Parece-nos que a crise que o futebol atravessa é estrutural e data da passagem de um modelo “Espectador-Subvenção-Sponsors-Local” (SSSL) nos anos 60 e 70, rumo a um modelo “Media-Magnatas-Merchandising-Global” (MMMG) desde a década de 1980, em que os direitos televisivos e o trading de jogadores constituem progressivamente as únicas portas de saída dos clubes.
É evidente que a crise sanitária não veio facilitar nada. Não somente desmoronam as receitas de bilheteira como também a Mediapro, operador essencial na atribuição dos direitos televisivos, se encontra em situação de cessação de pagamentos. Não era necessário mais para pôr lenha na fogueira. É verdade que as propostas da SuperChampions League poderiam revitalizar o futebol e relançar os direitos televisivos, mas será que podemos continuar a insistir na inflação dos direitos televisivos? Veremos que uma das soluções consiste em repensar o futebol, isto é, fazer emergir o futebol de amanhã, o futebol 4.0.
1) A situação económica do futebol degrada-se ao longo dos anos
No modelo SSSL, as receitas operacionais eram a bilheteira, as subvenções e o sponsoring. As receitas eram principalmente geradas pelos agentes locais. Em França, no modelo MMMG, com a chegada de Canal Plus e o fim do ORTF (Ofício de Radiodifusão Televisão Francesa), são os direitos televisivos que assumem o comando. A chegada do merchandising, na década de 1980, e a cotação de clubes na Europa em bolsa contribuíram fortemente para a financeirização dos clubes. Começam a emergir desde logo as primeiras ondas de aquisições por parte de investidores institucionais. Mais recentemente, foram os fundos soberanos que entraram na batalha (como o Qatar no PSG), assim como os oligarcas, Dmitry Rybolovlev para o AS Monaco, Waldemar Kita para o FC Nantes, e Hafiz Mammadov para o RC Lens.
Um clube de futebol não é uma PME como qualquer outra, pelo facto de gerir principalmente jogadores e não produtos e serviços.
Em Portugal, das 37 sociedades anónimas desportivas (SAD) cujas posições de investidores são maioritárias, 21 delas são controladas por empresas estrangeiras, brasileiras e asiáticas predominantemente. Tal como em França, os clubes estão cada vez mais abertos para grandes fortunas controladas por magnatas e multinacionais. A desregulamentação do futebol com o Acórdão Bosman (1995) no que toca à transferência de jogadores e à globalização da economia apenas veio reforçar este modelo.
Para um clube profissional, é principalmente a massa salarial (mais de 60% de um clube em geral), as dotações para amortização das indemnizações relativas às transferências, os honorários dos agentes, as despesas de deslocação e a organização dos jogos que constituem as principais rubricas das despesas. Um último aspeto de grande importância: um clube de futebol não é uma PME como qualquer outra, pelo facto de gerir principalmente jogadores e não produtos e serviços. A contenção orçamental é mais “solta”, mesmo com o controlo das organizações que supervisionam as contas dos clubes e com os casos de falências de clubes, como o Estrasburgo e o Grenoble ainda na memória. Também em Portugal houve situações desse tipo, como o caso do Estrela da Amadora em 2011 (e mais sete outras falências desde 2012). A regra geral é que um clube pode, de maneira recorrente, gastar mais do que os seus rendimentos sem se declarar uma situação de falência. Constatamos aqui uma das explicações para os déficits recorrentes dos clubes e o ciclo de endividamento incessante. Podemos citar alguns clubes reincidentes: Bordéus, Lille, Lyon, Marselha e o PSG. É um pouco como a dívida de um Estado! Mas o Benfica também: segundo dados oficiais, ocupava o segundo lugar no top 10 dos clubes mais endividados da Europa em 2015. O passivo, em 2020, dos três grandes do futebol português ascende a um total de 1,2 mil milhões de euros (Sporting, 291,8 milhões; Benfica, 425; Porto, 497,3).
Constatamos aqui uma das explicações para os déficits recorrentes dos clubes e o ciclo de endividamento incessante. Podemos citar alguns clubes reincidentes: Bordéus, Lille, Lyon, Marselha e o PSG. É um pouco como a dívida de um Estado!
