131 000 000 000 dólares. É esta a fortuna de Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo. Quando chegamos a estes valores, pode ser complicado entender exatamente o alcance destes números. Com 131 mil milhões, pode pagar durante 10 anos tudo aquilo que o Estado português gasta com saúde ou comprar duas vezes todo o PSI20. Quem seja muito rico podem ambicionar comprar um Bugatti, mas um multimilionário como Bezos poderia comprar um Bugatti La Voiture Noire – o carro novo mais caro de sempre – todos os dias durante 19 anos.
Em todo o mundo, existem apenas entre 2 mil a 3 mil pessoas como Bezos, com fortunas superiores a mil milhões de dólares. São billionaires ou multimilionários. No topo dessa pirâmide estão nomes que lhe serão bastante familiares, como Bill Gates, Warren Buffett e Mark Zuckerberg, que viram o seu património crescer para níveis estratosféricos. Os 26 homens mais ricos do mundo já têm tanto como os 50% mais pobres.
Nos países desenvolvidos, essa prosperidade não tem sido partilhada. A desigualdade tem aumentado, especialmente nos Estados Unidos, com a classe média e os pobres a serem incapazes de apanhar o mesmo comboio dos super-ricos.
Essa desigualdade crescente surge numa altura em que as sociedades ainda vivem na ressaca da crise e em que os governos enfrentam uma degradação das fontes de receita e a necessidade de aplicar mais recursos ao combate de fenómenos estruturais como o envelhecimento e as alterações climáticas. Nas ruas começou-se a ouvir o grito “we are the 99%”, enquanto académicos como Thomas Piketty e Joseph Stiglitz davam uma fundação teórica à necessidade de corrigir estes desequilíbrios.
A desigualdade tornou-se uma prioridade e a principal solução apresentada tem sido mais impostos. 11 dos candidatos à nomeação democrata à Presidência dos EUA têm algum tipo de proposta para tributar mais os ricos e dois deles, Elizabeth Warren e Bernie Sanders – entre os favoritos à vitória -, querem criar um novo imposto sobre a riqueza (apoiado pela maioria dos americanos, mas que traz dúvidas sobre a sua implementação). Sanders foi mais longe e assumiu: “billionaires should not exist.”
Há alguns anos, uma afirmação destas talvez nem fosse debatida nas sociais-democracias escandinavas e agora aparece em cima do palco num debate entre candidatos a ocupar o cargo mais alto no país que mais mitificou a ideia de que “todos lá conseguem chegar”. Deveríamos considerar impedir que exista uma concentração tão grande da riqueza? Ganhamos alguma coisa com isso? Faz sentido sequer colocar a questão?
A EXAME conversou com Gabriel Zucman, professor de Economia da UC Berkeley, que ficou conhecido como o jovem detetive que investiga a riqueza escondida por super-ricos e multinacionais em offshores. O livro que acabou de publicar com Emmanuel Saez, “The Triumph of Injustice” (ainda não editado em Portugal), está a abanar o mundo da economia, incluindo teses que serviram de base a algumas das propostas de Elizabeth Warren.
O livro traz conclusões surpreendentes, entre elas que os 1% mais ricos dos EUA já detêm 20% da riqueza do país, enquanto os 50% mais pobres ficam com 12%. Há 40 anos, essa proporção era praticamente inversa. É que, enquanto no pós-II Guerra Mundial, o rendimento cresceu ao mesmo ritmo para toda a gente (menos para os super-ricos, onde era mais lento), desde os anos 80, quanto mais rico é, mais rápido a sua riqueza cresce.
No entanto, a conclusão mais interessante é fiscal: quando se juntam todo o tipo de rendimentos – trabalho e capital -, os super-ricos, os 400 americanos com mais dinheiro, pagam menos impostos do que os 50% mais pobres. Sim, não é uma gralha. Os multimilionários dão uma percentagem mais baixa da sua riqueza ao Estado do que um professor de primária ou um enfermeiro.
A entrevista completa a Gabriel Zucman estará na revista de dezembro, mas em baixo estão são algumas das suas respostas. Devemos procurar novas soluções políticas, como um imposto sobre os milionários? Zucman não tem dúvidas: sim. E devemos ir mais longe e impedir que qualquer pessoa acumule mais de mil milhões na conta bancária? A resposta é mais complicada.
“Não é uma pergunta a que os economistas devam tentar responder. O que tentamos fazer no livro é dar dados acerca daquilo que ganhamos e perdemos com uma grande concentração de riqueza. Nos EUA, houve um boom na fatia de riqueza detida por multimilionários, os 400 americanos mais ricos. Não é claro que isso tenha beneficiado o resto da população. O rendimento dos 50% mais pobres praticamente estagnou desde 1980”, explicou à EXAME.
E os dados que temos sugerem que é economicamente positivo eles existirem? “Não me parece que haja sinais de que seja positivo ou de que ter mil ou dois mil multimilionários seja necessário para haver inovação, postos de trabalho e bem-estar para o resto da população.”
