A Gâmbia é um dos países da África Ocidental com mais migração ilegal para a Europa. As estimativas apontam que, em cada três pessoas que tentam chegar ao Velho Continente, uma acaba por morrer no caminho. Face a estas probabilidades trágicas, lançar uma campanha de sensibilização no terreno a alertar para esses números poderia parecer algo sensato e eficaz para desincentivar a migração ilegal. Mas essa iniciativa arriscaria ter o efeito contrário. É que entre os jovens gambianos que ponderam aventurar-se na travessia, a crença é de que as probabilidades são ainda piores. Pensam que em cada dois que tentam chegar à Europa, um acaba por perder a vida. E, mesmo com essa expectativa de uma taxa de sobrevivência de apenas 50%, uma parte significativa estaria disposta a arriscar na busca de uma vida melhor. Assim, lançar uma campanha com base na informação de que um terço dos que se aventuram rumo ao Velho Continente morre nessa viagem não seria uma boa ideia. Poderia mesmo servir de reforço aos que pensam seguir esse caminho.
É um exemplo do tipo de erros que custam vidas e que podem ser evitados com uma avaliação experimental no terreno ao impacto de medidas e de políticas. Esta linha de investigação experimental valeu o Prémio de Ciências Económicas em memória de Alfred Nobel deste ano a Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer e tem sido utilizada para combater a pobreza. Os dois primeiros economistas foram os responsáveis pela criação, em 2003, do Poverty Action Lab do MIT, onde estas abordagens inovadoras foram aprofundadas. Em Portugal, o Novafrica, um centro de conhecimento e investigação criado em 2011 pela Nova School of Business and Economics, segue a mesma linha de investigação e chegou àquelas conclusões surpreendentes sobre migrações num trabalho de campo na Gâmbia. Os diretores científicos do Novafrica, Cátia Batista e Pedro Vicente, explicaram à EXAME a abordagem inovadora que está a revolucionar a economia e a importância que a distinção pode ter para o mundo e para a luta contra a pobreza.
“Este Prémio Nobel é um sinal importante porque, apesar de instituições internacionais como o Banco Mundial ou de a ajuda norte-americana e britânica terem incorporado este aspeto da avaliação experimental, há ainda muita ajuda que não o faz”, afirma Cátia Batista. A economista revela que “foi surpreendente ir a Bruxelas ao kick-off do projeto [na Gâmbia], havia muitos milhões de euros que tinham acabado de ser atribuídos a diferentes projetos, e aperceber-me de que o nosso era o único que fazia avaliação de políticas. Em todos os outros esta ajuda estava a ser dada a campanhas de informação cujo impacto não iria ser medido.” Sem avaliações experimentais corre-se o risco de haver “efeitos inesperados que não são minimamente o que se pretende”, explica. “Se estivéssemos apenas a dar informação sobre os riscos da viagem, o que iríamos fazer era aumentar a emigração e não diminuí-la”, diz. Realça que “o que aprendemos neste contexto reforça a ideia de que é preciso experimentar as políticas antes de serem replicadas em larga escala”.
Depois de, numa fase inicial, os inquéritos feitos no terreno terem revelado que, mesmo com apenas 50% de hipótese de sobrevivência, 60% dos jovens ainda ponderavam aventurar-se na tentativa de chegar à Europa, é tempo de procurar as formas mais eficazes de desincentivar essa migração perigosa e de testar outro tipo de soluções. “O que estamos agora a fazer é, através de jogos comportamentais, avaliar diferentes alternativas políticas para tentar que estes jovens não venham de uma forma irregular para a Europa, colocando-se numa situação muito vulnerável”, explica Cátia Batista. “Passamos informação de que uma pessoa que saia da África Ocidental apenas tem 4% de hipótese de conseguir chegar à Europa e ficar numa situação regular, damos formação profissional e mostramos que há migrações regionais que são totalmente legais e em que se fica numa situação menos vulnerável, por exemplo da Gâmbia para o Senegal. O que tentamos fazer é mostrar esta hipótese e facilitar esta migração.”
Seja nas migrações ou noutros contextos, como a saúde, testar as políticas pode evitar mortes. “No caso das migrações por causa deste risco, mas no caso da saúde, por exemplo, podemos salvar as vidas de milhões de crianças”, acredita Cátia Batista.
