A crise financeira de 2008 criou uma nova vaga de economistas e responsáveis políticos em busca de modelos alternativos de desenvolvimento económico. Os eixos principais das suas preocupações passam por colocar o combate às alterações climáticas no centro da atividade económica, dar prioridade à redução das desigualdades, garantir maior resiliência da economia e, em especial, do setor financeiro face a futuras crises, aceitar as limitações de métricas tradicionais de crescimento (como o PIB) e valorizar indicadores de bem-estar.
A OCDE tem sido uma das instituições mais ativas na exploração de uma nova forma de olhar e de falar sobre a economia. Em fevereiro, já entrevistámos por aqui William Hynes, que lidera a Unidade de Novas Abordagens a Desafios Económicos (NAEC, na sigla original). O núcleo tem organizado uma série de encontros e publicado vários documentos que tentem sintetizar as suas posições. Em setembro, divulgou o relatório “Beyond Growth: Towards a New Economic Approach”. A coordenação ficou a cargo de Michael Jacobs, professor na Universidade de Sheffield.
“A crise Covid-19 exige que as nossas sociedades façam escolhas críticas sobre o tipo de economias que desejamos reconstruir. Em cima da crise financeira, das alterações climáticas e das crescentes desigualdades amplamente sentidas na última década, a pandemia levantou sérias questões sobre a natureza do nosso sistema económico”, pode ler-se no documento. “O mundo enfrenta desafios económicos, sociais e ambientais profundos, mas muitas das políticas implementadas nos últimos 40 anos não parecem capazes de melhorar os resultados económicos e sociais da forma como outrora prometeram.”
O argumento central do relatório é que estamos a viver uma tempestade perfeita. Um momento de mudança do paradigma económico, em que as soluções do passado já não funcionam, mas as novas receitas ainda geram muita desconfiança. Isto já aconteceu antes. Nos anos 30/40, o keynesianismo trouxe novas opções para os governos lidarem com crises derrotando a lógica laissez faire. Nos anos 70/80, esse nível de intervenção do Estado deixou de ser visto como eficaz e foi dado mais espaço aos mercados.
A OCDE não é a única instituição preocupada em estudar e a pretender atuar neste momento de transição. Num debate recente, a diretora-geral do FMI, Kristalina Georgieva, frisou que “seria ter vistas-curtas regressar à economia de ontem, com os seus problemas de desigualdade crescente”. “Devemos olhar para a frente e aproveitar a oportunidade para construir uma ponte para algo melhor: um mundo mais justo e mais equitativo; mais verde e mais sustentáveis, mais inteligente e, acima de tudo, mais resiliente.”
Além de abrir uma janela de possível reforma, o combate à Covid-19 pode também ter aberto uma espécie de Caixa de Pandora das políticas públicas. Os eleitores viram os governos fazer coisas que talvez não imaginassem serem possíveis e também viram ser-lhes exigidas limitações inéditas à sua liberdade. Porque não fazer um esforço semelhante em reação à crise ambiental? Será possível voltar a colocar o génio dentro da lâmpada?
Esta é a entrevista completa feita pela EXAME a Michael Jacobs, excertos da qual foram publicados na EXAME de setembro.
O que significa ir “além do crescimento”?
Significa duas coisas . Em primeiro lugar, que não podemos esperar que o objetivo de crescimento nos dê as coisas de que precisamos enquanto sociedade. Antes, o PIB era um bom proxy de coisas que as pessoas queriam. Mas o seu crescimento deu-nos desigualdade, catástrofes ambientais, falta de bem-estar e sistemas pouco resilientes, por exemplo no setor financeiro. Precisamos de redefinir objetivos. Essa é uma mudança fundamental na forma como economistas e políticos veem a política económica. Em segundo lugar, a própria forma como a economia funciona. São necessárias mudanças. A economia moderna tenta compreender melhor a economia capitalista.
Estas mudanças estão a sentir-se na academia ou vêm mais da forma como os governantes olham para a economia?
Acho que são as duas coisas. Tal como outras disciplinas, a economia anda atrás do estado do mundo. Está agarrada a teorias que já não funcionam e demora algum tempo a encontrar outras. É um processo normal de mudança de paradigma. O mainstream da economia tem demorado a responder a novos dados. Mas [a economia] também avançou com as necessidades dos responsáveis políticos e a Covid-19 expôs isso muito rapidamente. Os instrumentos habituais não são suficientes e é bom que os governos e a maioria dos economistas o reconheçam. Mas não levou muitos a reavaliar essas ferramentas. Isso tem de acontecer.
Qual foi o objetivo desse relatório agora publicado?
O relatório foi encomendado pelo secretário-geral e achou-se que podia ser integrado numa narrativa mais abrangente. Espero que a OCDE incorpore as suas conclusões no aconselhamento aos governos e na sua análise. A OCDE já começou a fazer coisas desse género e poderá ser a primeira instituição a dizer que a abordagem que utilizámos até aqui estava errada.
A OCDE mudou muito nos últimos anos, por exemplo na forma como vê a regulação do mercado de trabalho?
