Squid Game é a série maior sucesso de sempre da Netflix. A mistura de Battle Royale com Hunger Games, com uma dose de crítica às desigualdades sul-coreanas e estética de jogo de vídeo da PlayStation chegou a nº 1 em 94 países e foi vista por 142 milhões de pessoas nas primeiras quatro semanas, pulverizando o recorde de Bridgerton (82 milhões). O êxito seguiu as previsíveis fases dos últimos anos: exploração dos méritos da série, captura da imagem por outros negócios, cosplay de gosto duvidoso, “isto é tudo sobre o capitalismo”, pânico moral e, claro, fraude financeira com criptoativos. No entanto, embora este nível de sucesso tenha sido surpreendente, ele não aparece por acaso. As séries internacionais têm sido e serão cada vez mais centrais para a Netflix conquistar o mundo ou ser apanhada pelas concorrentes.
Este não é espaço para avaliar os ingredientes que justificam o sucesso de Squid Game, muitos deles aplicados a outros conteúdos Netflix (violência, mistério, nostalgia…), mas parece claro que a série beneficiou de uma popularidade crescente da cultura pop sul-coreana, um contágio de FOMO cada vez mais rápido e eficaz, redes sociais apaixonadas (vídeos no TikTok sobre a série acumularam 42 mil milhões de visualizações, diz a empresa), a capacidade única da Netflix para apresentar versões dobradas da série em 34 línguas e uma máquina de marketing bem oleada.
Dados enviados pela Parrot Analytics para a VISÃO mostram que, entre 17 de setembro e 7 de novembro, a série teve uma procura mundial 80 vezes maior do que a média das séries. “É a maior procura de audiência global de qualquer série nesse período”, aponta a empresa.

O gráfico em cima usa a métrica da Parrot Analytics para estimar a “procura” por uma série. É um indicador complexo, mas a que temos que recorrer, porque os dados de audiência disponibilizados pelas plataformas de streaming são impossíveis de escrutinar e ainda mais difíceis de comparar entre si. A “procura” cruza pesquisas no Google, Wikipédia e sites como IMDB e Rotten Tomatoes, com visualização de teasers e trailers no Facebook ou YouTube, assim como análise de sites de downloads ilegais e posts, likes e partilhas nas redes sociais.
Neste caso, o indicador mostra o lastro de um mega-sucesso mundial como Game of Thrones e a força de outro êxito internacional – Casa de Papel. Ambos ficam atrás de Squid Game. “Não poderíamos imaginar que seria tão grande mundialmente”, admitiu à “Vulture” Bela Bajaria, responsável pela programação original da empresa com um olho na oferta internacional. A plataforma de streaming estava convencida que poderia ter um sucesso regional nas mãos, mas não imaginava que fosse além disso. Inicialmente, quase não promoveu a série fora da Ásia.
Mas talvez não devesse ser uma surpresa assim tão grande. Afinal, alguns dos êxitos recentes da plataforma de streaming têm fugido do habitual eixo EUA-Reino Unido. Com diferentes níveis de sucesso e de categorização como “produção internacional”, Casa de Papel, Lupin, Dark e Narcos encorajaram a Netflix.
Normalmente, as séries viajam entre continentes em duas situações: um sucesso norte-americano – por exemplo, CSI – acaba por chegar, anos depois, à televisão portuguesa; uma série europeia ou asiática chama a atenção de Hollywood, que decide fazer uma versão para o mercado americano (Shameless, The Office, House of Cards). Hoje, a estratégia parece ser outra: apostar em histórias e produções locais, aplicar-lhes a “fórmula Netflix” e torná-las o mais apetecíveis possível para uma audiência global.
A América Latina foi um alvo inicial, começou a chegar à Europa e basta fazer um scroll pelas novidades do catálogo Netflix para perceber que a principal aposta agora é a Ásia. Só este ano, a Netflix planeava investir 500 milhões de dólares em originais sul-coreanos.
Os analistas financeiros veem a biblioteca internacional da Netflix como um dos seus principais fatores diferenciadores face às outras plataformas. “A Netflix está super-focada nos mercados internacionais para crescer”, explica à VISÃO Ajay Mago, advogado e sócio da EM3, especializado na área do entretenimento. “Muito do seu orçamento está alocado a séries na Índia, na Coreia do Sul, no Japão e na Nigéria.”