Uma Economia ao serviço das pessoas
Antes do Nobel deste ano, foram poucas as vezes em que o trabalho ligado ao combate à pobreza recebeu a distinção da Academia. Em 1998, Amartya Sen foi laureado pelos “contributos na economia do bem-estar” e em 2015 o prémio foi para Angus Deaton, “pelas análises relacionadas com o consumo, a pobreza e o bem-estar”. Este ano a justificação para o Nobel foi “a abordagem experimental para aliviar a pobreza global”. Na maior parte das vezes, o prémio é atribuído a economistas por avanços em teorias macroeconómicas ou relacionadas com os mercados financeiros.
O Novafrica utiliza a mesma abordagem experimental que valeu o Nobel a Abhijit Banerjee, Esther Duflo e Michael Kremer
Pedro Vicente destaca que o trabalho galardoado este ano “ajudou muito a trazer a economia em geral para um lado mais empírico, mais ligado à realidade, e a trazer evidência para formar políticas públicas e para estar mais perto das pessoas”. Considera que a influência da abordagem experimental vai bem além da economia de desenvolvimento. O diretor científico do Novafrica afirma que “com o tempo, a economia tem vindo a ficar um pouco mais modesta. Teve um período longo em que a teoria era muito importante. Mas estávamos a montar um castelo muito grande em cima de poucas premissas, sendo que algumas delas não são propriamente verdade. Os modelos são úteis para organizar pensamento, mas é preciso ter um pouco de modéstia sobre o que são hipóteses de trabalho que, em última instância, se somos uma ciência, precisam de ser testadas”. Nota ainda que nos “últimos 20 anos tem havido uma maior intensidade no esforço para testar essas hipóteses e fazer um trabalho empírico bem feito e em que se consiga estabelecer causalidade, e é nesse contexto que aparece esta linha de trabalho”.
A revolução desta abordagem experimental não é só na forma como se faz economia mas também no foco que a economia deve ter. Cátia Batista afirma que o Nobel deste ano “é um sinal realmente importante para uma mudança de direção e para colocar a economia e a política económica ao serviço das pessoas e a terem um impacto nas suas vidas”. Isto depois de a crise financeira e de a depressão económica terem chamado “a atenção para a incapacidade da economia, enquanto ciência, de prever o funcionamento dos mercados”. A diretora científica do Novafrica explica que esta abordagem “mais experimental e mais virada para o desenho de políticas que têm de ser baseadas em evidência rigorosa para se tornarem mais eficazes e terem impacto é um pouco o oposto da economia que se vinha a fazer, muito centrada na macroeconomia e na big picture que, obviamente, têm o seu papel, mas que não chegam. É isso que nos têm demonstrado a experiência e o trabalho dos economistas nos últimos anos. Tem sido bastante evidente que não basta o que se tem feito até agora”. E lança a hipótese de que “o objetivo de tentar fazer modelos macro que se apliquem universalmente talvez não funcione”.
Acabar com a pobreza. Um passo de cada vez
Na nota em que justificou o Nobel deste ano, a Academia Real das Ciências da Suécia indicava que “apesar das melhorias significativas, um dos problemas mais urgentes da Humanidade é a redução da pobreza global, em todas as suas formas. Mais de 700 milhões de pessoas ainda subsistem com rendimentos extremamente baixos. Todos os anos, cerca de cinco milhões de crianças com idade inferior a 5 anos morrem devido a doenças que podem ser prevenidas ou curadas com tratamentos não dispendiosos. Metade das crianças do mundo ainda deixa a escola sem competências básicas de literacia ou numéricas”. Com estes números trágicos, será utópico pensar que um dia a pobreza poderá ser erradicada?
“Por mais que se tenha um ponto de partida um pouco absoluto sobre a pobreza, o conceito tem uma parte relativa. Se assim for, será sempre difícil erradicar a pobreza”, responde Pedro Vicente. Mas o diretor científico do Novafrica acredita que se “podem resolver os problemas que são realmente de pobreza completa e de mortes sem sentido”. Realça que “felizmente é o que tem acontecido e a globalização conseguiu trazer alguma menor desigualdade entre países e teve efeitos ao tirar muitas pessoas da pobreza absoluta”.