Um dos argumentos centrais para rejeitar medidas que impeçam este nível de concentração é a ideia que nos devemos apenas preocupar com o nosso rendimento e deixar o dos outros em paz. É frequente até falar-se em “inveja”. Porque raio nos deve interessar os que ganham os outros? A resposta de Zucman:
“Para a maior parte da população, riqueza é segurança. É algo bom. Mas para os muito ricos, a riqueza não é segurança. É poder. Poder para influenciar as políticas públicas, a ideologia existente e o mercado. Para reduzir a concorrência, para combater o Fisco… Se quiser uma democracia equilibrada e uma economia de mercado competitiva, provavelmente é mau ter uma concentração elevada de riqueza. Se der demasiado poder a apenas alguns atores, eles vão distorcer a democracia e os mercados. O argumento central para que uma concentração extrema seja má, é porque ela é corrosiva para instituições democráticas. Uma ideia que encontramos desde a Revolução Americana. Os americanos não queriam ser como a Europa que, na altura, que era vista como muito iniqua, aristocrática e oligárquica. Outro argumento [contra a concentração] é que mais mil milhões para um multimilionário não vai ajudá-lo muito mais, mas mais mil milhões para educação, saúde, serviços públicos, para todos nós… aí pode fazer uma grande diferença.”
Os pontos enunciados por Zucman são dos mais utilizados para justificar o agravamento dos impostos sobre os mega-ricos. Mas existem mais motivos para o fazer, assim como vários argumentos contra medidas desse género, que apontam que uma intervenção tão radical será negativa para todos. Em baixo, uma curta listagem daquilo que pode ser defendido por cada lado desta barricada fiscal.
A favor dos multimilionários
Toda a gente ganha. Os multimilionários investem, criam empresas, contratam trabalhadores e pagam salários. Ajudam a economia a crescer mais, o que, por sua vez, arrasta os pobres e a classe média. Eles contribuem para a sociedade e penalizá-los traria consequências negativas para toda a gente. Mais: será que aceitarão pagar? Aumentar-lhes os impostos pode levá-los a colocar o dinheiro noutros países.
Estímulo à inovação. Ouve-se muitas vezes o argumento: como seria o mundo sem Bill Gates ou Steve Jobs? Será que impedir que ganhem tanto dinheiro não desencoraja a criação de empresas e produtos inovadores? Segundo esta lógica, penalizar os ultra-bem-sucedidos diminuiria a motivação para ir mais longe na carreira. Como contraponto, importa referir que, no passado, os milionários já pagaram mais impostos e a economia crescia mais rápido.
O argumento moral. É errado ter mais dinheiro? Os defensores dos benefícios da existência de multimilionários notam que é positivo estimular uma diferença de rendimentos, servindo como uma mensagem de meritocracia: quem consegue singrar de forma mais assertiva, é premiado. Corrigir isso poderá incentivar a passividade.
Onde parar? Se começarmos a dizer que temos de impedir que existam multimilionários, devemos aplicar a mesma lógica aos super-ricos? E depois à classe média alta? Os críticos apontam essa tentação como um risco a considerar. Claro que isto até soará bem para quem veja com bons olhos uma sociedade com pequenas diferenças de rendimento entre as pessoas.
Menos impostos, menos governo. Quem ache que já temos demasiados impostos, não vai gostar das soluções propostas para acabar com os multimilionários (embora muitas delas envolvam alívios para o resto da população). Além disso, transferir recursos das mãos de privados para o setor público é ineficiente, porque o Estado não os sabe gerir.
Contra os multimilionários
Saúde democrática. É o ponto referido antes por Zucman. Um grupo de homens muito ricos significa que têm muito mais poder para influenciar as decisões políticas. Nas eleições presidenciais de 2012 nos EUA, 31 mil pessoas foram responsáveis por 28% do total de donativos recebidos pelos candidatos. Na prática, isso significa que esse grupo tem uma capacidade muito maior de condicionamento da agenda política e mediática e, por arrasto, de influenciar a direção da governação.
Outro argumento moral. Faz sentido alguém ter mil milhões de euros, enquanto há pessoas que, mesmo trabalhando, podem passar fome? Muitos diriam que é um ponto populista, mas a lógica de tributar mais os ricos para ajudar os mais pobres já existe. Aqui, ela é levada mais longe.
O argumento económico. Ao contrário daquilo que muitos defendiam no passado, hoje sabemos que uma sociedade com níveis de desigualdade muito elevados está a penalizar o seu crescimento económico. Essa desigualdade traduz-se num investimento menor dos mais pobres em educação e numa mobilidade social reduzida. Fundo Monetário Internacional e OCDE têm estudos que provam esta relação. Uma sociedade mais desigual é também terreno fértil para o crescimento de movimentos populistas.
A caridade é sobrestimada. É frequente lermos que um milionário doou X milhões a uma causa ou instituição de solidariedade. O número é sempre impressionante, mas quando o comparamos com a riqueza do doador, essa percepção muda radicalmente. Tirando Bill Gates e Warren Buffett, que abdicam de fatias mais significativas do seu património (2,6% e 3,9%), a generalidade dos multimilionários doa, em média, 0,3% da sua riqueza. Se estivéssemos a falar de alguém com um património de dez mil euros, isso significaria doar 30 euros ao ano.
Ricos não são multimilionários. Em Portugal, um casal com dois filhos que ganhe mais de 4.000 euros líquidos por mês já está entre os 10% mais ricos. É deprimente, mas é assim. Mesmo que falemos apenas dos privilegiados que fazem, de facto, uma vida de luxo, normalmente a sua fortuna fica muito, muito longe dos mil milhões. Portugal, por exemplo, só tem cinco billionaires. Dionísio Pestana e Isabel dos Santos, por exemplo, estão fora. Isto para dizer que estamos a falar de um grupo verdadeiramente restrito de pessoas.