A Netflix está super-focada nos mercados internacionais para crescer. Muito do seu orçamento está alocado a séries na Índia, na Coreia do Sul, no Japão e na Nigéria
Ajay mago
A Parrot Analytics nota que essas produções são “cada vez mais importantes” para a empresa. “Originais internacionais como Squid Game, Casa de Papel e Dark tornaram-se todas na série número 1 do mundo no seu lançamento”, respondem à VISÃO. “A procura por conteúdo original é o fator-chave para o número de subscritores, portanto estes sucessos são decisivos para o futuro de crescimento da Netflix, principalmente fora dos EUA e Canadá:”
A lógica é fácil de perceber: produções locais funcionam como mega-ações de marketing para a plataforma de streaming. Oportunidades para angariar novos utilizadores em mercados normalmente menos saturados do que o americano. “Se vamos ter membros em dezenas de países, queremos uma programação que eles adorem e com que lhes diga alguma coisa”, diz Bajaria. Basta ver a atenção mediática que recebeu Glória, a primeira série portuguesa produzida pela Netflix (a VISÃO escreveu sobre ela há poucas semanas).
Nem sempre é fácil perceber o que é um verdadeiro sucesso. A Netflix só partilha números que lhe são favoráveis e, mesmo esses, são extremamente opacos. Por exemplo, os 142 milhões de pessoas que “assistiram” a Squid Game incluem todas as pessoas que viram dois minutos da série. Se eu experimentar ver o primeiro episódio e desistir ao fim de 15 minutos, estou dentro daqueles 142 milhões. Dados internos noticiados pela Bloomberg permitiram-nos saber que 117 milhões aguentaram pelo menos 75 minutos e que “só” 87 milhões viram toda a temporada.
Contudo, mais uma vez, falta-nos termo de comparação com outras plataformas. Como compara Squid Game com Ted Lasso? Ou The Crown com Watchmen? Sem os habituais números de bilheteira, essa avaliação tornou-se mais complicada para um filme ou série da Netflix, HBO ou Amazon. E deixou Hollywood obcecada com a falta de ferramentas para medir sucesso.
Por isso é que indicadores como os da Parrot Analytics, com todas as suas limitações, são úteis. Por exemplo, apesar de toda a atenção que recebeu nos media, entre 17 de setembro e 7 de novembro, Squid Game não entrou no top 10 nacional. “Squid Game foi a 16ª série com maior procura em Portugal nesse período, com 9,6 vezes mais procura do que a média”, diz a empresa.
Squid Game foi a 16ª série com maior procura em Portugal nesse período, com 9,6 vezes mais procura do que a média
Parrot analytics

De braços abertos
Além de ajudar a conquistar e fixar subscritores, esta internacionalização tem também motivos financeiros. As produções locais são a fase mais visível, mas os estúdios saem cada vez mais dos EUA para filmar ou delegam em equipas doutros países elementos do processo. “Há pressão das empresas de media ocidentais para filmar no estrangeiro para baixar os custos”, diz Mago.
Países como Portugal têm os braços abertos para estes projetos e promovem-se como possível local de filmagens, como está a acontecer em Monsanto, como a rodagem de House of the Dragon, a prequela de Game of Thrones. O investimento estrangeiro dinamiza um setor com poucos meios; e ser pano de fundo de uma grande produção promove o país como destino turístico.
“Muitos países estão basicamente a pagar produções”, explica Ajay Mago, citando quatro tipos de apoios: incentivos fiscais, financiamento público, subsídios regionais e pagamento de campanhas de marketing. A Nova Zelândia foi pioneira, primeiro com Xena: Warrior Princess (1995-2001) e depois com a trilogia The Lord of the Rings. Mais recentemente, diz Mago, os Emirados Árabes Unidos têm tentado atrair a indústria (Star Wars, Fast & Furious, Dune, Mission: Impossible). Entre outros exemplos destacados por Mago está a Colômbia, com um reembolso de 60% e as Fiji com 50%. No Canadá, há um incentivo entre 30% a 70% de créditos fiscais.