Em França, em 1990-1991, 15% das receitas dos clubes de primeira divisão estavam relacionadas com direitos televisivos e produtos derivados. Na época 2013-2014, eram 74% (direitos televisivos, 50%; produtos derivados, 24%); atualmente, são 55%, em média. Para a época 2018-2019, segundo a Direção Nacional do Controlo de Gestão, a venda de jogadores representava 25% das receitas operacionais de 11 clubes da Ligue 1; no entanto, os custos operacionais aumentam cada vez mais depressa. Do mesmo modo, as previsões de lucro sobre o trading de jogadores são sempre inferiores aos ganhos reais.
No início da pandemia, as receitas operacionais dos clubes da Ligue 1 vinham de um aumento de 36% entre 2016 e 2019, para 1,9 mil milhões de receitas operacionais. Podemos dizer que, após um esforço incomensurável, os clubes começavam a avistar a luz ao fundo do túnel. Na mesma altura, as receitas (sem venda de jogadores) são 47% de direitos televisivos, 22% de sponsoring, 20% de merchandising e 11% de receitas de jogos (bilheteira). É o trading de jogadores que lhes confere um estatuto menos catastrófico no plano económico. A França recorre também à qualidade dos seus centros de formação para exportar massivamente os seus jovens talentos. As vendas por transferência representam atualmente 25% das receitas operacionais dos clubes.

Mas são os direitos televisivos que permitem manter um efetivo de qualidade, daí o círculo vicioso do modelo. Em França e Espanha, a Mediapro era uma esperança formidável para o setor. Em Portugal, o sistema é muito diferente e original: o campeonato português não tem ainda a distribuição dos seus direitos televisivos centralizada. Isso é um caso excecional na Europa, já que as vendas de direitos televisivos são totalmente individuais.
A este facto temos de acrescentar a pirataria. É preciso saber que, segundo um estudo da Hadopi, a pirataria de conteúdos desportivos aumentou 20 a 30% em 2019 em relação ao ano de 2018. Por outro lado, o estudo prevê que quatro milhões de pessoas visionam esses mesmos conteúdos de forma ilícita todos os meses. Existem mesmo piratas que propõem uma box para ver todos os canais que transmitem desporto apenas por algumas dezenas de euros por ano.
Resumindo, em França, os clubes franceses apresentaram um déficit de 1,3 mil milhões de euros, sendo uma situação geral a 30 de junho de 2021. A tendência global na Europa é a seguinte: défices e clubes com grandes dívidas, mas alguns emblemas, apesar de estarem muito endividados, conseguem fazer lucros e obter grandes volumes de negócios. Porém, estes casos são raros. Na época 2019-2020, os 20 clubes europeus mais ricos geraram 8,2 mil milhões de volume de negócios, ou seja, 1,2 mil milhões a menos do que em 2018-2019, representando uma descida de 12%. De resto, sejamos claros: durante a pandemia, apenas o Zenit São Petersburgo e o Everton viram as suas receitas aumentar.
Os aspetos sociológicos são essenciais para explicar o modelo económico do futebol:
O mundo também se transforma: 300 milhões de indivíduos no mundo assistem à Netflix, pelo menos, uma hora por dia. Passamos cerca de duas horas por dia nas redes sociais e ainda mais no que toca aos jovens, e o tempo de visualização do futebol na televisão mudou significativamente. Por último, se visionarmos o jogo da equipa de França e, pelo facto de este ser um jogo decisivo, não iremos acumular subscrições para seguir todo o campeonato. No entanto, mais do que a publicidade, as subscrições são essenciais para a sobrevivência do futebol.
