Uma representa a quarta geração de uma empresa agrícola, que há mais de 100 anos se dedica à produção de vinho e que transformou numa referência da região de Setúbal e do País. A outra é a segunda geração de um atelier de design de interiores que ganhou mundo nas suas mãos. Leonor Freitas, CEO da Casa Ermelinda Freitas, e Gracinha Viterbo, Diretora Criativa e Partner da Viterbo Interior Design, garantem que uma empresa familiar pode ter tanto sucesso quanto outra qualquer, desde que as pessoas não tenham medo de aprender com quem mais sabe e tenham o sentido de responsabilidade profundamente apurado. Porque pegar numa empresa que foi construída por outros e que se espera que sobreviva nas gerações seguintes é muito mais do que apenas um trabalho: é a garantia de um legado que se quer para sempre. E foi precisamente sobre sucessão que conversaram, numa altura em que Gracinha continua o trabalho da mãe e Leonor se prepara para entregar o seu à filha.
“Há muito o perigo de as empresas familiares desaparecerem se tiverem medo de se abrir a quem quer ajudar”, sublinha Leonor Freitas durante a conversa que aconteceu, como habitualmente, no Hotel Martinhal Chiado, parceiro da Girl Talk. A responsável pela Casa Ermelinda Freitas salienta o exemplo que recebeu das gerações anteriores e admite que foi por amor que voltou à vida rural, apesar de os pais lhe terem dado outras opções. “A vida rural sempre foi difícil, e a família quis outra vida para mim. Mas eu volto por amor, porque acho que a infância me marcou para o resto da vida. O amor e o que eles me transmitiam fez com que eu viesse com toda a força.” Sem experiência ou formação em Gestão – é licenciada em Serviço Social –, arregaçou as mangas e conquistou a pulso o respeito de trabalhadores e fornecedores, numa altura em que todos achavam que não tinha jeito para o negócio. Dos pais herdou a proximidade com os colaboradores e a capacidade de trabalho, bem como os princípios que, garante, ainda hoje lhe iluminam o caminho: fidelidade, qualidade e responsabilidade. E que, espera, passem para a quinta geração, que se prepara para assumir as rédeas da casa agrícola.
“A mentoria entra em força e de uma forma muito positiva nas empresas de família e passa de geração em geração. Há tanto para ensinar e para aprender”, aproveita para acrescentar Gracinha Viterbo. A designer, que herdou e fez crescer o legado da mãe, Graça Viterbo, acredita que um dos segredos do sucesso de uma empresa familiar é precisamente a ligação com a geração anterior, associada a muita liberdade e igual dose de responsabilidade.
Uma espécie de tango
“Sendo muito sincera, acho que há um alinhamento a fazer, quando se ‘recebe’ uma empresa. No meu caso, estou diretamente ligada a quem fundou, porque sou a segunda geração. A ligação da minha mãe à Viterbo é total, completa e universal, porque foi a pessoa que suou, que acreditou, que fez tudo para levantar do nada uma marca que, na nossa indústria, pôs Portugal no mapa. E que representou Portugal no mundo inteiro”, lembra. “E sobretudo numa altura em que, para as mulheres, era ainda mais difícil, porque os setores da construção, do material eram setores de homens.” E salienta: “A responsabilidade que eu sentia nos ombros, no início, de manter o nome e a qualidade no mercado foi enorme. De alguma forma, os olhos das pessoas, aquando da transição de liderança numa empresa familiar, estão mesmo a ver se é um make it or break it. ‘Vai conseguir ou vai afundar isto?’ [risos].”
E é claro que há reticências no momento de passar o testemunho, admite a executiva, que pede também que se normalizem essas dificuldades. Porque se, por um lado, para quem o recebe é continuar o trabalho de alguém que admira, por outro, para quem passa esse testemunho, é um exercício de humildade e de alguma resignação. “É como dançar uma espécie de tango, em que uma pessoa tem de largar e a outra tem de receber, mas em que ambas têm de respeitar o caminho e a visão de cada uma”, sorri, enquanto exemplifica, com as mãos, o movimento desta troca de lugares. É que os filhos são diferentes dos pais, têm visões diferentes, experiências diversas e são, naturalmente, pessoas e gestores díspares. Respeitar isso, de parte a parte, é o grande desafio.
