Artigo publicado originalmente na EXAME de dezembro de 2021.
A relação dos países com as regras orçamentais europeias tem sido semelhante a um grupo de pessoas que se tranca numa daquelas escape rooms e depois passa uma hora a tentar escapar dela. Desde Maastricht que os Estados-membros vão tentando encontrar formas de fugir ou contornar as regras. A um ano de elas voltarem a ser aplicadas, os próximos meses são uma oportunidade única para repensar os limites de velocidade das contas públicas comunitárias. A manutenção do statu quo, temem alguns, arrisca a ser o primeiro passo para a morte da coordenação orçamental.
Em reação à crise pandémica, a Comissão Europeia decidiu ativar a cláusula de escape, suspendendo as regras até 2023, o que permitiu aos países gastarem mais dinheiro no apoio a famílias e empresas sem se preocuparem com o radar de Bruxelas. Uma decisão que, conjugada com o nascimento de um fundo comum de recuperação, terá surpreendido muitos, ainda recordados da postura conservadora das instituições comunitárias na crise anterior.
É que, embora o debate ainda seja organizado entre duas trincheiras – divididas entre quem quer uma aplicação mais rígida ou mais flexibilidade – tem passado mais despercebida uma lenta mudança nessa relação de forças e cada vez maior pressão para reformar. Com Jean-Claude Juncker e Ursula von der Leyen, a Comissão Europeia tornou-se mais tolerante em relação à trajetória das contas públicas, há hoje mais países a favor de limites menos apertados e, acima de tudo, têm do seu lado um consenso económico em movimento, que vê as regras atuais como desadequadas aos atuais níveis de dívida pública e contexto macroeconómico.
Há um reconhecimento que, numa união económica e monetária, é necessário algum nível de coordenação orçamental (os governos têm tendência para deixar engordar os défices, incentivados por lógicas de curto prazo) e que o endividamento de vários países, como Portugal, é excessivo. Mas também que a interpretação das regras é fonte de grande tensão entre os Estados-membros e que a última coisa que seria desejável nesta altura seria tirar ímpeto à retoma. “Temos de abordar isso de forma inteligente: gradual, sustentada e amiga do crescimento”, afirmou o vice-presidente, Valdis Dombrovskis. Se lhe parece que isto é uma quadratura do círculo é porque é mesmo.
Com os orçamentos para 2023 a terem de ser desenhados para voltarem a respeitar as regras, a comissão iniciou um período de debate para encontrar formas de as adaptar. Tendo em conta a distância que separa as posições das diferentes capitais europeias, a expectativa é que será muito difícil chegar a um acordo. O que não significa que fique tudo na mesma.
Segundo as contas do think tank Bruegel, uma reativação das regras de um momento para o outro pode exigir ajustamentos anuais de mais de 5% do PIB. Ou seja, vários Estados com dívidas elevadas ficariam entre duas possibilidades: executar programas de austeridade a seguir a uma crise; ou violar as regras. Tendo em conta o contexto político em alguns destes países, em muitos casos com forças populistas perto de conquistarem o poder (Itália, França), a segunda hipótese parece ser um caminho de menor resistência para os governos em funções. O que seria das regras se algumas das maiores economias europeias deixassem de as cumprir?
“Não podemos ficar com o bolo e comê-lo. Ou se reformam as regras e esperamos que elas sejam cumpridas ou não mudamos nada e elas não são cumpridas. Esse incumprimento não seria bom para a comissão, por isso tem todos os motivos para reformar”, aponta Maria Demertzis, vice-diretora do Bruegel. Bruxelas tem-se mostrado cada vez mais tolerante com desvios pontuais, como ficou claro quando não multou Portugal e Espanha em 2016, mas, se eles se tornarem a regra, os países podem perder qualquer incentivo para cumprirem. Teria a comissão a capacidade ou vontade para penalizar e multar França ou Itália?
Complexo e opaco
Há quem argumente que esta crise provou que as regras não estão assim tão desatualizadas. Takis Tridimas, professor de Direito da Europa, no King’s College London, acha que elas são “razoavelmente flexíveis”, como ficou comprovado pela possibilidade de as suspender durante estes anos. Admite, ainda assim, que, se fossem desenhadas hoje, elas talvez fossem diferentes. “É muito fácil comentar com o benefício do tempo. As regras têm de ser suficientemente flexíveis para aguentar esse teste”, afirma.
Há cada vez mais defensores de que, nos últimos anos, elas têm sucessivamente chumbado. Em resposta à EXAME, o ministro das Finanças português diz que precisamos de “regras amigas do crescimento e que salvaguardem o papel estabilizador da política orçamental”, argumentando que o limite de 60% do PIB para a dívida pública deve ser alterado ou que haja a possibilidade de ritmos de redução da dívida adequados à realidade de cada país.