2) Paralelamente, a Covid-19 acelerou a transformação do futebol
É certo que a crise da Covid-19 acelerou a transformação do futebol, mas ela agravou primeiramente e principalmente a situação pela falência da Mediapro em França, em incumprimento de pagamento e principal emissor televisivo. A pandemia representou uma perda de rendimentos relacionada também com a ausência de público nos estádios. Os jogos à porta fechada fizeram baixar as receitas. Para que conste, em maio de 2018, a Mediapro obteve a maioria dos direitos de retransmissão televisiva da Ligue 1 pelo preço de 820 milhões de euros. Uma pechincha inesperada, segundo vários especialistas, o que é algo exagerado e provavelmente pouco controlado na euforia da esperança, uma vez que a Mediapro faliu em outubro de 2020, em plena crise sanitária. Orange, Canal Plus, M6, TF1 resolveriam, pelo menos temporariamente, esta questão dos direitos televisivos. É que as perdas operacionais dos clubes franceses permaneceram colossais para a época 2020-2021: acima de mil milhões.
O período de Covid-19 foi o pior da história do futebol, uma vez que originou a conjuntura de dois fatores criando a maior incerteza da história do futebol sobre a questão central dos direitos televisivos.
A anulação dos grandes eventos internacionais complicou também a situação, dado que os sponsors interromperam progressivamente os seus apoios. Desta forma, o período de Covid-19 foi o pior da história do futebol, uma vez que originou a conjuntura de dois fatores criando a maior incerteza da história do futebol sobre a questão central dos direitos televisivos. Atualmente, certos especialistas indicam que o montante ideal em França seria 1,2 mil milhões, sabendo que o valor pago por Bein Sports e Amazon é duas vezes menor. Perante estas diferentes realidades incontornáveis do modelo, como repensar o futebol no alvorecer do mundo de amanhã?
Verificamos claramente que o problema é de ordem estrutural e que, em muitas áreas, a crise da Covid apenas acelerou os problemas já existentes. Torna-se, então, necessária uma nova regulação do futebol pela tecnologia. É preciso repensar a forma de propor os direitos do futebol de amanhã, e a tecnologia interna pode contribuir para alcançar este objetivo.
3) Fazer reviver o futebol no mundo de amanhã com as inovações disruptivas
No terreno da gestão, é evidente que uma redução da massa salarial deve ser analisada, mas existem outras propostas possíveis. As propostas no terreno da gestão estão geralmente relacionadas com a seguinte ideia fundamental: a de reforçar a rentabilidade dos clubes profissionais e valorizar o campeonato e a imagem do futebol. A análise dos diferentes campeonatos europeus revela boas práticas de gestão aplicáveis aos clubes franceses profissionais e ao funcionamento dos campeonatos: renovação dos estádios (modelo alemão) e utilização racional e rentável dos novos equipamentos (ex: política de naming), segmentação da bilheteira mais ampla com base numa análise aprofundada dos públicos, yield management e desenvolvimento do merchandising, transferências de tecnologia e contrato de associação com clubes emergentes, concorrência dos operadores televisivos, moderação do escrutínio fiscal, tetos salariais e, eventualmente, repartição das receitas. É frequentemente evocado o sistema do ponto ofensivo (reforço do espetáculo, apoio à ofensiva), assim como um programa de comunicação e de educação para revalorizar a imagem do futebol e dos seus agentes. Todas estas propostas visam melhorar a rentabilidade do mercado e dos clubes, considerando o futebol uma indústria com verdadeiras regras económicas, orçamentais e comerciais.
O marketing e a ciência de dados devem também ser incluídos. A ciência de dados permite melhorar o conhecimento do clube e a adaptação da oferta ao cliente
Para concluir e oferecer perspetivas ao futebol de amanhã, gostaríamos de nos orientar para a inovação: porque não criar um canal próprio, propor uma nova oferta digital na internet como o RMC Sport? E o que dizer das possibilidades Amazon, Dazn e Discovery? Na realidade, qual é o interesse de uma Amazon Internacional? Ok, talvez para o PSG, mas no que toca ao Troyes ou Angers, ou Lens, continuam a ser clubes de elite? Se o PSG pode vender na China, não será o mesmo caso para o Lens. É preciso não esquecer que o futebol são direitos televisivos e subscrições, mas não a publicidade! Desta forma, acreditamos que não é necessário revolucionar tudo, mas sim pensar o futebol de amanhã de um ponto de vista interno. É aqui que as inovações disruptivas poderão dar o seu contributo.
