Tenho a plena consciência de que muitos leitores deste texto não são juristas. Ainda assim, faço um apelo. Veja o que diz o artigo 7.º da lei sobre a responsabilidade dos titulares de cargos políticos e tire as suas próprias ilações: terá o Presidente da República cometido o crime de traição à Pátria? Spoiler: não é preciso ser jurista. “O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar separar da Mãe-Pátria, ou entregar a País estrangeiro, ou submeter a soberania estrangeira o todo ou uma parte do território português, ofender ou puser em perigo a independência do País será punido com prisão de 10 a 15 anos.” Portanto: a menos que Marcelo Rebelo de Sousa, quando falou em reparações às antigas colónias, tenha pretendido entregar as Berlengas à Guiné-Bissau, não existe, nas suas declarações, intenções ou postura, qualquer vestígio ou indício de crime de traição à Pátria. E André Ventura, que é tido por um reputado jurista, ou tirou o curso na mesma universidade em que o outro obteve o diploma de engenheiro ou está a gozar com o pagode. Vamos por esta opção: Ventura está a gozar com o pagode e a prolongar uma espécie de polémica de que o Chega se alimenta, todos os dias, beneficiando do generoso tempo de antena diário da sua prédica da tarde em todos os canais noticiosos. A artificial acusação de crime de traição, em que o Chega tem continuado a insistir, mesmo que Ventura, para se defender das acusações de ignorância e de incompetência jurídicas, tenha admitido que “a doutrina se divide” e que “pode haver dúvidas” (mas que dúvidas, homem de Deus?!) tem um único e deliberado objetivo: a chicana politiqueira. E esta politiquice está a ser feita de forma primária, rasteira e à falsa fé, incorrendo, mesmo, no crime de injúria ao PR que, com Cavaco Silva em Belém, já teria sido participado.
Dito isto, vale a pena refletir sobre as palavras de Marcelo de que, pessoalmente, sou crítico, mais do que pela substância, pela ligeireza. Mesmo que Marcelo tenha apenas expressado uma opinião, exercendo o seu direito à liberdade de expressão, como veio depois dizer, um Presidente não tem opiniões. Tudo o que diz no espaço público, sobretudo, perante jornalistas estrangeiros, vincula a função e vincula o País. Depois, o PR deve fazer uma leitura mais atenta do que é o interesse nacional. Um estadista, mesmo dando de barato que reparações por factos do processo histórico seriam uma coisa justa, deve saber que as razões de Estado e o interesse nacional nem sempre coincidem com os mais puros princípios morais. Um Presidente é, também, o garante da autoestima nacional. E é uma espécie de “advogado” do País que representa – e um advogado defende a sua causa, independentemente do mérito da mesma. Não defende causas alheias. Mas vale a pena refletir, também, sobre a substância. A doutrina divide-se – e, aqui, divide-se mesmo – sobre a pertinência do revisionismo histórico (uma expressão de que não gosto, porque uma História revista é, precisamente, uma História cientificamente atualizada); ou sobre a possibilidade de enxertarmos valores atuais nos acontecimentos do passado, aplicando um princípio que o Direito nega, ou seja, a “retroatividade da lei”. (Também seria interessante saber quais são e onde estão essas alegadas Monas Lisas que, em mil quatrocentos e tal, pilhámos nos museus de Bafatá e que agora devemos restituir…) Ainda assim, há formas óbvias de reparação, a principal das quais é o reconhecimento, em sede do Ensino Básico, de que, ao contrário das narrativas nacionalistas do tipo “Estado Novo”, não existe glória, nem ela existiu em época alguma, na conquista, na pilhagem, na força bruta ou na subjugação de outros povos. Mas ela existe, e existiu sempre, na coragem, na contribuição para o progresso científico, no universalismo e no legado. Não devemos deitar a baixo a estátua de Afonso de Albuquerque, figura que, no quadro do seu tempo, é digna de admiração e respeito – e é um bocado estúpido arrancar inócuos arranjos florais meramente memorialistas, mantendo, ao mesmo tempo, o nome de Praça do Império… –, mas podemos e devemos erguer, igualmente, memoriais às vítimas do colonialismo (para não falar do reconhecimento dos líderes dos movimentos de libertação africanos a quem também devemos, indiretamente, a liberdade). Debater este tema com ligeireza é trair a inteligência. E receio bem que a única traição que Marcelo cometeu foi essa mesma.
Golpe de vista
Europeus, nós?
Os portugueses são, em todos os estudos de opinião, aqueles que mais valorizam a integração europeia e Portugal é o País onde a imagem da União é mais positiva. Ainda assim, há cinco anos, tivemos praticamente 70% de abstenção, nas eleições para o Parlamento Europeu. A “praga” dos debates e das respetivas horas de avaliação por comentadores de serviço terá o mérito, como aconteceu em sede de legislativas, de motivar o eleitorado. Espera-se que o esclarecimento predomine: os portugueses querem saber de que forma 21 deputados, num universo de 705, podem fazer a diferença. Se fizer alguma, a “malta” vota.
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