Não se pode manter o aconselhamento anterior se ele tiver por base coisas que não funcionam. A liberalização dos mercados de trabalho criou uma polarização que ajudou muito alguns, mas deixou outros em situação muito precária. Ao mesmo tempo, manteve a produtividade muito baixa. Essa política, que a OCDE aconselhou e muitos governos usaram, não funcionou. É bom isso ser reconhecido e a abordagem mudada. É isso que acontece quando há crise. Quando as coisas deixam de funcionar, o paradigma muda. Isso aconteceu nos anos 30, quando o laissez faire não conseguiu dar resposta aos desafios. Nos anos 70/80 fizemos o mesmo e mudámos para aquilo a que chamamos “mercados livres”. Agora, essa visão não consegue lidar com a instabilidade financeira.
Muitas pessoas responderiam que foi esse sistema que permitiu a que milhões de pessoas saíssem da pobreza em muitos países do mundo.
Muitas dessas pessoas que saíram da pobreza estão na China, que não opera com a mesma lógica. Outros países do sudeste asiático, por exemplo, usaram uma abordagem mais interventiva. De qualquer forma, o nosso relatório é sobre economias avançadas. Não dizemos que existe uma solução única para economias desenvolvidas e em desenvolvimento. Entre as economias avançadas, é difícil encontrar uma que esteja a funcionar bem.
Na sua opinião, o que não está a funcionar nas economias?
Ainda temos o legado da crise financeira. Os países europeus, por exemplo, não conseguiram reduzir muito a taxa de desemprego, têm uma produtividade baixa, níveis elevados de desigualdade e continuam a alimentar os fatores por trás das alterações climáticas. E isto num período em que ainda não regressámos à normalidade, por exemplo nos balanços dos bancos centrais. E não resolvemos o problemas de desequilíbrio financeiro, nomeadamente o nível de dívida privada. São sintomas de economias que não estão a funcionar bem.
A pandemia vai acelerar essa mudança? Travá-la?
Esta crise mudou imediatamente algumas abordagens. Uma mudança já ocorreu: os governos gastaram muito mais dinheiro, porque tiveram de o fazer. Pediram emprestado com taxas de juro muito baixas e sem perspetivas de que ele seja pago de forma rápida. Nalguns casos, essa dívida até foi comprada por bancos centrais. É um pouco como aquilo que aconteceu a seguir à II Guerra Mundial. Isso é uma mudança na política macroeconómica. Uma segunda alteração é perceber-se que, para sair de uma recessão, os governos têm de ser muito ativos, investir no emprego, entrar no capital das empresas, assumir uma política industrial mais ativa. Esse será o segundo legado da pandemia, que não se esgotará no curto prazo. Uma terceira mudança que não sei se ficará ou não: na maioria dos países a crise expôs a necessidade de cuidados de saúde melhores e de apoio a quem tem rendimentos mais baixos.
Após as pessoas verem algumas dessas medidas, haverá mais pressão popular para as manter ou para avançar com outras?
Sim, acho que haverá. E o mesmo com a crise ambiental. Se a situação é assim tão séria – e basta olhar para a costa Oeste dos EUA e para outros acontecimentos climáticos extremos por todo o mundo – as pessoas vão ser perguntar “porque é que não podemos tomar medidas de emergência, se o fizemos com a crise do coronavírus?”
A pandemia pode acabar por servir como uma janela para reformar a economia?
Todas as pessoas perceberam que esta crise é uma daquelas que acontecem uma vez por geração e que nos força a nós e aos governos a repensar diferentes políticas. Rahm Emmanuel [ex-chefe de gabinete de Barack Obama] disse que nunca se deve desperdiçar uma boa crise. Esta é uma crise terrível, mas se há uma coisa boa que podemos retirar dela é o reconhecimento de que os governos podem operar grandes mudanças. E as pessoas não querem voltar ao que era. A frase usada tem sido “build back better”.
Os esforços da União Europeia vão nesse sentido?
Sim, absolutamente. O Green Deal é uma tentativa séria, mesmo que imperfeita, para trazer maior sustentabilidade e uma nova estratégia industrial. São sinais importantes.
Alguns dos críticos do actual modelo de desenvolvimento defendem uma agenda de “decrescimento”, argumentando que a única forma de salvar o ambiente é com recuos do PIB. Concorda com esta ideia?
Esse debate está a tornar-se mais maduro. No passado, o movimento de decrescimento achava que o crescimento era tudo e, portanto, bastava não ter crescimento para resolver os problemas. Eu sempre fui contra essa ideia, porque cometia o mesmo erro do mainstream económico, que acha que crescer é tudo. Agora o debate mudou. Algumas coisas fazem sentido crescer, outras não. Por exemplo, atividades muito dependentes de combustíveis fósseis terão de recuar. E é inevitável que as economias avançadas cresçam a um ritmo mais lento do que habituámos no passado.
O relatório que publicaram concentra-se muito na necessidade de mudar a “narrativa”. O que significa isso?
No final do dia, a política económica não é apenas um acto técnico. Os governos precisam de um mandato democrático e precisam de a enquadrar de uma forma que o público perceba. A população precisa de histórias e perceber quais são os objetivos dos governos e o que significa ser bem sucedido. Essa linguagem precisa de ser usada pelo público para ele as perceber e para votar. Bons políticos tentam contar histórias.