Portugal oferece a estas produções um reembolso até 30% da despesa feita em Portugal com um mínimo de 500 mil euros investidos. Ao contrário de outras regiões, este apoio tem a vantagem de fazer pagamentos adiantados. É a sua forma de competir com outros países mediterrânicos que já oferecem este tipo de incentivos há mais tempo. Entre 2018 e 2020, foram apoiados 48 projetos (nem todos filmados), entre eles o último Rambo, que investiram 58,7 milhões de euros em Portugal e cujo reembolso custou 15,3 milhões ao Estado.
Manuel Claro, comissário da Portugal Film Commission, é uma espécie de caixeiro viajante do cinema nacional, procurando vender Portugal como um bom destino para filmar. “Há cinco ou seis anos, Portugal não estaria no radar destas grandes produções. Neste momento, está no radar de todos”, diz à VISÃO.
Sem poder revelar quais, diz que Portugal está a ser considerado para outros grandes projetos internacionais, que podem envolver plataformas de streaming ou outros estúdios. O relatório mais recente do Fundo de Apoio ao Turismo e Cinema refere que estão a ser avaliados investimentos de 80 milhões de euros.
Filmar no interior alentejano fica muito mais barato do que na Califórnia e contratar operadores de câmara ou atores portugueses fica mais em conta do que profissionais americanos. Manuel Claro recusa que esse seja um fator determinante para distinguir Portugal. “Não somos seguramente os mais baratos, mas também não somos os mais caros”, sublinha.
Para a indústria nacional, significa ter acesso a meios que as produtoras nacionais raramente têm. É isso que fica visível em cada frame de Glória. “Terá sido a série mais cara de sempre da ficção portuguesa, com cinco ou seis vezes o orçamento de uma série da RTP”, estima Pedro Boucherie Mendes, diretor da SIC Radical. Para onde vai o dinheiro? “Essencialmente mais tempo. Em vez de alugar um hotel por três dias para gravar umas cenas, aluga-se por um mês. Não se faz boa televisão ou televisão de luxo sem dinheiro.”
[Glória] terá sido a série mais cara de sempre da ficção portuguesa, com cinco ou seis vezes o orçamento de uma série da RTP
Pedro boucherie mendes
Tantos as equipas nacionais como a Netflix têm instruções para não mencionar valores. Mas, para se perceber a diferença, basta pensar que uma telenovela pode gravar 180 episódios em sete meses e que os 10 episódios de Glória demoraram quatro meses e meio, escrevia a VISÃO. Envolveu 150 atores, 130 profissionais e 20 empresas. “É uma diferença grande. Uma série como “Glória” tem um valor de produção e orçamento que a grande maioria das séries portuguesas não consegue ter”, diz Manuel Claro.
Mais rentável que Chapelle
Com custos de produção mais baixos, isso significa que, mesmo quando a audiência não é enorme, estes projetos podem ser rentáveis. Segundo a Bloomberg, que cita dados da empresa até agora nunca divulgados, Squid Game custou 21 milhões de dólares à Netflix, tendo gerado 891 milhões de “valor de impacto”, uma métrica que simula o contributo financeiro de determinado conteúdo.
Por comparação, o especial de stand-up de Dave Chappelle, embora também seja um dos conteúdos mais vistos da plataforma, não conseguiu sequer ser “rentável”: custou quase 24 milhões de dólares e teve um impacto económico estimado de menos de 20 milhões. Os 9 episódios de Squid Game ficaram mais baratos do que a 1h12 do comediante. Claro que estes números não esgotam o interesse da Netflix numa série ou filme. The Crown é muito caro de produzir, mas limpa todos os anos os Emmys. Roma, o filme de Alfonso Cuarón, pode não ter sido visto por muita gente, mas ganhou três óscares.
O especial de Chappelle também marcou a atualidade. Neste caso, talvez não por motivos que tenham agradado à Netflix. Os seus comentários sobre a comunidade transexual provocaram um dos raros casos de publicidade negativa para a empresa, com protestos de trabalhadores e profissionais a dizerem que não voltam a trabalhar para o estúdio.