E porque é que as transições são tão relevantes nas empresas familiares? Porque, explicam, nestas organizações o trabalho é muito mais do que apenas trabalho: ele faz parte do dia a dia, entra nas conversas de todos, não fica no escritório e faz-se sempre convidado para a mesa do jantar.
Isso torna mais difíceis algumas decisões que, inevitavelmente, têm de ser tomadas. É por essa razão que ambas as responsáveis são taxativas quando se fala de construir paulatinamente, ainda que sem pressas, uma estrutura que acompanhe as ambições de crescimento, e de como isso implica alguém ter de assumir responsabilidades, mesmo quando a família possa preferir que tudo seja decidido em conjunto. Portanto, defendem, também não há que ter medo de abrir a organização a pessoas de fora, se esse caminho for o garante da sobrevivência da marca. “Há muito o perigo de as empresas familiares desaparecerem porque acham que elas têm de ficar apenas na família. Mas temos de não ter medo de as abrir a pessoas experientes”, defende Leonor Freitas.
Ainda que essa não seja uma preocupação sua, pelo menos para já – a filha Joana estudou Gestão e está já a preparar-se para assumir a liderança –, a responsável não tem quaisquer pruridos em considerar esse cenário.
Ao lado, Gracinha anui e dá o exemplo da parceria que, entretanto, estabeleceu com o seu marido, Miguel Vieira da Rocha. “No meu caso, tenho o meu marido ao lado desde o início. Criámos uma parceria em que ele concebeu toda a parte de internacionalização, que a Viterbo não tinha tão estruturada.”
A Viterbo Interior Design já tem atualmente raízes em África e na Ásia, e estendeu também os seus projetos ao Brasil. “Quando fomos para a Ásia, por exemplo, houve uma altura em que a Viterbo estava a trabalhar 24 horas sobre 24 horas, e sem a estrutura que se tem no corporate. Portanto, quando não se tem uma equipa, tem de se criar uma”, nota a empresária, aproveitando para introduzir outro tema que lhe é caro: “É aqui, nestes momentos, que os nossos colaboradores se tornam família.”
Foco no potencial, e não nas fraquezas
E ainda que os especialistas digam que tratar os funcionários como família pode não ser a melhor estratégia da gestão, a verdade é que ambas as responsáveis discordam.
“É claro que, no topo da pirâmide, está quem toma as decisões e assume as responsabilidades, mas a parte horizontal de gestão é importante. E nós ouvimos as opiniões da nossa equipa e o potencial de cada um”, afirma Gracinha. “É como a história do Usain Bolt, que durante anos teve um treinador que só se focava nas suas fraquezas e em melhorá-las. No dia em que trocou de treinador e esse se focou no seu potencial, tornou-se campeão do mundo”, recorda. “Portanto, para nós, o foco está no potencial dos colaboradores. Porque, se uma pessoa vem contente trabalhar, nós conseguimos tirar dela o maior potencial. É assim que gerimos a nossa equipa, na certeza de que, se uma pessoa está bem no dia a dia, contribui mais.”
Para Leonor, esta abordagem é mais do que óbvia. “Digo sempre que, na Casa Ermelinda Freitas, além dos terrenos e do património, é nos seus colaboradores que está outro dos maiores ativos. A porta do meu gabinete está sempre aberta, e é com muita naturalidade que recebo a minha diretora de Produção quando me vem pedir ajuda para algum colaborador que esteja ter um problema que eu possa solucionar”, nota.
“Eu sofro porque já não sei o nome de todos os funcionários”, atira, com um sorriso. “Nós éramos, de facto, uma grande família, e eu sentia muito isso porque comecei muito pequena [a fazer da empresa a sua casa].” Mas essas são as necessárias dores de crescimento, e o desafio é manter os princípios de proximidade, mesmo que com outras estratégias.
Acima de tudo, defendem ambas, é preciso comunicar com muita verdade e muita transparência com todos os níveis da empresa. É isso que garante a confiança das equipas e permite que estas “vistam a camisola” sempre que os tempos o exigem. Foi isso, admitem, que fez também com que as mesmas se mantivessem durante os últimos dois anos, em que a incerteza se refletia, invariavelmente, no estado de espírito dos trabalhadores.
Tanto para Leonor como para Gracinha, quando lhes perguntamos sobre as principais dificuldades ou desafios que sentem ao liderar uma empresa familiar, a resposta é clara – e talvez pouco óbvia para quem é gestor de formação: “As pessoas.” E dizem-no várias vezes ao longo da nossa conversa, como que a realçar o seu compromisso.
