Há dez anos, quem falasse de criar um IRC mínimo a aplicar aos maiores conglomerados do mundo era recebido por um coro de críticas e de obstáculos, entre gritos de “impossível” e “utópico”. No entanto, após um empurrão decisivo da nova Administração norte-americana, foi precisamente isso que acabou por ser acordado entre 131 países responsáveis por nove em cada dez euros produzidos anualmente em todo o mundo.
A reforma traz duas mudanças centrais: a criação de uma taxa mínima de 15% a aplicar sobre as maiores multinacionais; e uma realocação dos direitos de tributação, permitindo taxar uma fatia dos lucros no país onde a empresa tem atividade (e não apenas onde tem a sede), especialmente relevante para as gigantes digitais, como a Apple e a Google.
Provavelmente poucas pessoas no mundo conhecerão tão bem este processo como Pascal Saint-Amans, diretor do centro de política fiscal e administração da OCDE e talvez o principal responsável pela condução das negociações, tendo trabalhado durante anos nos corredores da instituição para encontrar uma solução tecnicamente viável e politicamente aceitável para travar a corrida para o fundo na tributação das empresas.
Na edição de agosto da EXAME entrevistámos Saint-Amans. Esta é uma versão alargada dessa conversa por telefone:
Da última vez que falámos, disse-me que a Netflix devia pagar impostos em Portugal. Após este acordo estamos mais perto disso?
A resposta é sim, o acordo deixa-nos mais perto. Ele foca-se nas maiores empresas do mundo. A Netflix ainda não está lá, mas estará em breve. O acordo garante que 20% a 30% dos lucros [acima de uma margem de rentabilidade de 10%] serão tributados no país onde a empresa tem a atividade. Além disso, garante que as empresas irão pagar um mínimo.
O acordo foi inicialmente mal interpretado, achando-se que seria fácil às empresas escaparem.
O mecanismo que desenhámos permite que, se tivermos uma massa crítica de países, eles assegurem que as multinacionais pagam. Mesmo que Barbados não assinem o acordo, conseguimos garantir que as empresas não terão uma taxa abaixo de 15%. Não precisamos que todos assinem.
Mesmo com economias como a Irlanda de fora?
Tem economias em desenvolvimento, como Quénia e Nigéria, que quiseram ficar de fora. Nalguma altura, eles aceitarão. Depois tem três países europeus: Irlanda, Hungria e Estónia. A Irlanda já disse claramente que está comprometida com o processo [negocial], simplesmente não o querem já. A Irlanda juntar-se-á quando os EUA aprovarem a sua reforma fiscal. Na Estónia não acho que seja impossível. Quanto à Hungria, há problemas em muitos outros assuntos além dos impostos. Precisamos da Europa no acordo e a Europa precisa de unanimidade, mas não estou a ver estes países recusarem com todos os outros a querem.
E se isso acontecer?
Se os EUA fizerem a sua reforma, o resto do mundo implementar a mudança e apenas a Europa bloquear, haverá consequências políticas.
Esta reforma pode ser enfraquecida com excepções? Por exemplo, os bancos aparentemente terão uma.
Na discussão sobre o pilar 1 debateu-se como realocar os lucros das instituições financeiras e a resposta não era óbvia. Os lucros estão onde os clientes estão. Não é uma excepção. Simplesmente não estão dentro do espectro do pilar 1 [realocação dos direitos de tributação], mas estão no pilar 2 [imposto mínimo]. A outra excepção é a indústria extrativa. As rendas pertencem aos países não aos mercados. Seria absurdo mudar. Onde existem excepção é no transporte marítimo.
Alguns académicos argumentam que 15% é um valor baixo.
A beleza dos académicos é que podem dizer o que quiserem. 15% já é muito elevado e basta ver quão difícil foi chegar a um acordo. Há muitos países que usam os impostos para captar investimento. E não estamos a falar de uma taxa mundial, estamos a falar de um mínimo. Um limiar para lucros que não eram tributados. É extremamente ambicioso.
Podem um dia subi-la?
Para já, o objetivo é apenas implementar esta.
Esta reforma representa o fim da corrida para o fundo nos impostos?
Sim, será o fim [dessa estratégia].
E mostra que a política tributária está definitivamente de volta?
Sim, no grande esquema das coisas, está em causa a relação entre os cidadãos e a globalização. É um regresso da soberania dos Estados. Há duas formas de isso acontecer: xenofobia, nacionalismo e proteção do território; ou através de cooperação, regras comuns e regulação da globalização. Isso são boas notícias. O multilateralismo é melhor do que guerras comerciais e tensões. Elas podem servir propósitos políticos, mas são más para as pessoas.
A pandemia acabou por ter um impacto decisivo?
Diria que a crise financeira de 2008 é que motivou este debate. A pandemia acelerou-o. Entretanto, já tínhamos implementado BEPS [Base Erosion and Profit Shifting Project, um projeto para combater a evasão fiscal de multinacionais]. A Administração Trump era difícil de trabalhar, mas já tinha alguns destes fundamentos. Biden arrancou de novo com o processo e deu-lhe uma nova dinâmica. Tem tentado pacificar a relação dos EUA com o mundo, o que nos ajudou.
Como responde às críticas de que isto limita a atuação dos países mais pequenos?
Não dizemos que não deve haver concorrência fiscal, mas tem de haver um chão. Além disso, concorrência não é apenas nos impostos. É com contas públicas controladas, bons serviços públicos… É nisso que os países devem concorrer e não com regras fiscais obscuras. Se não trabalharmos nisto, os países pequenos vão sofrer excessivamente com novas regras comerciais. Por isso é que precisamos destes acordos, para que não sofram com a rejeição do multilateralismo pelos países grandes.
Que outras reformas fiscais se seguirão?
No ambiente. O próximo grande tema é o ambiente. Temos de trabalhar na fixação de preço [das emissões] de carbono.