José Alegria mudou-se para Lisboa empurrado pelos ventos da história. Na Universidade de Luanda era aluno de 18. Em Lisboa, é o 31º aluno de um curso que só deveria ter 30 vagas. «Era como se fosse um supranumerário», explica. A sensação não terá sido muito diferente daquela que assolou centenas de milhares de retornados que tiveram de refazer as vidas na “metrópole” depois de perderem o que tinham nas ex-colónias. Só que José Alegria era um supranumerário «com mística». Com 17 anos já programava com os computadores dos Caminhos de Ferro de Angola para simular projetos complexos. E aos 19 já era instrutor da IBM. Todos estes atributos contribuíam para a tal «mística» naquele que seria o primeiro curso de informática da Universidade Nova de Lisboa (UNL) e também o primeiro curso do género no ensino superior português. Passados 40 anos, José Alegria junta, em jeito de brincadeira, mais uma distinção ao título de responsável pela cibersegurança da PT: «costumo dizer que fui o primeiro hacker de Portugal».
Em 1975, hacker era apenas um termo usado para descrever pessoas que gostavam de desmontar sistemas ou dispositivos tecnológicos. Ainda não havia cibercriminosos e não se falava de geeks. Até porque não havia muitos computadores disponíveis. O que não impediu José Alegria e os restantes 30 alunos da primeira turma de engenharia de software do país de andarem na linha da frente: «Fui um aluno privilegiado. Tinha acesso ao melhor computador do país». O melhor computador do País era um DecSystem 10 e estava no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC). Ao contrário de quase todos os outros que já existiam no País, aquele computador não necessitava de cartões perfurados, que hoje podem ser vistos como os antecessores das atuais linhas de código que se digitam num ecrã. Muitos alunos relacionam o acesso ao tão cobiçado computador com a intervenção de Madalena Quirino, que era investigadora do Centro de Cálculo do LNEC e foi uma das principais mentoras do currículo do primeiro curso de engenharia informática do País.
Na década de 1960, Delgado Domingos, o primeiro diretor do curso, já havia enfrentado resistências e mentalidades de outros tempos no que toca à introdução de aulas de informática e computação nos cursos de engenharia. Num artigo escrito em jeito de memória, o pioneiro da informática conta como a aquisição de um IBM 3660/44, com 128 KB de memória e um custo fixado nos 4000 contos da altura, haveria de levantar celeuma e críticas entre docentes do Instituto Superior Técnico e decisores ministeriais.
Na década seguinte, mesmo depois da abertura do País proporcionada pelo 25 de abril, o panorama de resistência às tecnologias ainda não tinha mudado: «A iniciativa de criação da licenciatura Informática, apesar do apoio que sempre teve do Reitor e da Comissão Instaladora, levantou quase de imediato muitas reações e obstruções no meio académico e profissional. No meio académico era esperável, e vinha dos puristas que a entendiam como um ramo da matemática, ou dos eletrotécnicos que a entendiam como um ramo da eletrónica», recorda o primeiro diretor do curso, que viria a morrer em 2014.
Apesar da renitência e dos receios dos seus pares, a equipa liderada por Delgado Domingos acabou por garantir a aprovação de Vitorino Magalhães Godinho, o segundo ministro a assumir a pasta da educação depois da Revolução dos Cravos. E assim se iniciaram as romarias ao LNEC, perfazendo um horário em negativo face ao expediente do LNEC, que obrigava os alunos a noitadas de programação com o DecSystem, entre as 17h00 às 9h00. As alternativas, que implicavam o uso de computadores de cartões perfurados, estavam longe de entusiasmar: «Entregávamos um molho de cartões perfurados num guichet para os técnicos os inserirem no computador. Esperávamos que o computador fizesse o seu trabalho e íamos receber o resultado noutro guichet. Num dia bom, um computador conseguia fazer 12 destas compilações», explica Pedro Guerreiro, aluno do primeiro curso de informática do País e, atualmente, professor na Universidade do Algarve.
O computador do LNEC era o mais apetecido, mas os alunos também tinham de saber trabalhar com as tais máquinas de cartões perfurados. Pedro Guerreiro explica como tudo se processava: o que se considera um programa estava nos tais cartões perfurados, que eram colocados em leitores específicos que armazenavam na memória a informação codificada com os diferentes furos; depois, era tudo compilado e, se não houvesse erros, o programa era então executado. O que tinha como resultado a impressão de listas com resultados. «Podia ser uma simulação do tráfego numa ponte, problemas relacionados com as próprias aulas, programas que executavam outros programas, ou apenas alguns cálculos numéricos», explica Pedro Guerreiro.
Não havia muitos computadores, mas sobravam calças à boca de sino, manifestações, militares na rua, e até golpes e contragolpes de estado. Como outros alunos de então, José Alves Marques tem ainda bem presente na memória as manobras do 25 de novembro, que ocorre dias depois de o curso de informática começar a ser lecionado em celas e salas adaptadas do Seminário do Lumiar. «Saímos das salas para irmos ver o que andavam a fazer os blindados do RALIS (Regimento de Artilharia de Lisboa), que era mesmo ao lado do local onde tínhamos aulas», explica o atual presidente do grupo Link.
