Ao longo das últimas 3 décadas assistimos a um crescimento ímpar da ciência que se faz em Portugal. Um crescimento largamente alicerçado na internacionalização e na formação de recursos humanos altamente qualificados. Apesar de contratempos e dificuldades, em várias áreas da ciência o país atingiu um nível de excelência reconhecido internacionalmente. Somos parceiros de grandes projetos internacionais, colaboramos com equipas de prémios Nobel, e assinamos resultados científicos que revolucionam o conhecimento. Estamos finalmente no mapa da ciência mundial!
É neste cenário que foram recentemente divulgados os resultados do processo de avaliação de candidaturas a projetos de investigação, financiados pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Depois de um longo processo de avaliação, a ciência em Portugal ficou a saber que apenas 5.3% dos projetos submetidos foram financiados. Ou dito de outra forma, cerca de 95% das 5847 candidaturas ficaram pelo caminho. Um número que contrasta com a excelência existente. Segundo a própria FCT, 31% (!!!) das Unidades de Investigação estão classificadas com o título de “excelente”.
Mas vamos por partes. Porque é que este número é tão insuficiente?
Em primeiro lugar, olhemos para os valores. Neste concurso, e depois de um vazio de 3 anos, foram investidos 75 milhões de Euros (valor definido na abertura do concurso, muito antes de a pandemia nos ter atingido) para que a comunidade científica, em todos os domínios científicos, possa desenvolver 312 novos projetos ao longo dos próximos 3 anos. Segundo informação recolhida no site da FCT, em 2017, como resultado do último concurso deste tipo, o valor tinha sido de 375 milhões; na altura, a taxa de sucesso foi de 35% e foram financiados 1618 projetos. Se o orçamento para projetos foi reduzido de um fator 5, é difícil não criar um problema.
Naturalmente, não cabe na cabeça de ninguém que todos os projetos submetidos num concurso sejam financiados. Seria mau sinal. Como em tudo, há bons e maus. Mas taxas de aprovação de apenas 5% são de facto um marco histórico (pela negativa).
Esta taxa de sucesso é inclusive inferior à das famosas e super-competitivas bolsas do European Research Council (ERC), que ronda os 12%. Mais importante, e ao contrário das bolsas do ERC, que têm como objetivo financiar projetos de elevado risco mas com potencial excecional, os projetos da FCT são uma das peças chave no “dia-a-dia” da ciência que se faz no nosso país. Estamos por isso perante um enorme problema. Como vamos conseguir manter o nível de excelência a que a ciência nacional nos começa a habituar?
Existem outras formas de colmatar este enorme decréscimo de financiamento para projetos? Em teoria, sim. No entanto, mesmo essas vias têm tido reduções tão ou mais importantes. No seguimento do último processo de avaliação de Unidades de Investigação, muitas das Unidades classificadas como “excelente” tiveram cortes significativos. Tal impede-as hoje de planear devidamente a sua estratégia ou de recrutar ou manter os recursos humanos que lhes permitem fazer ciência ao mais alto nível. O seu sucesso ficou em grande parte dependente destes projetos.
Em paralelo, as taxas de sucesso dos concursos de “estímulo” ao emprego científico estão também nas ruas da amargura: de novo, deparamo-nos com valores abaixo dos 10%. Muitos investigadores com currículos excepcionais estão agora a terminar os seus contratos. As equipas científicas que demoraram tanto tempo a formar podem esfumar-se quase de um dia para o outro.
Desta forma, a ciência, mesmo a que é avaliada como excelente, está no meio de uma tempestade perfeita. Uma tempestade que ameaça pôr em causa o tecido científico que foi construído ao longo de várias décadas e que deixa de mãos atadas os cientistas que procuram ombrear com os seus parceiros internacionais. Uma tempestade que ameaça uma verdadeira fuga de cérebros: uma parte dos melhores investigadores em Portugal vão agarrar outras oportunidades ou estão já a ir-se embora. E com eles, vai-se a ciência.
Mas voltemos aos 5.3%. Vários estudos internacionais mostram que taxas de aprovação abaixo dos 20% não permitem realmente valorizar a atividade científica. Com estes valores, não só muitos projetos excelentes ficam de fora, como aliás é claro nos resultados agora divulgados, mas também acabamos por ter um verdadeiro desperdício de recursos. Para exemplificar, vamos assumir que o planeamento e preparação de cada uma das 5847 candidaturas consumiu em média 250 horas às equipas de investigadores envolvidos (este número é, pela minha experiência, um limite claramente inferior). São 250 horas que não foram dedicadas a produzir ciência. Na soma dos vários projetos, foram então “gastas” mais de 1 milhão de horas. Em Euros (assumindo, apenas para simplificar, que “tempo é dinheiro”), isso corresponde a aproximadamente 75 milhões de Euros em recursos humanos, na sua maioria pagos pelo estado Português, quer através das Universidades, quer pela própria FCT. Um valor investido pela comunidade científica que é semelhante ao que foi atribuído a todos os projetos que foram agora financiados. Ou seja, à escala nacional, o financiamento atribuído não chega para pagar o esforço feito na elaboração das propostas de projetos. Nesta visão global, e do ponto de vista dos investigadores, saiu de um lado, entrou por outro.
A ciência fundamental tem um valor inquestionável a vários níveis. Numa visão abrangente, faz parte de uma cadeia de valor que começa na investigação fundamental e que, passando pela investigação aplicada, com o tempo e os mecanismos certos acaba no tecido empresarial e na sociedade em geral. É esta cadeia de valor que faz dos países ricos, ricos! Hoje são vários os exemplos em Portugal de como as apostas feitas na ciência (fundamental) são já capazes de abrir oportunidades para a indústria nacional.
Reconheço que nos últimos anos foram feitas algumas apostas importantes para (tentar) fechar esta cadeia, otimizando a transferência de conhecimento entre academia e indústria. Não me vou pronunciar sobre se os mecanismos planeados são ou não os melhores (o tempo o dirá). Mas de uma coisa tenho a certeza: sem a base desta cadeia de valor, sem a ciência, no longo prazo tudo deixa de fazer sentido.
Aliás, este conceito deveria estar muito presente na consciência global dos Portugueses. Foi graças a apostas na ciência, na tecnologia e no conhecimento, que na época dos descobrimentos foi possível dar novos mundos ao mundo, e transformar o nosso “pequeno” Portugal numa potência global.
Peço por isso que seja feita uma reflexão séria sobre o que se está a passar. É fundamental analisar que impacto a (muito) baixa taxa de financiamento dos projetos da FCT pode ter na qualidade da ciência. Que se entenda qual é a estratégia que está a ser posta em prática para garantir que o tecido científico possa passar por esta violenta austeridade sem sofrer danos irreparáveis! O sistema tem um bom nível de resiliência, mas se nada for feito, a “almofada” existente vai desaparecer, e o edifício que demorou tanto tempo a construir pode ruir.
Estou confiante que todos querem que a ciência nacional continue a progressão muito positiva que teve ao longo das últimas décadas. É por isso importante que essa reflexão seja feita (muito) rapidamente, antes que seja tarde demais, antes que seja ultrapassado o ponto de não retorno.