Além do limite de 60% para a dívida – que envolve, para quem está acima, uma descida anual de 1/20 da diferença face ao valor atual – , os países europeus estão comprometidos com um défice inferior a 3%, um saldo estrutural definido país a país e uma despesa pública que não pode crescer mais rápido do que o potencial da economia.
As críticas à arquitetura das regras europeias são antigas e muito variadas, dependendo da sensibilidade política de cada um. Desde a utilização de indicadores opacos até à sua natureza pró-cíclica, falta de flexibilidade e incapacidade de adaptação ao atual contexto económico. Mas talvez a mais consensual seja a sua excessiva complexidade, após anos em que lhes fomos acrescentando camada atrás de camada.
Mário Centeno reconheceu-o à EXAME na sua última semana, como presidente do Eurogrupo. “Passámos de 90 para mais de 600 páginas de regras, criando fricções desnecessárias por via de uma automaticidade cega em que se pretende ter tudo previsto nas regras”, argumentou.
Um teste fácil de fazer é tentar explicar a alguém o que é saldo estrutural. Um indicador central na avaliação das contas de cada país, que tem como ponto de partida o saldo orçamental (aquele que vê nas notícias, normalmente como “défice”), mas que exclui medidas extraordinárias e flutuações do ciclo económico, sendo calculado em percentagem do PIB potencial, cuja estimativa é complicada de fazer e, acima de tudo, muito incerta. As revisões do saldo estrutural nos anos seguintes chegam a ser maiores do que o ajustamento anual exigido aos países. Cansado? Ministros das Finanças e economistas também.
Carlos Marinheiro, membro do Conselho Superior do Conselho das Finanças Públicas (CFP) e responsável por aferir se Portugal está a cumprir as regras, reconhece o problema. “É consensual que o enquadramento orçamental europeu se tornou excessivamente complexo. Essa complexidade é reconhecida pela própria Comissão Europeia”, refere. A intenção de indicadores como o saldo estrutural era boa. “Resulta da vontade de “codificar” a resposta a todas as circunstâncias económicas possíveis, fugindo de uma aplicação demasiado simplista da operacionalização inicial dos critérios do tratado”, acrescenta Marinheiro. Mas ela criou uma cortina de fumo que retira previsibilidade aos governantes e dificulta a apreensão das regras pelos cidadãos.
“As regras são muito complicadas. Isso é uma característica de muitos sistemas legais, mas na lei europeia há mais incerteza, principalmente na área orçamental”, reconhece Tridimas, para quem este problema se torna mais grave quando o incumprimento destes limites resulta em sacrifícios para a população via austeridade. Com eles vem também um problema de responsabilização. “Não é claro quem toma a decisão. É a União Europeia? É o Estado-membro? É o MEE [Mecanismo Europeu de Estabilidade]? Há muita incerteza.”
“Isso é tão 1992”
Pode também questionar-se se as regras cumprem sequer a sua função e se se adequam à gestão de ciclos económicos. Elas não impediram o grande crescimento do endividamento dos Estados antes da crise da dívida de 2010 e foram, depois, usadas para justificar novas políticas pró-cíclicas de austeridade, hoje consensualmente vistas como um erro.
Mas talvez a crítica que esteja a ganhar mais força é a ideia de que os limites previstos nos tratados já não estão adaptados à realidade de 2021. Parte do problema é a realidade dos próprios países. Quando o Tratado de Maastricht foi assinado, em 1992, o limite de 60% da dívida era mais ou menos a média de endividamento público dos países europeus. Hoje, só há seis países do euro abaixo desse valor, com sete acima de 100%. A Grécia está acima de 200% e Portugal perto dos 130%. França, Espanha e Itália também estão no clube dos três dígitos.
Aumentar o limite de endividamento seria bastante conveniente para todos estes países, mas talvez os seus níveis de dívida sejam menos dramáticos do que nos habituámos a pensar. Provavelmente, poucos debates económicos avançaram tão rápido nos últimos anos como a discussão acerca do que é uma “dívida excessiva”.
Muitos economistas têm argumentado que, na nova realidade macroeconómica em que vivemos – juros muito mais baixos, assim como as taxas de crescimento e inflação –, os países podem carregar bastante mais dívida do que se julgava. Entre 1998 e 2009, os juros da dívida portuguesa a dez anos flutuaram quase sempre entre 3% e 5%. Agora, estão há quase quatro anos abaixo de 2% e há dois a flutuar perto do zero. Mesmo que se assuma que este contexto não durará muito mais tempo e que é, essencialmente, resultado de políticas do BCE, os especialistas acham que o mais provável é que os juros não regressem nos próximos anos aos níveis do arranque do século.
