Quem é que vai ter coragem para mexer no sistema das reformas? Quem é que vai ter estofo para remodelar o sistema de educação? Quem terá a audácia de taxar eficazmente as comidas ultraprocessadas? Quem vai ser o intrépido que vai decidir canalizar um investimento sério para a educação? Quem é que no seu perfeito juízo arriscaria o seu lindo pescoço político por um problema que só vai ‘estourar’ daqui a 30, 40 ou 50 anos? Quando temos uma classe política que considera um salário mínimo de 1100 euros brutos, em 2029 (!), como um objetivo ambicioso para o crescimento do País, está tudo dito.
Este é, no fundo, o grande problema de Portugal. Andam todos preocupados com o seu quintal e ninguém pensa o País como ele precisa de ser pensado. De forma estruturada, com objetivos de curto, médio e longo prazo. A mover-se em diferentes dimensões, a diferentes velocidades. Não deixemos que as bombas que temos em mãos rebentem de forma descontrolada.
Esta texto marca a minha despedida da Exame Informática. Ao longo destes quase seis anos, tive o privilégio de ter a liberdade para escrever sobre tudo um pouco: visitei o lado negro das redes sociais, revelei as primeiras vítimas de deepfakes em Portugal, mergulhei no mundo das polícias e da videovigilância, entrevistei o melhor dos hackers, troquei o meu carro pessoal por um Ami, descobri um colecionador de íris, aprendi a comprar casas mais baratas, fui barista durante um mês (e nem sequer aprecio café), chamei a atenção para os hackers chineses que andaram a fazer tropelias em Portugal, troquei ideias sobre IA com grão-mestres de xadrez, tornei públicas as confissões de um investigador forense, dormi (algo que sei fazer bem), quis saber como viver para lá dos 100, cruzei-me com o criador do iPod e do iPhone… Até um OVNI consegui meter numa capa da revista! Trabalhos que serviram para informar (espero), mas também para provocar o pensamento dos leitores sobre todas estas transformações que estão a acontecer à nossa volta.
Daí que não podia terminar sem fazer a mais definitiva das provocações: que futuro queremos realmente para Portugal e o que estamos dispostos a fazer para o alcançar? Obrigado a toda a equipa da Exame Informática. E obrigado pelo seu interesse e companhia.