Outra vantagem de Squid Game, ainda neste campo financeiro, é ter criado nova propriedade intelectual para a Netflix explorar. Tal como a Disney vai espremendo todo o sumo que pode de Star Wars ou do catálogo infinito da Marvel, a Netflix tem aqui uma fonte de sequelas, prequelas, spin-offs e venda de merchandise. A diferença é que ficou muito mais barato. Por comparação, a grande aposta da Amazon para se tornar mais relevante no espaço do streaming é uma série inspirada em Lord of the Rings, que custou 465 milhões a produzir, a que se somam 250 milhões pelos direitos do livro de JRR Tolkien. A Disney pagou 4 mil milhões pela Marvel.
Ajay Mago aponta que os 2,4 milhões de dólares por episódio de Squid Game comparam com 8 milhões por cada episódio de Stranger Things e 10 milhões por cada um de The Crown. Cada episódio de Falcon and Winter Soldier custou mais do que toda a temporada de Squid Game.
Para mim, o mais excitante seria que o próximo Stranger Things viesse de fora da América
Ted sarandos (em 2018)
“Para mim, o mais excitante seria que o próximo Stranger Things viesse de fora da América. Até agora, historicamente, nada dessa escala veio de outro local que não seja Hollywood”, disse Ted Sarandos em 2018. Estes números ajudam a perceber melhor o lado financeiro desse entusiasmo do co-CEO da Netflix.
Passaporte para a sobrevivência
Embora a Netflix domine o mercado – tornou-se quase um sinónimo de streaming -, vários analistas têm argumentado que a sua posição é mais precária do que aparenta. Após ter sido pioneira neste espaço, tem visto nascer à sua volta novas plataformas e um reforço das já existentes. Algumas com bibliotecas invejáveis (Disney, HBO/Warner), outras com rios de dinheiro para gastar (Apple, Amazon). A Netflix continua a crescer, mas a sua fatia da tarte tem ficado mais pequena.
No segundo trimestre deste ano, pela primeira vez, a Netflix ficou abaixo de 50% na procura por originais de plataformas de streaming, mostram os dados da Parrot Analytics. A procura por conteúdos originais noutras plataformas disparou 196%, desde meados de 2019.

A posição dominante da Netflix, mas também a sua perda de peso ficam ainda mais claras neste segundo gráfico enviado pela Parrot Analytics.

Longe vão os tempos em que os canais e estúdios achavam que ter as suas séries na Netflix era apenas um bónus de notoriedade. “A Netflix foi-se tornando um monstro. A dada altura, os concorrentes começaram a fundar as suas próprias plataformas de streaming e a Netflix percebeu que tinha de construir catálogo”, recorda Boucherie Mendes. “Quando decidiram que a sua pegada deveria ser global, começaram a comprar por todo o mundo. Em Portugal, quando chegaram, compraram à SIC uma telenovela e especiais do Sinel de Cordes.”
A Netflix entrou numa corrida contra o tempo, à medida que foi sendo privada de séries e filmes que compunham a sua biblioteca – e que regressaram aos seus produtores originais ou ficaram mais caros. Porque há de a Disney autorizar que filmes da Marvel estejam na Netflix, agora que tem o seu próprio canal de streaming?
A fúria de produção da Netflix transformou-a no maior estúdio norte-americano. Só este ano, previa gastar quase 15 mil milhões de euros em conteúdo original. “É como a corrida às armas durante a Guerra Fria. Agora é a corrida aos conteúdo, com os streamers a saltarem uns por cima dos outros para encontrar conteúdos para produzir em exclusivo, que lhes permitam angariar subscritores antes que a concorrência lá chegue”, diz à CNBC Domenic Romano, advogado da área do entretenimento.
Além de competirem entre si por futuros sucessos como Squid Game, as empresas de streaming procuram também mostrar que não há um dia aborrecido nas suas plataformas. “É importante criar a ideia de que há sempre coisas novas para ver”, diz Boucherie Mendes. Mesmo que isso signifique apenas mais uns minutos de olhos vidrados a fazer scroll. “O grande ponto das plataformas não é que as pessoas vejam, mas que continuem a assinar o serviço”, acrescenta. Em princípio, uma coisa está ligada à outra, mas não necessariamente. O resto é guerra de números. E de percepção.