“Obviamente que estamos a falar de uma empresa”, repete Gracinha, sublinhando que ter uma forma de gestão mais humana não significa, ao contrário do que às vezes se pensa, não cumprir todos os objetivos orçamentais ou ter uma companhia perfeitamente saudável em termos financeiros – no caso da Viterbo, a faturação tem rondado os €2 milhões, com tendência a crescer e com resultados positivos até em tempo de pandemia. “Mas estamos também a falar de uma sensibilidade que potencia o desempenho diário. A felicidade numa empresa é importante! A boa energia, a cumplicidade… e um lado que se tem de trabalhar muito em Portugal, que é o de comunidade. Porque as empresas são pequenas comunidades, e tem de haver a preocupação de as pessoas saberem como comunicar entre si, para que o façam de uma forma positiva” e que se reflita na cultura da organização.
Leonor aproveita a deixa e pega precisamente na experiência dos últimos 18 meses, para reforçar a importância de ter a confiança das pessoas que se cruzam consigo todos os dias, e que chamam casa à marca que construiu.
Admite que, tal como Gracinha, a pandemia não trocou propriamente as voltas às contas, uma vez que o vinho foi um dos produtos cujo consumo mais aumentou, a partir do primeiro mês de incerteza. Portanto, “depois de um grande susto”, a surpresa foi a subida das vendas, ainda que através de outros canais – é que, se não havia canal HORECA para explorar, as grandes superfícies foram fundamentais. E, portanto, revela, assim que a manutenção da atividade deixou de ser uma preocupação, foram as pessoas que ocuparam o lugar principal dos seus receios. “Tivemos vários planos de emergência, quisemos garantir que cada funcionário era agente da própria saúde e que não se sentia desconfortável com a estada nas instalações.”
Tentou estar a par de eventuais problemas pessoais, transmitir confiança e segurança numa altura em que os despedimentos, os layoffs e a atividade económica ocupavam manchetes de jornais e aberturas de telejornais.
No caso de Gracinha, a retoma também foi rápida e em força, com as pessoas a passarem mais tempo em casa e a quererem espaços diversificados para as várias atividades que entretanto passaram a fazer parte do dia a dia. Por isso, garantir o estado de espírito da sua equipa foi fundamental para que a atividade seguisse em alta.
“Quem me chamou a atenção para esta questão da gestão mais humanizada foi o meu marido”, admite a diretora criativa da Viterbo. “E, só para reforçar aquilo que disse há pouco sobre comunidade, porque creio que liga com isto, também tomamos sempre atenção àquela em que estamos envolvidos”, diz.
Para a executiva, a responsabilidade social não é mais do que devolver à sociedade o que ela lhe permite enquanto empresária. E, acima de tudo, “é servir de exemplo, tanto para quem nos rodeia como para as outras empresas”. Leonor, ao seu lado, concorda e acrescenta, em jeito de lamento. “As empresas rurais sempre foram vistas como o parente pobre da economia, são as pobrezinhas, as que vivem de subsídios! Eu não quero nada disso. Quero que a minha seja uma empresa forte, bem gerida, com afeto mas com eficiência. E isso implica também reconhecer que o sucesso vem do consumidor. Porque sem pessoas que comprem o meu vinho, onde estaria o meu sucesso?”, atira. “E, por isso, para mim os projetos de responsabilidade social são importantes porque são uma partilha. E, como dizia a Gracinha, servem de exemplo aos outros. Para que possamos, todos, ter uma noção global de crescimento. Porque é óbvio que queremos estar bem, ganhar dinheiro, ter uma empresa sólida. Mas também podemos partilhar. Isso é, para mim, muito claro.”
Em suma, refletem as responsáveis, o que se quer são empresas que aprendam com as estruturas familiares aquilo que pode ser a sua grande mais-valia: a capacidade de perceber o potencial de cada um e o seu lugar na organização. Tal como numa casa, onde cada elemento sabe exatamente qual a sua tarefa. Se se olhar para os funcionários como pessoas, com falhas e talentos, garantem, é muito mais fácil transformar a gestão num caso de sucesso.
Artigo publicado inicialmente na edição n.º 452 , de dezembro de 2021, da revista EXAME