No final de outubro, um paper do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) abanou este debate. Vista como uma instituição conservadora no campo da gestão das contas públicas e liderada por Klaus Regling, tido como um falcão, o estudo recomendava o abandono dos 60% do PIB para a dívida e a adoção de um novo limite de 100%.
A recomendação não compromete o MEE, mas é reveladora da reflexão e da opinião dominante dentro do fundo de resgate permanente da UE e principal credor de Portugal. Regling, que nos anos 90 ajudou a negociar o Pacto de Estabilidade e Crescimento pelo governo alemão, tem deixado várias pistas. “Sim, a união monetária precisa de regras orçamentais, isso é inquestionável. Mas elas precisam de ser adaptadas à mudança das condições económicas”, disse à Der Spiegel. Regling é uma das várias vozes conservadoras que têm defendido uma reforma. “As taxas de juro são muito mais baixas do que há 30 anos, portanto os níveis de dívida podem também ser mais altos sem colocar mais pressão sobre os orçamentos.”
Um dos argumentos mais fortes é que as próprias regras deixaram de ser coerentes. Em específico, os 60% da dívida já não são coincidentes com o limite de 3% para o défice. Carlos Marinheiro apontou isso há mais de um ano, num texto que escreveu no blogue do CFP. Um país com dívida de 60% do PIB, se tiver um crescimento nominal de 5% (3% real + 2% de inflação) e um défice de 3%, mantém a mesma dívida. Ora, esses 5% já não parecem realistas, tendo em conta as dinâmicas esperadas para crescimento e preços. Ou se aumenta o limite da dívida ou tem de se exigir défices ainda mais baixos. Tendo em conta o relativo consenso em torno dos 3%, a primeira opção parece ser preferida por mais gente.
Marinheiro acha difícil mudar o limite propriamente dito (exige consenso e ratificações nos parlamentos nacionais), defendendo, em vez disso, uma alteração no regulamento do Pacto de Estabilidade, seja o ritmo de redução da dívida exigido ou “considerar um período transitório para o retorno ao pleno funcionamento dessa regra, à semelhança do efetuado quando a mesma foi adicionada em 2011 para os países que na altura se encontravam sujeitos a um PDE [procedimento por défice excessivo]”, antecipa à EXAME.
Nos últimos meses têm surgido várias propostas. O European Fiscal Board, organismo independente responsável por aconselhar a Comissão Europeia sobre matérias relacionadas com política orçamental, assume que um regresso aos 60% não é realista e propôs uma regra de teto da despesa, com limites de dívida ajustados a cada país. Os economistas do MEE sugerem algo semelhante: substituir o saldo estrutural por uma regra de despesa (não pode crescer mais do que a tendência da economia), aumentar o limite da dívida para 100% e manter os 3% para o défice. Dívidas excessivas teriam uma meta de saldo primário a cumprir.
Dar espaço ao clima
Quanto mais ambiciosa for a mudança, mais complicado será executá-la. O que tem levado alguns a defenderem que uma solução mais fácil seria encontrar caminhos de flexibilidade em nome de outras prioridades europeias. Por exemplo, a UE assume que o combate às alterações climáticas estará no centro das suas políticas públicas nas próximas décadas e que, entre as suas principais munições, está uma grande aposta em investimento público. Com as regras antigas no terreno, esse esforço orçamental pode acabar sacrificado. Seria possível, por exemplo, criar uma “exceção verde”, que excluísse esses gastos das contas de Bruxelas?
Carlos Marinheiro tem dúvidas. Embora reconheça a necessidade de níveis muito elevados de investimento (público e privado) nos próximos anos, acha que dar um tratamento diferente a certos gastos “é um convite para a contabilidade criativa”. “Existe sempre uma tentativa irresistível de classificar enquanto investimento, que está fora da regra, aquilo que na realidade é despesa corrente”, acrescenta.
Demertzis tem dúvidas diferentes. “Há países sem espaço orçamental. Essa exceção faria diferença, mas não seria suficiente”, prevê. Mas, seja com esta ou outra solução, a economista tem a certeza de que, sem mudanças, a UE terá de sacrificar uma trave-mestra da sua agenda. “Se os países não conseguirem investir, a Europa não será capaz de cumprir as suas ambições verdes.”
Uma possibilidade mais ambiciosa para contornar a falta de margem financeira de alguns países seria a criação de um instrumento orçamental permanente, comum a todos os países da UE, e que estivesse orientado apenas para a transição energética. Uma espécie de PRR sem prazo de validade e virado só para o clima. “É a única forma de tornar este círculo um quadrado. É uma solução interessante, até porque já temos o modelo”, diz Demertzis.
