A bitcoin e outras criptomoedas aparentam começar a ser encaradas mais como um ativo para investimento e não tanto como uma moeda ou um sistema de pagamentos. O futuro da bitcoin e de outras criptomoedas poderá passar por se tornarem um ativo de investimento em vez de se assumirem como uma moeda com uso comum ou um sistema de pagamentos eficiente?
Na minha opinião a bitcoin, e qualquer altcoin (outra criptomoeda, que não a bitcoin), seja qual for a caraterística que a distinga, é um novo ativo digital, sintético, altamente especulativo. Talvez a ideia inicial tenha sido efetivamente a de criar um meio de pagamento que servisse as trocas bilaterais sem a necessidade de validação de um intermediário devidamente creditado. Todavia, a bitcoin ganhou uma dinâmica própria que a foi afastando desse ideal. O futuro da bitcoin passa, de uma vez por todas, por se afirmar como um ativo especulativo.
Apesar da bitcoin poder servir como um substituto imperfeito da moeda, a verdade é que não é esse o uso que maioritariamente lhe está a ser dado. A moeda é por definição o ativo com liquidez absoluta, por isso, promete um direito de saque imediato sobre todos os bens e serviços num determinado espaço, físico ou virtual. E aqui já estou a introduzir uma alteração, porque reconheço um espaço virtual enquanto um espaço económico. A utilização da bitcoin como meio de pagamento tem sido muito limitada. A esmagadora maioria das transações de bitcoin fazem-se dentro das casas de câmbio online, contra outro token digital, nomeadamente a tether, sem sequer passar pela validação da blockchain. A utilização da bitcoin como meio de pagamento é meramente marginal.
Além de meio de pagamento, a moeda serve essencialmente mais duas funções: Unidade de conta e meio de reserva de valor. Devido à sua extrema volatilidade de curto prazo e à existência de saltos significativos nos preços, a bitcoin não tem condições para servir como unidade de conta. Mas existirá alguém que possa imaginar um cenário em que os preços sejam expressos em bitcoins? Num dia, um quilo de bananas é 4000 satoshis (cada satoshi representa uma ínfima parte de uma bitcoin, mais precisamente 10-8 de uma bitcoin). Suponhamos que no dia seguinte a bitcoin valoriza ou desvaloriza 5% (um valor bastante provável tendo em conta o seu historial), o preço do quilo de bananas passa para 4200 ou 3800 satoshis. A instabilidade do sistema de preços seria tal que diluiria o seu sinal informativo nomeadamente para as empresas, tornando-se mais difícil uma alocação eficiente dos recursos.
Como meio de reserva de valor a bitcoin também deixa muito a desejar. A sua volatilidade de curto prazo não tem comparação com qualquer outro ativo (para ser explícito, no meu quadro de análise curto prazo significa um dia). Não há, e, segundo me é dado a crer, nunca houve na história financeira um ativo tão volátil. Li algures, já não me lembro onde, que um magnata das finanças aconselhava encarar a bitcoin como um investimento de longo prazo. Compreendo, pois a bitcoin está desenhada para ser deflacionária. Mas a questão não é essa, pois outros ativos já existentes na economia servem também como meio de reserva de valor real do que a moeda em períodos de elevada inflação. A questão é que a bitcoin não promete qualquer garantia de estabilidade no curto prazo. No longo prazo, o seu valor tem tendência a aumentar se forem reunidas duas condições. A primeira é garantida por definição, e tem a ver com o facto de que a oferta não acompanhar a procura. A segunda ter a ver com o insuflar da confiança que cria procura, e esta, decerto, não está garantida, até porque falta sustentáculo aquilo que é o seu valor fundamental.
Reafirmo: a bitcoin não é moeda, e, suspeito muito, que nunca o será. Passo a explicar. A bitcoin está presa num paradoxo. Cenário 1: A bitcoin começa a perder credibilidade, o que reduz a sua aceitabilidade, diminuindo a sua potencialidade como meio de pagamento. Cenário 2: A atratividade da bitcoin vai aumentando, a sua aceitabilidade aumenta, gerando-se uma continuada pressão de procura de bitcoins. Perante a oferta truncada da bitcoin (apenas podem ser emitidas 21 milhões de unidade) e a dificuldade cada vez maior em produzir novas bitcoins, o ajustamento entre a procura e a oferta faz-se sobretudo através dos preços e logo o preço aumenta, previsivelmente a taxas crescentes. Neste ambiente, surge por exemplo a seguinte questão: Irei eu utilizar as minhas bitcoins para comprar um Tesla, quando daqui a algum tempo poderei comprar dois Teslas? Obviamente estou a parodiar, mas no seu âmago está o problema intrínseco: A economia não se comporta bem quando a moeda é deflacionária, as expetativas dos agentes económicos levam à diminuição do consumo e investimento presentes, na procura de um maior bem-estar futuro. Em última análise, a dinâmica das expetativas autorrealizáveis leva à depressão e à destruição do tecido produtivo.
