Sapatilhas, mobiliário, blusões, cremes, sabonetes, mantas, loiças, motas ou vinho dos tempos pré-filoxera… Os portugueses sempre foram imaginativos e corajosos a pensar marcas e a criar conceitos, e hoje voltam a afirmar-se num mercado que, apesar de globalizado, tende a encontrar cada vez mais conforto naquilo que é a sua história. Estas empresas passaram por crises, gerações diferentes de consumidores e outras deixaram mesmo cair algumas das marcas, para agora as fazerem renascer com nova vitalidade, como prova de que o que é bom tem sempre lugar. É, eventualmente, preciso uma “certa dose de loucura”, segundo a criadora da Duffy, e saber ler os sinais do mercado. Porque, afinal, o grande objetivo das marcas é garantir um sentimento de pertença, e muitas delas conseguem-no como ninguém. A Pato Rico, dona da Duffy, voltou a produzir os famosos blusões estilo “Michelin” no ano passado e os portugueses receberam-nos de braços abertos, garante Beatriz Serrano – e os números confirmam as vendas. Tal como já tinha acontecido, aliás, com o ressurgimento das Sanjo, em 2019.
Foi precisamente a partir da “grande ligação emocional e afetiva que tinha com a Sanjo”, (que usou desde os 4 anos, até desaparecerem e reaparecerem) que Pedro Carvalho de Almeida, 50 anos, desenvolveu os estudos sobre a importância da arqueologia das marcas, algo que sustentou a sua carreira académica até ao doutoramento. Professor de Gestão do Design há 20 anos, na Universidade de Aveiro, focou-se no perigo que constituem algumas práticas de designers e empresários ao negligenciarem a importância dos seus arquivos como “ativos fundamentais para a construção da sua identidade, numa lógica de diferenciação e longevidade [ver caixa]”. Não podia ter escolhido melhor exemplo, pois quando a Sanjo foi fazer apenas réplicas na China, tornou-se igual a tantas outras, e não funcionou. Com novo dono, o seu relançamento teve por base todos os estudos efetuados por Pedro Carvalho de Almeida, e o sucesso já espreita.
“As grandes marcas que nós não trocamos, aquelas que nos fazem chegar à prateleira e não procurar apenas pelo preço mais baixo, são aquelas que dão nome a um sentir”, explica também à EXAME João Barros, professor na Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa. “Se estamos numa época em que não sabemos o que vai acontecer, nada mais natural do que lembrarmo-nos de memórias afetuosas do passado. É como se nos trouxessem raízes, que nos estabilizam, e fica tudo mais fácil”, continua, quando lhe perguntamos como se explica, afinal, este fenómeno de um regresso tão consistente de algumas marcas ao mercado onde os consumidores são, agora, tão diferentes e muitas vezes mais exigentes.
Se estamos numa época em que não sabemos o que vai acontecer, nada mais natural do que lembrarmo-nos de memórias afetuosas do passado. É como se nos trouxessem raízes, que nos estabilizam, e fica tudo mais fácil
joão barros
Para o especialista em Marketing e Publicidade, a resposta prende-se com três fatores fundamentais: a História – que permite firmar essas tais raízes –, que garante autenticidade; a sensação de pertença e a segurança trazida pela sobrevivência.
É que, garante, mesmo com as alterações nos padrões de consumo e naquilo que são as vontades dos consumidores atualmente, a verdade “é que para quem está do lado da gestão das marcas, o desafio é exatamente o mesmo: perceber as pessoas e o porquê de quererem as coisas. Não é perceber apenas o que as pessoas querem, mas sim porque o querem!”, repete.
Para Pierre Stark, CEO da Benamôr, este é o verdadeiro luxo que se procura agora: autenticidade, referências que sobrevivam no tempo e, claro, qualidade e proximidade. É dessa convicção que partilham também João Olaio e Renata Vieira, que recuperaram a marca fundada pela família de João e que acabaria por fechar portas no final da década de 1990, para agora ressurgir em todo o seu esplendor – e muita exclusividade.
“Costumo contar esta história aos meus alunos para que entendam o papel de uma marca, e pode ser que ajude”, atira com um sorriso João Barros. “Quando as mães falam com um recém-nascido – e as mães fazem mesmo mais isto do que os pais –, dizem sempre o que estão a fazer. ‘A mãe vai vestir-te o casaco. Estás com fome e a mãe já te vai dar leitinho.’ Do ponto de vista normal isto é absurdo. Mas nós vemos as mães fazerem isto, e achamos normal”, reflete. “E não só é normal como é uma das coisas mais importantes que elas fazem por nós. Porque o problema de um recém-nascido é que tem sensações, mas não tem nome para elas. Quando somos bebés temos fome e não sabemos o que é aquilo. Temos frio e não sabemos o que é. E elas explicam-nos isso: tens fome e eu vou saciar-te. Tens frio e eu vou aquecer-te”, explica.

