Foi o segredo mais mal guardado da história da ciência. Esta terça-feira, às três da tarde, quando o Departamento da Energia americano deu início à conferência de imprensa para anunciar o feito atingido pela National Ignition Facility (NIF), do Lawrence Livermore National Laboratory, já boa parte da imprensa mundial tinha avançado com a novidade, enchendo-a de superlativos.
Pela primeira vez na história da Terra (e este “da Terra” é relevante, mas já lá vamos) uma reação de fusão nuclear, controlada, gerou mais energia do que aquela que foi gasta para a desencadear. E isto é um sonho ou o Santo Graal que o mundo inteiro procura há décadas. A ânsia por novidades na área e talvez o recente, mas intenso, envolvimento dos privados num setor que até há bem pouco tempo só recebia fundos estatais, pode explicar a quebra de sigilo que deixou o Presidente do Instituto de Plasmas e Fusão Nuclear do Instituto Superior Técnico, Bruno Gonçalves, muito surpreendido. “Não percebo como é que isto aconteceu”, exclama, recordando outros momentos importantes para a Ciência nuclear.
Os rumores começaram a circular a 11 de dezembro quando o New York Times fez a revelação. A seguir vieram os canais de televisão e os principais divulgadores de ciência comentar a descoberta que marca o início de uma nova era na forma como se produz energia.
Há já várias décadas que a humanidade procura imitar na Terra o que acontece nas estrelas, ou seja, uma reação de fusão nuclear, em que dois ou mais átomos leves se fundem, dando origem a um átomo maior, num processo que gera uma enorme quantidade de energia – no caso do Sol, fundem-se átomos de hidrogénio, transformando-se em hélio. Além de altamente energético, o processo não emite carbono, como acontece com os combustíveis fósseis, nem deixa resíduos tóxicos, como no caso da centrais nucleares em que ocorre a reação contrária, ou seja, a fissão nuclear, ou separação, de um átomo muito pesado.
Vários grupos de cientistas espalhados pelo mundo procuram chegar lá, com projetos de investigação que têm muitos altos e baixos, exigem enormes recursos e têm demorado a dar resultados. Em Cadarache, França, está o ITER – um esforço global, que junta mais de trinta países, no qual se inclui Portugal -, no Reino Unido o JET, na América o agora famoso NIF. O grupo coordenado por Bruno Gonçalves está envolvido em grande parte dos trabalhos de investigação nesta área e desde a semana passada que se discutia este resultado surpreendente, atingido no passado dia 5 de dezembro. “É absolutamente transformador!”, sublinha o físico de plasmas. “A demonstração de que existe um caminho, agora identificado, para atingir a fusão nuclear em laboratório”.
Nem todos os projetos de investigação de tecnologia de fusão nuclear seguem o mesmo princípio. Há duas linhas principais: a fusão por confinamento magnético, que está a ser tentada no ITER, e a fusão inercial com laser, testada no laboratório americano sob a alçada do Departamento da Energia americano. Em ambos, o objetivo é o mesmo, espremer tanto os isótopos de hidrogénio, trítio e deutério – o combustível nestas reações – a ponto de se fundirem e …lá está, libertarem enormes quantidades de energia. Tudo isto acontece num reator nuclear com os átomos a serem comprimidos por um sistema de ímanes poderosíssimos, no primeiro caso, ou por um feixe de lasers (192, no caso do NIF).
Esta ideia de usar lasers para transportar energia até aos átomos já tem mais de 60 anos. Na altura em que foi proposta, os lasers – ondas luminosas que oscilam todas em fase umas com as outras – eram mal conhecidos. Mas hoje está provado que são essenciais. “A luz “normal” é incoerente, a luz dos lasers é extremamente coerente. Podemos comparar com um exército em marcha sincronizada (coerente) e uma multidão a passear (incoerente)”, compara Gonçalo Figueira, também do Técnico. “Estes são lasers de muito alta energia (MJ), os mais energéticos já feitos. Em termos de duração têm vários nanosegundos, ou seja, podemos imaginá-los como um feixe de luz com alguns metros de comprimento”, detalha, sobre a experiência agora revelada.
“Os desafios científicos e tecnológicos para atingirmos um reator de fusão são enormes. Alguns são comuns à fusão nuclear por confinamento magnético, como os materiais para a fusão capazes de suportar fluxos muito elevados de neutrões [libertados durante a reação], outros são específicos da fusão nuclear a laser”, detalha Bruno Gonçalves, que escreveu um livro sobre fusão nuclear, disponível para download e que em breve será atualizado para incluir a novidade. Por maior que seja o desafio, esta conquista já ninguém retira à humanidade. “Demos um passo de gigante”, resume.