Teria a vantagem de centrar em Bruxelas a definição daquilo que é “verde” ou não, escapando à tal tentação de contabilidade criativa. Mas seria de aprovação muito difícil. Se o PRR, que é provisório e responde a uma pandemia, já levou muitos países ao limite negocial, seria de esperar uma oposição ainda mais aguerrida a esta solução.
Algumas capitais europeias já começaram a posicionar-se para o debate mais imediato sobre o que fazer com as regras. Vários países do Sul com contas mais frágeis, entre os quais Portugal, pedem uma reforma urgente (ver entrevista ao ministro das Finanças), enquanto o grupo dos frugais defende um regresso o mais rápido possível às regras. A Áustria tem sido especialmente vocal, mas também estão nessa trincheira Holanda, Dinamarca e Suécia.
Neste debate será decisivo perceber qual será a postura do novo governo alemão, o que, na altura em que este texto é escrito, ainda não é claro. A vitória do SPD e a coligação com os Verdes sugere uma postura mais tolerante em relação às regras orçamentais, mas esse acordo estende-se também aos liberais do FDP, que são bastante conservadores na gestão das contas. Berlim deverá funcionar como árbitro.
Tal como a UE nos tem habituado, antecipa-se um impasse negocial difícil de resolver, em que mesmo a manutenção do statu quo pode ameaçar a credibilidade das regras que tenta proteger. No entanto, os últimos tempos mostraram uma UE capaz de tirar alguns coelhos da cartola. “Há dois anos, eu diria que nunca emitiríamos dívida em comum. Mas foi isso que fizemos”, diz Demertzis. A meses do 30º aniversário da assinatura do Tratado de Maastricht, poderemos voltar a ser surpreendidos?

João Leão: “O mais importante é ajustar a regra da dívida”
Em resposta por email à EXAME, João Leão defende uma subida do limite da dívida e a necessidade de regras mais realistas
O que significam regras mais “amigas do crescimento”? O investimento em projetos “verdes” ou de transição energética devia ser excluído do apuramento do défice e dívida?
Regras amigas do crescimento são regras que garantam uma redução da dívida pública, sem pôr em causa a recuperação da economia. Ou seja, regras adaptadas à realidade atual, que não imponham um ritmo de redução de dívida irrealista e incompatível com o papel estabilizador da política orçamental. Sabemos que são necessários grandes investimentos para acelerar a transição verde e digital, e uma forma de tornar as regras mais amigas do crescimento, que já foi inclusivamente discutida em reuniões ECOFIN, é a possibilidade de excluir o investimento verde do cálculo dos indicadores que são usados para avaliações orçamentais no quadro europeu. Não seria fácil implementar esta ideia, mas existe um consenso sobre a necessidade de se proteger o investimento, que é essencial para aumentar o crescimento potencial da economia, e em particular o investimento verde para atingirmos a neutralidade carbónica.
No atual contexto de juros e endividamento, os limites de 3% e 60% do PIB para défice e dívida ainda fazem sentido?
O referencial de 3% para o défice é prudente, empiricamente razoável e globalmente consensual. O mesmo não se aplica ao limite de 60% para a dívida pública. Enquanto os 60% eram consistentes com a média da área do euro, quando a regra foi adotada, sabemos que hoje a média está próxima de 100%. Por outro lado, enquanto estabilizar o nível de dívida nos 60% era consistente com as taxas de crescimento nominais de há 20 anos, já vários autores e instituições, como recentemente o ESM [Mecanismo Europeu de Estabilidade], mostraram que não o é com a realidade atual. O ESM aponta para um referencial de 100%, que é também o valor que este governo tinha proposto alcançar até 2023, antes da pandemia.
Que outras mudanças deveriam ser consideradas?
O pano de fundo para a revisão das regras deve ser que as regras são apenas um meio para o fim e não o fim em si. O fim deve ser a estabilidade e um crescimento económico sustentável. E é por isso que precisamos de regras amigas do crescimento e que salvaguardem o papel estabilizador da política orçamental, especialmente quando as taxas de juro estão próximas de zero. As regras devem ser realistas, para que estas sejam credíveis e criem de facto um sentido de responsabilidade. Neste sentido parece-nos que o mais importante é ajustar a regra da dívida que está mais desenquadrada da realidade atual. Seja mudando o referencial de 60%, criando uma âncora intermédia para os países de dívida alta ou adaptando o período de ajustamento para se alcançar o referencial. Neste contexto, uma alternativa que tem sido discutida é haver ritmos de redução da dívida diferenciados, envolvendo o próprio país na definição do ajustamento, de forma a aumentar o nível de responsabilização. Finalmente, o quadro orçamental europeu beneficiaria de regras mais simples, transparentes e menos dependentes de variáveis não observáveis como o produto potencial.