Ter a moeda dominante no mundo é um “privilégio exorbitante”. Foi assim que Giscard d’Estaing, o antigo ministro das finanças e presidente francês, classificou o domínio do dólar americano na década de 60 do século passado. Desde o final da II Guerra Mundial que a divisa dos EUA tem a hegemonia como reserva e nos pagamentos, o que dá a esta potência o poder se usar a sua moeda como uma ferramenta de influência geopolítica, como a imposição de sanções a países inimigos que ficam cortados do sistema financeiro mundial.
Mas esse domínio pode estar ameaçado. “O mundo está num rumo de escalada das tensões entre os EUA e a China como concorrentes ao domínio económico e político global, acelerado pela pandemia de Covid-19”, observam Andrea Filtri, Noemi Peruch, Alberto Nigro e Simonetta Chiriotti, analistas do Mediobanca, num relatório a que a EXAME teve acesso. Notam que “já vemos isso em setores estratégicos como a tecnologia, dados, redes sociais e nos semicondutores e os últimos sinais de tensões incluem materiais essenciais para o setor da defesa”.
O braço de ferro também já chegou ao poder das moedas. “Identificamos as moedas digitais como as próximas, e não testadas, ‘armas’ com a China a posicionar-se para ser a primeira a lançar uma moeda digital de banco central (CBDC), chamada DC/EP”, referem os analistas do Mediobanca. O gigante asiático tem já alguns projetos-piloto em várias cidades e poderá lançar o seu e-renminbi já no próximo ano. Esta ferramenta “deverá dar à China uma ferramenta para transacionar com outros países independentemente do atual domínio do dólar dos EUA no sistema de pagamentos global”.
Identificamos as moedas digitais como as próximas, e não testadas, ‘armas’ com a China a posicionar-se para ser a primeira a lançar uma moeda digital de banco central.
Além do dólar ser a moeda dominante, Washington consegue também controlar o sistema de pagamentos global. Por exemplo, quando decidem sanções contra algum país conseguem isolá-lo, retirando os bancos dessa economia do sistema de transferências internacionais em dólares, o que é uma poderosa arma geoestratégica que consegue isolar as nações alvo desta medida do comércio com o resto do mundo.
O DC/EP poderia dar à China “a capacidade para agir fora da supervisão dos EUA e um backup no caso de os EUA banirem a China das transações em dólares dos EUA”, considera a equipa de analistas do Mediobanca. Além disso, sublinham, “a China poderia oferecer o acesso à sua CBDC aos países parceiros no projeto Belt and Road e a países que queiram sair da supervisão americana”. Já a nível interno, o e-renminbi daria ao regime de Pequim mais dados e controlo.
Além da ameaça da moeda digital chinesa, o dólar (e outras divisas mundiais) enfrentam ainda outro tipo de concorrência. Mais que as criptomoedas como a bitcoin, que veem como um investimento de nicho, os especialistas do banco italiano consideram que a Libra/Diem, a moeda digital promovida pelo Facebook e outras tecnológicas, tem um grande ponto forte. O objetivo “é criar um sistema de pagamentos/moeda novo, único, global e barato alavancado pelo alcance global do Facebook com disseminação alargada (cerca de três mil milhões de pessoas)”. O risco para este projeto é a resposta regulatória.
Mas, defende a equipa de analistas do Mediobanca, “tanto a Libra/Diem como a moda digital do banco central na China são ameaças credíveis à atual soberania monetária das moedas locais e à erosão da dominância global do dólar dos EUA”.
Europa contra-ataca com euro digital?
Os economistas do Mediobanca consideram que os fenómenos Trump, Brexit e pandemia foram um sinal de alerta para a União Europeia sobre o seu papel no meio desta luta geopolítica entre os gigantes americano e asiático. “A Europa percebeu que apenas pode defender a sua relevância com a união de esforços e o Fundo de Recuperação, o escudo protetor do BCE e a formação de concorrentes globais da UE com a fusão de campeões nacionais são os primeiros passos”, indica o relatório do banco italiano.
Mas a UE pode estar a preparar uma nova “arma”, além daquelas medidas que já foram anunciadas. “É preciso mais e o euro digital é a principal carta da UE para ganhar flexibilidade em várias frentes”, defendem os analistas do Mediobanca. Consideram que esta moeda digital controlada pelo BCE seria uma arma para o banco central defender a soberania monetária face às moedas digitais estrangeiras.
Além disso, defendem, o euro digital ajudaria a Comissão Europeia a fortalecer a independência estratégica e o papel internacional do euro ao separá-lo da influência dos EUA no sistema de pagamentos, reconquistando o controlo dos pagamentos e construindo ligações fortes com outros países parceiros. Outra das vantagens seria de que esta ferramenta daria um impulso na integração europeia. “O efeito sinérgico é único para a Europa, o que provavelmente explica que o BCE tenha tomado a dianteira no Ocidente”.
O efeito sinérgico é único para a Europa, o que provavelmente explica que o BCE tenha tomado a dianteira no Ocidente
O BCE tem acelerado no processo para o lançamento de um euro digital e é dos países ocidentais mais adiantados no trabalho preparatório sobre CBDC. A decisão só será oficializada em meados deste ano, mas os responsáveis da instituição têm preparado o terreno para avançarem com este novo instrumento. Após a divulgação de um relatório sobre o euro digital no ano passado, a autoridade monetária liderada por Christine Lagarde está já a discutir o assunto com os estados-membros a forma como se poderá operacionalizar esta nova ferramenta de forma a reforçar o papel da moeda europeia.
Os analistas do Mediobanca notam que “as comunicações mais recentes da Comissão Europeia colocam o euro digital como uma ferramenta para aumentar a independência estratégica europeia, para defender as empresas da UE de sanções de outros países e para aumentar o perfil global do euro”. No entanto, observam que estas metas são bem mais ambiciosas do que as que têm sido referidas pelo BCE.
As indicações do banco central são de que a intenção não é “matar” as notas e moedas e que o euro digital seria apenas um complemento à forma como lidamos atualmente com o dinheiro, o que teria um impacto moderado no sistema financeiro e de pagamentos como o conhecemos. As opções estudadas pelo BCE apontam para que o euro digital tenha limites máximos moderados, de forma a manter a estabilidade financeira e evitar consequências graves para o sistema bancário. No entanto, o banco central admite que o euro digital poderá ser usado como arma de política monetária, mas não dá sinais de querer explorar essa possibilidade, deixando-a de fora do relatório sobre o euro digital.
A questão já não é tanto se teremos um euro digital, mas a forma e as repercussões que assumirão. Para a equipa de analistas do Mediobanca “quanto mais credíveis forem as ameaças externas, mais extensa será resposta da implementação do euro digital”. E acreditam que “nesta fase, a Europa está ainda a avaliar as diferentes alternativas, deixando todas as opções em aberto”.