Num tempo em que era difícil não ter partido ou tendência, o primeiro curso de Informática lá se mantém em campo despolitizado. Uma exceção com várias explicações possíveis: «Estávamos numa universidade nova, as juventudes partidárias ainda não tinham tido tempo de instalarem», refere José Alves Marques; «era uma turma muito unida; e quem sabia mais acabava sempre por ajudar quem tinha mais dificuldades», explica Pedro Guerreiro, ilustrando o ambiente pacífico nas salas de aula; José Alegria admite que houvesse algumas pessoas mais revolucionárias que outras, mas recorda que «os alunos não tinham muito tempo para isso (luta política). Até porque muitos tinham também de trabalhar».
Boa parte dos alunos já tinha emprego quando chegou ao curso de Informática – que arrancou com uma duração de apenas dois anos, que na prática poderia ser encarada como uma especialização para pessoas que já tinham bacharel ou outra licenciatura. A entrada estava limitada a quem tivesse, pelo menos, cursado economia, eletrotecnia ou matemática. No currículo figuravam os princípios da eletrónica digital, as bases de dados, as programações formais, os autómatos, a computação gráfica, entre outros temas. José Alegria considera que o currículo era bastante moderno, mesmo comparando com os que eram lecionados nas universidades estrangeiras. «Há princípios da arquitetura de computadores que ainda se ensinam hoje, mas que são aplicados a sistemas mais sofisticados e mais rápidos», acrescenta.
Nos anos 1980, a UNL também haveria de figurar na linha da frente no que toca à primeira licenciatura com um currículo desenhado de raiz para a engenharia informática, que entretanto deixou de ser encarada como um ramo da eletrotecnia e da matemática. Luís Caires, atual presidente do Departamento de Informática que agora opera na Faculdade de Ciências e Tecnologia, no campus da Caparica, confirma que o tempo parece passar mais depressa à frente de um computador: «(Desde 1975) já devem ter sido feitas pelo menos cinco revisões curriculares. A última já permitiu a inclusão de temas relacionados com o cloud computing, computação móvel, e jogos. E daqui a uns anos já sabemos que vamos ter de fazer outra».
No elenco de professores de 1976 figuravam investigadores do Instituto Superior Técnico, do Laboratório de Física e Energia Nuclear, recém-chegados da Universidade de Luanda e investigadores de universidades francesas. No segundo ano, a equipa de docentes engrossou. «Tive muitos professores que tinham sido alunos do curso no ano anterior», recorda Legatheaux Martins. O atual professor da UNL ainda não tinha entrado para a história como pioneiro do acesso à Internet, mas já tinha ganho prémios com um computador construído no liceu no final dos anos 1960. O engenho haveria de o levar até ao curso de eletrotecnia no Instituto Superior Técnico e, não menos importante, a um part-time no LNEC que lhe permitia programar – e que era o que realmente queria fazer. Quando soube da licenciatura de informática não hesitou: «O curso foi mesmo uma pedrada no charco. Na altura havia muita gente que julgava que os computadores eram apenas uma moda», lembra-se o investigador.
Nas universidades e também nas empresas, perfilava-se um enorme filão: muitos dos alunos das primeiras “fornadas” foram tirar pós graduações a Paris ou Grenoble; quem ingressou no mercado de trabalho não terá tido mãos a medir com as solicitações. Até porque na altura seriam poucos os engenheiros informáticos a trabalhar no país. «Nas empresas, já havia algumas pessoas que tinham ganho conhecimentos a trabalhar ou com as formações dadas pelos fabricantes de tecnologias», explica Legatheaux Martins. O professor da UNL também não enjeitou a tarimba: num trabalho anterior ao curso, quase como um ritual iniciático de quem entra no ofício, esteve «três ou quatro meses a pôr e a tirar cartões perfurados em computadores», até conseguir começar a programar em Cobol.
No meio empresarial, os alunos do novo curso geram sentimentos antagónicos: «A reação era eminentemente corporativa porque a maioria dos dirigentes do setor, não sendo licenciados, sentia o seu poder e o seu prestígio ameaçados pelo aparecimento de licenciados na sua área», recorda Delgado Domingos, no artigo de memórias divulgado em 2004, em que conclui que o Instituto Superior Técnico não tinha as condições necessárias para o lançamento de uma licenciatura de informática em 1975.
Nalguns casos, era a dicotomia da Guerra Fria que se refletia diretamente no local de trabalho. «Lembro-me de programadores que eram do MRPP a trabalhar em grandes multinacionais. Hoje, as coisas são diferentes. Há programadores em todos os partidos!», atenta José Alegria.
Enquanto os humanos trocavam de ideologias, as máquinas foram evoluindo de upgrade em upgrade. Para um universitário de hoje pode ser difícil imaginar as rotinas e limitações de um programador de há 40 anos. Para os alunos de 1975 a questão é colocada na perspetiva inversa, recorda Pedro Guerreiro: «Não nos ocorria ter um computador pessoal em casa ou andar com um telemóvel na mão. Mas estávamos muito felizes com o que tínhamos».