Note-se que dito isto, eu não sou contra a bitcoin ou mesmo as altcoins credíveis. Todavia, parece-me muito difícil sustentar que a bitcoin é moeda. A bitcoin deve ser encarada como um ativo especulativo. Aliás, vejamos atentamente o episódio da compra de bitcoins pela Tesla que tanto tem dado que falar nos últimos tempos.
Em janeiro deste ano, a Tesla comprou bitcoins no valor de 1,5 mil milhões de dólares. Se lermos com atenção o relatório enviado para a Securities and Exchange Commission (a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos) percebemos que esta compra faz parte de uma estratégia de investimento de forma a conferir maior flexibilidade, diversificação e rentabilidade às reservas de caixa. É explicitamente afirmado que, devido ao elevado montante em caixa (rondava os 19 mil milhões de dólares em moeda e equivalentes monetários no final de 2020), não existe a necessidade de manter tanta liquidez operacional. A compra de bitcoins acarreta um risco de preço e um risco operacional que pode afetar seriamente a situação financeira da empresa. E algures diz-se ainda o seguinte: “Esperamos começar a aceitar a bitcoin como forma de pagamento dos nossos produtos num futuro próximo, sujeito às leis aplicáveis e inicialmente numa base limitada, que podemos ou não liquidar após a sua recepção.” (minha tradução). A partir do dia 24 de março deste ano a Tesla começou a aceitar bitcoins como forma de pagamento, todavia, ressalva que o preço em bitcoins perdura numa determinada janela temporal (imagino que de alguns dias). Ou seja, na verdade o preço é denominado em dólares e há o problema adicional relacionado com eventuais reembolsos, o que pode acontecer, à discrição da empresa, em bitcoins ou em dólares. Daqui retirem as vossas conclusões.
São cada vez mais os grandes bancos internacionais a criar unidades ou negócios em torno das criptomoedas. Existem também gestoras de ativos que já aconselham os seus clientes com maior perfil de risco a alocar uma pequena parte do portfolio a criptomoedas. Isto pode significar que a bitcoin e outras criptomoedas se podem tornar mainstream como investimento? Ou estes anúncios que temos visto de grandes bancos e gestoras de ativos poderão mais ser manobras de marketing para atrair um novo tipo de clientes?
Se a bitcoin e outras criptomoedas são uma alternativa de investimento, se bem que altamente especulativo, por que razão deve o setor financeiro ficar afastado dessa alternativa? Aliás, talvez o passo mais significativo, dado pelo setor financeiro para a credibilização da bitcoin como forma de investimento, foi a criação em dezembro de 2017 pela Chicago Mercantile Exchange (CME) e pela Chicago Board Options Exchange (CBOE) de contratos de futuros sobre a bitcoin. Atualmente, o mercado da bitcoin vale mais de 1 bilião de dólares enquanto o mercado global das criptomoedas vale mais de 1,7 biliões de dólares. Naturalmente, perante estes números existe um forte incentivo para que o setor financeiro comece a encarar seriamente este mercado.
As estratégias de investimento em bitcoin não têm que ser puramente especulativas. A bitcoin pode ser incluída em portefólios, aumentando o seu nível de diversificação e resiliência a choques nos mercados financeiros tradicionais. O efeito em termos de diversificação pode inclusive ser assinalável, pois a correlação entre a bitcoin e outros ativos financeiros tradicionais tem sido bastante baixa. Em termos de aumento de resiliência a choques pode não funcionar sempre, foi disso exemplo o impacto em março de 2020 da crise pandémica sobre os mercados financeiros, o qual também se verificou na bitcoin.
Hoje em dia é claro que o mercado das criptomoedas tem vindo cada vez mais a envolver as instituições financeiras e os investidores institucionais. Pessoalmente, penso que o processo se vai intensificar. Por duas razões. Primeiro, existe claramente muito FOMO (Fear-of-Missing-Out), no sentido em que, perante a escalada dos preços das criptomoedas e em especial da bitcoin, muitas instituições pensam que se não investirem já, estão a perder uma oportunidade única de investimento. Como se pode verificar pela evolução histórica dos preços, a bitcoin é muito suscetível a bolhas especulativas, mas isso não significa que aqueles que transacionam bitcoins como forma de investimento estejam a ter um comportamento irracional.