Em primeiro lugar, o estádio inovador: seria uma forma de atrair um maior número de espectadores. O design e a criatividade, para não citarmos a beleza, atrairiam mais espectadores, uma vez que França faz fraca figura face aos níveis da Inglaterra ou da Alemanha. Em Portugal, muitos clubes também padecem do mesmo problema.
Outras ideias deverão ser desenvolvidas. Se o trading de jogadores é tão importante, porque não criar tecnologias que melhorem o recrutamento? A Stats Perform, por exemplo, é líder dos dados aplicados à Inteligência Artificial para o desporto. O OGC Nice concluiu um acordo com esta startup. Trata-se não somente de uma solução de screening de jogadores mas também de recrutamento dos mesmos e melhor gestão do clube, ou seja, as chaves para uma otimização das transferências e dos recrutamentos. O Benfica tem uma ajuda tecnológica, no desenvolvimento dos seus jogadores, em parceria com a Microsoft, para analisar as performances, tanto nos craques do momento como no desenvolvimento de jovens atletas. O Estoril Praia selecionou o Footballism para desenvolver o seu futebol com o melhor conhecimento tecnológico e científico. Criada pela Agap 2 IT, esta ferramenta de sport tech maximiza os talentos e os recursos de clubes profissionais e de academias de futebol.

O marketing e a ciência de dados devem também ser incluídos. A ciência de dados permite melhorar o conhecimento do clube e a adaptação da oferta ao cliente. Este princípio ideal na transformação digital do clube permitirá melhorar a experiência do utilizador e, para o clube, a identificação dos clientes-espectadores com elevado potencial, graças ao clustering, à modelagem preditiva ou à análise fatorial.
Alguns clubes de futebol, como o Liverpool FC, estão associados à startup francesa SkillCorner e utilizam ferramentas poderosas capazes de recolher em tempo real dados relativos aos jogos e/ou treinos em vídeo. A monitorização dos jogadores, da bola, e o tracking com a identificação de posse de bola anormalmente elevada, ou uma zona de perda de bola frequente, permitem a otimização das equipas e das táticas e, por conseguinte, no final, da performance.
O Glasgow Rangers colabora atualmente com a plataforma norte-americana Hudl. A ideia é melhorar o conhecimento da sua equipa e do seu adversário através de uma análise aprofundada de todos os jogos, com seleção de fases do jogo.
O Real Madrid e a seleção francesa utilizam numerosos objetos conectados, como roupas desportivas conectadas ou os dispositivos portáteis. Esta tecnologia pode ser colocada no bolso traseiro da camisola do jogador. O Manchester United e a Juventus de Turim colaboram com a Catapult Sport sobre esta temática.
Dever-se-ia propor uma forma de influir na maneira como o público visiona o desporto, obtendo estatísticas em tempo real, acedendo às mesmas e podendo partilhá-las.
No que diz respeito à televisão e aos direitos televisivos, várias coisas podem ser ditas. Dever-se-ia propor uma forma de influir na maneira como o público visiona o desporto, obtendo estatísticas em tempo real, acedendo às mesmas e podendo partilhá-las. Alguns canais, como o Canal Plus, inovam bastante em termos de retransmissão e já usam novos dispositivos de cálculo a fim de enriquecer a experiência dos telespectadores. Outros média, como a TF1, recorrem à empresa inglesa Opta Sports.
Para aumentar a fidelidade, poderíamos pensar nos apostadores desportivos: Winamax associou-se à SkillCorner para beneficiar de uma ferramenta que produz em tempo real informações-chave sobre o jogo, e os clientes ficarão mais sensíveis a este tipo de site.
Para o campeonato francês, a falta de partilha de dados de tracking constitui um limite na pesquisa. Parece-nos inevitável uma revolução das organizações na apreensão da Inteligência Artificial. Esta mesma apreensão passa, nomeadamente, pela adoção de novas competências em torno da ciência de dados.
Ficam aqui várias pistas para os próximos anos do futebol europeu.