Apesar do problema urgente da pobreza, a Academia que atribui o Prémio de Ciências Económicas salientou que “nas últimas duas décadas, as condições de vida melhoraram de forma significativa em quase todos os locais do mundo. O bem-estar económico (medido com o PIB per capita) duplicou nos países mais pobres entre 1995 e 2018. A mortalidade infantil caiu para metade relativamente a 1995 e a proporção de crianças a frequentarem a escola aumentou de 56% para 80%”.
Mas há muito trabalho a fazer. E, por vezes, soluções simples e pequenas mudanças teriam efeitos extraordinários. Pedro Vicente destaca que “especialmente na área da saúde, é relativamente fácil” evoluir. E dá o exemplo de um projeto que a Novafrica tem em curso na Guiné-Bissau. “É um dos países com maior mortalidade infantil do mundo e a maneira como isto se resolve é trazendo as pessoas para o sistema de saúde formal, e isso começa na gravidez, fazendo o acompanhamento e os partos em centros de saúde e não em casa e com parteiras tradicionais. Mas isso, na Guiné-Bissau, ainda é um desafio muito grande.” Uma possível solução para esse problema é o papel dos agentes de saúde comunitários. “É uma figura muito importante em termos de saúde pública nestes contextos. São pessoas das comunidades que são treinadas para fazer coisas simples, como testar a malária ou dar alguns tratamentos”, refere Pedro Vicente. São também importantes para sensibilizar as populações a recorrerem ao sistema de saúde formal. A Novafrica está a testar incentivos não financeiros que possam motivar os agentes de saúde comunitários a ser mais eficientes nessa função.
O economista conclui que “o que falta nestes contextos mais difíceis é as pessoas incorporarem ideias simples de prevenção. É muito um problema de comunicação. Já não é um problema de tecnologia, começa a ser menos um problema de infraestrutura, continua a ser um pouco um problema de oferta, mas é principalmente um problema de procura”. Enquanto não se encontrarem soluções concretas adaptadas a cada um dos problemas, a forma de colocar a economia ao serviço das pessoas que teve Banerjee, Duflo e Kremer como pioneiros continuará no terreno a testar e a experimentar para resolver uma questão de cada vez e mitigar o problema da pobreza.
Da prevenção do terrorismo à integração de imigrantes
O centro Novafrica, da Nova School of Business and Economics, está ativo em países como Portugal, Moçambique, Gâmbia, Guiné-Bissau e Angola
> Moçambique
Alguns dos projetos neste país envolveram o potencial que o serviço de envio de mobile money através de um telemóvel simples poderia ter para diminuir a incidência da fome no contexto de calamidades naturais e da migração para regiões mais ricas e no apoio financeiro a outros elementos da família para terem acesso a cuidados de saúde e educação. O Novafrica fez ainda estudos no Norte de Moçambique, onde se têm intensificado ataques terroristas ao mesmo tempo que se inicia a exploração de recursos naturais, que concluíram que a formação antirradicalização islâmica promovida pelas mesquitas locais é mais eficaz a diminuir a violência do que a formação para melhorar a empregabilidade no mercado de trabalho.
> Guiné-Bissau
Neste país, os projetos incidem sobretudo na área da saúde. Os economistas tentam encontrar as melhores soluções para levar a população a recorrer aos serviços médicos modernos e concluíram que os agentes de saúde comunitária têm um papel essencial para se atingir esse objetivo. Foram feitos estudos experimentais sobre como motivar e melhorar a eficiência destes agentes.
> Angola
A educação tem sido a principal área de atuação do Novafrica em Angola. Têm sido feitos testes em que a utilização de tecnologia, como tablets com software educacional moderno, resulta na melhoria da motivação dos professores e dos resultados dos alunos.
> Gâmbia
Os estudos experimentais no terreno têm permitido conhecer a dose de risco que os jovens estão dispostos a aceitar para migrarem de forma ilegal para a Europa, para poderem lançar-se estratégias eficazes de desincentivo a esse tipo de viagens e apresentarem-se alternativas menos perigosas.
> Portugal
O trabalho do Novafrica também se estende a Portugal. Os economistas estão à procura de formas eficazes de integrar os imigrantes. Estão no terreno estudos com imigrantes cabo-verdianos que chegaram recentemente a Portugal. O ensino é outra área em que se pretende obter mais conhecimento para aumentar a aspiração dos alunos em concluírem o Ensino Superior.
Artigo publicado em novembro de 2019 na edição 427 da EXAME