É isso, justifica, que fazem as marcas – e é por isso também que nos é tão fácil identificarmo-nos com aquelas que nos explicam melhor o que sentimos. “Ao longo da nossa História usámos as coisas mais diferentes para comunicar – penas na cabeça, crânios dos inimigos nos cavalos… Através da marca eu transmito o que sinto e o que sou. Ou pelo menos aquilo que eu finjo que eu sou. Usamos as marcas para fingir coisas que não somos? Sim, tal como usamos o nosso discurso para tentar parecer uma coisa que não somos”, explica o professor de Marketing e Publicidade.
Comunicação tem sido, aliás, um dos pontos fortes da Bordallo Pinheiro, que estava condenada a desaparecer até a Visabeira investir alguns milhões de euros para recuperar um património artístico que, segundo Nuno Barra, administrador da marca, valia por si. Sem nunca perder a identidade bordaliana, tem-se reinventado, feito parcerias com outros artistas e personalidades, crescido e conquistado mercados dentro e fora da Europa. A Bordallo Pinheiro é uma das marcas escolhidas para este trabalho que mais fatura, num ressurgimento vertiginoso em pouco mais de uma década.
Também a Claus Porto, do universo Ach Brito, tem-se destacado nos últimos anos, depois de, em 2015, se ter reposicionado no segmento de luxo – após a entrada de um fundo de investimento como novo acionista. É uma das mais reconhecidas marcas nacionais, tendo conquistado sucessivos mercados e garantindo contas sólidas com o passar dos anos e que só os dois anos de pandemia conseguiram interromper. “As marcas sobrevivem devido a um conjunto de atributos. Por isso, são intangíveis, não conseguimos materializar. Umas têm o poder de tocar em coisas emocionais, outras nem tanto. Para uma marca poder ser coerente e consistente tem de ter verdade e autenticidade, com coisas que vêm de trás, preservando todo um património. Depois, é melhorar a qualidade intrínseca dos produtos, para que as pessoas gostem e voltem a usar, passem a palavra e tragam outros”, observa Ricardo Cunha Vaz, CEO interino da Ach Brito e um dos cofundadores da Menlo Capital, a sociedade capital de risco que achou que valia a pena investir nesta marca com 135 anos.
Património e História são dois atributos preciosos. Não por acaso, a loja da Claus na Rua das Flores, no Porto, tem uma parte de museu onde se expõe espólio, mas também máquinas ou frasquinhos de perfume presentes no arranque na marca. Também por isso, o livro de rótulos da Claus Porto é “uma riqueza” que só podia estar guardada a sete chaves, num cofre da empresa, aberto apenas para visitantes especiais ou quando Francelino Gomes, o criativo, precisa de ir buscar referências. “Não criamos nada do zero, partimos sempre do património da empresa, que não tem fim”, conta, enquanto vai virando as páginas com rótulos do século passado, que estão a servir de base à harmonização do produto lançado agora. “A dificuldade é replicar, porque as técnicas de produção mudaram muito. Eram coisas feitas em litografia, mas partimos sempre daqui. Tenta-se que, no fim, pareça tudo a mesma marca, o que já não é pouco, porque antes era tudo muito diferente.”
Não criamos nada do zero, partimos sempre do património da empresa, que não tem fim
francelino gomes
É precisamente de preservação de património que nos fala, também, Fortunato Garcia, produtor do vinho Czar, um produto que só aparece em anos excecionais sob esta referência, nascido no Lajido da Criação Velha, Património da Unesco na ilha do Pico. “Sou o produtor, hoje, com mais verdelho antigo”, realça à EXAME, como quem explica algo óbvio: tem nas suas mãos uma História que mais niguém guarda como ele, nem transforma como ele. E apesar de a referência poder soar agressiva atualmente, devido aos conflitos na Europa, Fortunato não pode apagar as memórias: foi precisamente nas adegas de Nicolau II que foram encontradas garrafas de vinho licoroso do Pico. Não admira, também, que a referência seja agora vendida por muitas centenas de euros, fazendo dele uma marca valiosa – não apenas para Fortunato Garcia, mas para a História nacional.
No mesmo sentido, aquilo que alguns economistas chamam de “desglobalização”, que se tem feito sentir a nível macro – muito potenciada pelas ruturas nas cadeias de abastecimento, depois pelo Grande Confinamento e agora pela crise energética e a guerra na Ucrânia –, está também a ter um efeito na escolha dos consumidores.
Gerações mais conscientes e atentas, mais globalizadas também, procuram transparência, proximidade e muita verdade: uma marca não pode dizer que vende algo que depois não entrega, ou será obliterada. Daí que referências que têm atrás de si um histórico de sobrevivência sejam muito apetecíveis por quem não queira ser igual a todos os outros e valoriza a autenticidade e a verdade.