Em finanças comportamentais existe um conceito muito interessante que é o de bolha especulativa racional. Basicamente, a ideia é a seguinte: uma bolha racional existe quando o preço de um ativo aumenta progressivamente em relação ao seu valor fundamental. As bolhas racionais são então o resultado de expetativas arbitrárias e autoconfiantes sobre possíveis aumentos futuros do preço. Os investidores compram o ativo porque têm a expetativa de que este pode ser revendido a um preço mais elevado a outros investidores dispostos a comprar esse ativo pela mesma razão. Eu não sei se a bolha que a bitcoin está a experienciar atualmente é uma bolha racional. Até porque não sei qual é o valor fundamental da bitcoin. Mas decerto há muito deste jogo de expetativas, envolvendo não só cada vez mais investidores individuais, mas também, cada vez mais, investidores institucionais.
Segundo, as políticas monetárias expansionistas resultaram entre outras coisas na acumulação de liquidez em níveis impressionantes em muitas instituições financeiras e mesmo em empresas do setor real de grande dimensão (veja-se o caso da Tesla). Segundo parece avizinham-se tempos de aumento das taxas de juro e das taxas de inflação. Neste panorama, a alternativa bitcoin ainda se apresenta, alegadamente, como mais atrativa.
Dito isto. Defendo que, no entanto, as instituições bancárias não devem investir em criptomoedas, pelo menos não o devem fazer numa perspetiva meramente especulativa. Os riscos que iriam assumir seriam demasiados, exacerbando o seu risco de liquidez, o que eventualmente se traduziria num risco de solvabilidade e num acréscimo assinalável do risco sistémico, com repercussões imprevisíveis sobre todo o sistema de pagamentos. Essa seria a receita para criar um cenário onde os defensores das criptomoedas, repletos de certezas e isentos de dúvidas, diriam: “Eu bem vos disse que iria acontecer”
Eventualmente os bancos e outras instituições financeiras estão a apresentar aos seus clientes menos avessos ao risco o mercado das criptomoedas. A Goldman Sachs é uma delas. Começou por criar um clima inóspito e de refutação das criptomoedas sem argumentar fundamentadamente do porquê. Atualmente aderiu e lidera o movimento pró-cripto dentro do sistema financeiro tradicional. Bom, talvez convenha ir algum tempo atrás e rever o papel da Goldman Sachs na crise subprime. É apenas uma sugestão.
Aqui deve-se mais uma palavra de cautela, que tem sido sempre a pedra-de-toque dos reguladores, e que eu defendo incondicionalmente. Esses clientes, potenciais investidores nos mercados de criptomoedas, devem ser devidamente instruídos sobre os riscos que tal investimento comporta. Não se trata apenas do risco de preço, mas também do elevado risco operacional. E, fora de questão os bancos terem comportamentos predatórios, como aqueles que estiveram em parte na génese da crise do subprime.
Que condições faltam cumprir à bitcoin e a outras criptomoedas para se poderem assumir como um investimento mais mainstream?
Acima de tudo é necessário regular e regulamentar o mercado das criptomoedas. Não concordo com Joseph Stiglitz, prémio Nobel da economia, quando propôs que a bitcoin fosse banida. Antes pelo contrário, o que deve acontecer é um esforço coordenado a nível internacional visando a regulamentação e regulação de mercado. E isso passa por várias coisas: Primeiro, de uma vez por todas definir o que é uma criptomoeda. Na verdade, eu defendo que não se deveriam chamar criptomoeda, mas sim criptoativo. Retirando-se a conotação de moeda e dando-se a conotação de ativo especulativo, seria eventualmente mais fácil dar-lhe um enquadramento jurídico mais apropriado. Segundo, todas as casas de câmbio (online exchanges) deveriam ser devidamente reguladas, a sua atividade deveria ser supervisionada e deveriam ser obrigadas a ter uma espécie de “seguro de depósito”. Inclusive desta forma criavam-se igualdade de oportunidades e, portanto, de negócio, para as casas de câmbio devidamente creditadas nomeadamente nos EUA. Terceiro, um enquadramento jurídico apropriado significa também a estipulação de regras contabilísticas precisas e um regime tributário explícito.
Reforço aqui que dada a imaterialidade das criptomoedas, a regulação deve ser vista numa perspectiva supranacional, por exemplo à semelhança dos Acordos de Basileia que impõem normas que regulam a atividade bancária internacional
Alguns analistas e entusiastas das criptomoedas têm defendido a tese de que a bitcoin e outras moedas virtuais são uma espécie de ouro digital, funcionando como reserva de valor numa altura em que os bancos centrais têm expandido a base monetária a um ritmo sem precedentes. Este argumento tem algum tipo de fundamento e pode ajudar a explicar a valorização da bitcoin nos últimos meses? Pode ser um sinal de alerta para os bancos centrais sobre os eventuais riscos que as políticas agressivas de expansão da base monetária podem ter na confiança do público na moeda fiduciária?