“Todas as marcas têm uma história, e quantos mais anos, mais história e autenticidade. E isso faz muito sentido para o consumidor. O consumidor de hoje já não está disponível para ouvir aquilo a que os ingleses chamam de ‘bullshit’”, continua João Barros. “Se andarmos duas gerações para trás, e se olharmos para a comunicação publicitária, que é a forma mais fácil de perceber como as marcas se posicionavam, encontramos anúncios que, se eu mostrar aos meus filhos, eles perguntam como acreditávamos nós naquilo! Tome como exemplo os produtos para barbear, em que aparecia uma senhora despida no meio de um barbeiro… quer dizer…”, atira com uma gargalhada.

“A autenticidade acaba por estar legitimada pelo tempo, em termos de História. Essa é possivelmente a primeira razão para tornar apetecíveis” estas marcas que agora ressurgem num universo global, mas onde parecemos procurar cada vez mais o local.
As questões do impacto ambiental – e, portanto, a valorização da proximidade – e da sustentabilidade em toda a cadeia de produção também acabam por beneficiar as marcas. “Os consumidores adoram que os cremes sejam desenvolvidos numa fábrica aqui perto, por pessoas que enchem estas embalagens, produzidas em Portugal, à mão, e que as vendamos em lojas de rua que remetem para as farmácias onde começaram”, realça o CEO da Benamôr enquanto acena para um grupo de alunos acabados de chegar da Dinamarca, e que pretendem fazer uma visita à loja. Uma espécie de confirmação do que acabou de nos dizer. E que marcas como a Burel confirmam com a sua existência – a recuperação de uma indústria que esteve mesmo quase a desaparecer coloca agora Portugal, e a região da serra da Estrela, nas bocas do mundo da arquitetura de interiores e aquece tanto o corpo como a alma dos consumidores que ouvem as histórias contadas por João Tomás e Isabel Costa, amantes da memória, investidores na sua preservação. “Até Isabel Costa ter pegado na marca, o tecido burel foi completamente negligenciado. Ninguém olhou para aquilo com o potencial que podia ter. Ninguém pensou que o burel podia ser de outra cor que não o castanho ou o cinzento”, sustenta Pedro Carvalho de Almeida. “E, às vezes, é a introdução de um elemento de cor mais contemporâneo que faz com que haja um afastamento entre a perceção de um produto para uma camada social mais idosa, mais rural, mais empobrecida, que faz com que possa ser estabelecida uma ligação com uma sociedade mais urbana, cosmopolita e jovem.”
No mesmo sentido, lembra, “inicialmente a Burel começou por fazer um pequeno catálogo em que pediu a diferentes designers para desenvolverem peças que iam desde o imobiliário à roupa, para mostrar as potencialidade da sua aplicação. E, com essa gama de possibilidades, mostrou produtos atuais, bem pensados e concebidos, bem acabados, com qualidade, fazendo com que houvesse uma chamada de atenção e curiosidade por parte dos mercados internacionais em saber o que é o burel. Essa curiosidade só pode ser satisfeita e alimentada se os produtos forem mostrados. A Burel tem esse mérito”.
É impossível, naturalmente, falar destes ressurgimentos, sem falar da importância que projetos como A Vida Portuguesa, criada por Catarina Portas, tiveram no reposicionamento do mercado nacional. Mostrar o que de melhor se fazia na literatura, no têxtil, na faiança, cutelaria ou arte portuguesas, permitiu que todo um mercado global passasse a olhar para o País mais ocidental da Europa como criador de algo muito exclusivo e apetecível. E, claro, muitas destas marcas contaram também com algo cuja importância não se pode desvalorizar: uma pequena percentagem de sorte aliada a muito trabalho e estratégias bem pensadas a longo prazo. Porque, às vezes, “as coisas tendem a ser mais simples do que nós imaginamos”, resume, com um sorriso, João Barros.
Outras vezes, basta um cheiro familiar para proporcionar uma viagem, ainda que nostálgica. Se a estética do produto serve para atrair e torná-lo um “objeto de desejo”, apetecível, nos artigos de higiene, o cheiro pode fazer toda a diferença. Marta Marcelo, relações-públicas da Ach Brito, sabe bem o impacto que a linha para homem Musgo Real (que vai desde o creme de barbear ao after-shave) tem no público. “Ao mergulhar nestes cheiros, há viagens. Podem comprar um sabonete porque cheira ao paizinho. Mas também podem entrar na loja dois japoneses e cheirar-lhe a algo familiar. E isso é que é curioso. Como um produto faz parte de uma memória afetiva de povos tão distintos…”, interroga-se.
Acompanhe-nos por esta viagem por várias marcas, cujas histórias pode encontrar publicadas no nosso site, para tentar encontrar a resposta.
Este artigo foi originalmente publicado na edição da EXAME de maio de 2022.