Nunca compreendi a associação que se faz entre o ouro e a bitcoin. Na minha perspetiva são duas coisas completamente distintas. O ouro é um bem tangível, a bitcoin é digital e logo imaterial. O ouro entra na cadeia de valor de alguns processos produtivos, a bitcoin não. Obviamente, existe um limite físico ao montante de ouro existente no nosso planeta, mas não creio que seja rigorosamente conhecido. O limite de oferta de bitcoins é conhecido desde o seu lançamento: 21 milhões de unidade. Depois, e talvez mais importante, não consigo discernir grandes semelhanças entre as dinâmicas de preço do ouro e da bitcoin. Só para fundamentar o que estou a afirmar, se compararmos as estatísticas descritivas das taxas de rentabilidade diárias da bitcoin e do ouro no mercado de Londres (London Bullion Market) durante o período de janeiro de 2014 a dezembro de 2019 verificamos o seguinte: A rentabilidade média da bitcoin foi de 0,102%, mais do que oito vezes superior ao ouro (0,012%), a volatilidade da bitcoin, medida pelo desvio padrão foi 3,91% enquanto a do ouro foi 0,78%, os valores máximos e mínimos da bitcoin foram 22,51% e -23,76% enquanto do ouro foram 3,73% e 2,73%. O ouro é reconhecidamente um ativo de refúgio, isto é, quando a economia está em recessão o ouro tende a valorizar. Já não encontro essa associação na bitcoin.
Não percebo a comparação, mas penso perceber o porquê da utilização de palavras como “ouro digital”, “mineração”, etc. Quem não associa a palavra “ouro” a valor? Somos impulsionados a isso. Para mim isso encontra-se logo no meu imaginário de infância, nas referências às arcas dos tesouros dos piratas, invariavelmente bem recheadas de dobrões de ouro. O que eu quero dizer é que estas palavras não foram quase de certeza escolhidas inocentemente, e muito menos são inócuas.
A desconfiança de parte dos defensores das criptomoedas em relação aos governos, autoridades monetárias e mesmo grandes corporações não é nova. O conceito de moeda criptográfica ganhou forma dentro do movimento cypherpunk das décadas de 1980 e 1990. Este movimento argumentava que aquelas instituições controlam e censuram as comunicações entre indivíduos e, por conseguinte, são as principais forças de bloqueio da liberdade individual. Para os cypherpunks, o poder individual viria dos campos da criptografia, das ciências informáticas, da matemática e da física. Estas ideias enquadram-se num contexto ideológico e filosófico mais amplo – o libertarianismo – que defende a autonomia individual, a liberdade de escolha e o voluntarismo. Os primeiros entusiastas da moeda criptográfica argumentavam que estas estavam próximas do conceito de moeda defendido pela Escola Económica Austríaca, nomeadamente Friedrich von Hayek, segundo o qual os bancos centrais não deveriam ter o monopólio dos bancos centrais na produção, distribuição e gestão de moeda.
Mas a questão é a seguinte: As políticas monetárias expansionistas tiveram implicações nefastas para as pessoas, as empresas e a economia em geral? Antes pelo contrário, devemos é dar graças a essas políticas. Recentemente tivemos várias crises graves à escala mundial. Veio a crise do subprime e depois a subsequente crise da dívida soberana, depois veio o Covid-19. Se as autoridades monetárias não tivessem intervindo como o fizeram, eventualmente teríamos vivido crises de proporções bíblicas, em particular perante a atual crise pandémica. Talvez se percebesse essa desconfiança se essas políticas tivessem levado a elevadas taxas de inflação, mas tal não aconteceu. Claro, vamos pagar algum preço por isso (taxas de inflação mais elevadas, renovação dos sistemas de produção e taxas de desemprego acima do nível natural). Mas a pergunta reside, não será esse um preço justo a pagar, diluído no tempo, para garantir o funcionamento da economia a nível mundial, sem choques avassaladores?
Agora pensemos no seguinte. Suponhamos que a bitcoin se afirma como moeda, competindo ao mesmo nível com a moeda fiduciária. Isto retiraria eficácia à política monetária e daria parte desse poder aos poucos investidores, cuja maioria não sabemos quem são porque a Blockchain é pseudo-anónima, que detêm uma elevada quantidade de bitcoins. A pergunta é então a seguinte: Ficaríamos melhor se em vez dos desígnios económicos passassem das autoridades monetárias representativas de regimes democráticos, eleitos quer se queira quer não pelo princípio “uma-pessoa, um-voto”, para estes investidores, cujo principal objetivo é acumular capital? Exceto, claro está se já se tornaram uma das pessoas mais ricas do mundo e podem dar-se ao luxo da filantropia. Teríamos qualquer garantia de que esses investidores pelo menos tentariam preocupar-se com o bem comum? Tenho as minhas dúvidas. E já agora, desde quando a acumulação de capital serve a democracia na emissão e gestão dos meios de pagamento? Foi sempre o contrário.