Foram precisas apenas duas semanas para que um grupo de 24 portugueses tivesse pronta a prova de conceito de um ‘ventilador de emergência’, cujo objetivo era que fosse rápido e simples de produzir, e que pudesse ser facilmente replicado em qualquer lugar do mundo. Cinco meses depois, o primeiro modelo – “que chamamos de 11 de abril, a brincar, porque foi quando o primeiro protótipo ficou pronto” – já foi praticamente abandonado, e deu lugar a dois outros: o EVEN (desenvolvido no Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas, em Coimbra) e o miniVent (desenvolvido na Nova-FCT), cujos conceito ficaram prontos em junho, e que são versões mais portáteis e compactas do primeiro. Mas estes também ainda não estão cá fora.
Em entrevista à EXAME desde Coimbra, o professor Paulo Fonte, do LIP, responsável pelo conceito original, explica que, em março, todos os integrantes do projeto foram “motivados para acudir à emergência, todos os nossos procedimentos foram feitos a correr. Foi uma altura em que a indústria estava meio fechada, o comércio igualmente… comprámos um componente na Alemanha que demorou três semanas a chegar, por exemplo. O nosso ‘modelo 11 de abril’ foi desenhado para responder a estes constrangimentos”.
Na ocasião, dois dos autores do projeto falaram com a EXAME, tentando antecipar aquilo que poderiam ser os prazos de produção desse ventilador, um projeto pioneiro que respondia às necessidades específicas provocadas pela Covid-19, a doença provocada pelo vírus Sars-Cov-2. Mas os prazos foram passando, à medida que, também, a urgência foi diminuindo.
Ainda assim, foram construídos dez protótipos desse primeiro modelo, graças a um financiamento da FCT no valor de €28 mil. Mas com o aplanar da curva da pandemia, aplanava-se também a corrida a uma solução de recurso.
“Felizmente em Portugal nunca foi preciso recorrer a este ventilador, que era mesmo um último recurso”, realça João Nascimento. O mentor do projeto, que lançou o desafio no OpenAir, justifica a opção de abrandar a finalização do projeto com a evolução da pandemia. “O tempo agora é outro. A urgência é outra, e mudou de latitude”, esclarece, de olhos postos em continentes como África ou a América do Sul.
“Uma vez que o pico da pandemia passou, decidimos investir mais algum esforço para tornar o ventilador mais compacto. Deixámos de usar colunas de água e desenvolvemos umas válvulas, que na verdade demoraram mais tempo do que esperávamos a ficar prontas”, continua Paulo Fonte. Porque afinal, esclarece o especialista, se o objetivo é tornar o aparelho acessível a qualquer país do mundo, é importante que seja não apenas barato, mas também de fácil transporte e manutenção. “Em África, por exemplo, o modelo ’11 de abril’ não é tão interessante. Mas o EVEN pode ser uma solução”. Este ventilador tem um custo de produção na ordem dos €500, excluindo o trabalho de montagem, e é uma alternativa concreta aos ventiladores regulares cujos custos rondam os €10 mil a unidade.
Ventilador EVEN, em Coimbra. D.R.
Recorde-se que, entretanto, o projeto OpenAir passou para a alçada da Médicos do Mundo, tal como a EXAME já tinha dado conta, que assegurará depois a chegada dos produtos desenvolvidos aos lugares onde possam ser mais necessários.
“Estamos em contacto com equipas de vários países que nos contactaram quando publicámos o paper em open source, e mostraram interesse em produzir localmente. Esta sexta-feira, 21 temos uma conference call com uma equipa do Haiti, entre empreendedores locais, médicos, voluntários, em que prestamos apoio, esclarecemos dúvidas..”, revelou João Nascimento à EXAME. “Como as certificações diferem de país para país, estas equipas interessadas em produzir localmente, tratarão dos trâmites necessários juntos das autoridades locais”.
“O nosso objetivo foi sempre o de encontrar uma solução não comercial simples, rápida de produzir em escala, e que funcionasse como último recurso em caso de emergência extrema. Ficamos assim num paradoxo: se por um lado desejamos que este trabalho sirva para salvar vidas, por outro, esperamos ardentemente que nunca venha a ser necessário”, sublinha Nascimento.
No entanto, “apesar de esperarmos que não venha a ser necessário a produção deste ventilador minimalista em Portugal, continuamos a seguir todos os passos para a certificação junto das autoridades nacionais”, realça.
Um projeto, dois ventiladores
Durante todo este tempo – entre março e agosto – toda a equipa inicial composta por investigadores, estudantes, engenheiros da F1 e médicos continuou a trabalhar em conjunto, de forma totalmente gratuita, ainda que a um ritmo diferente O regresso de cada um às suas atividades profissionais de sempre ditou outra forma de trabalho, mas ainda assim houve desenvolvimentos.
Na FCT/UNL, em Almada, foi crescendo o miniVent, num projeto liderado por António Grilo. No LIP-Coimbra, o EVEN, liderado por Paulo Fonte. Questionado sobre por que não uniram os esforços num projeto comum ao invés de desenvolverem dois ventiladores a partir do modelo ’11 de abril’, o professor de Física do LIP sorri. “Sabe que muita gente tem muitas ideias. E havia duas equipas com ideias diferentes, mas, em que nenhuma atrapalhou a outra. Diria que o facto de as duas equipas trabalharem complementarmente enriquece o projeto. Honestamente, eu usei ideias deles e eles também usaram nossas”, congratula-se. “Acho que isto é, aliás, uma grande força do nosso projeto. A interseção entre médicos e engenheiros e a diversidade de possibilidades técnicas”, fomentadas não apenas pelo trabalho em paralelo das duas equipas nas instituições nacionais, mas também pelo contributo de pessoas vindas da indústria.
Várias empresas nacionais também se mostraram bastante solícitas durante o início do projeto, dendo ajudado com disponibilidade rápida de componentes ou mesmo a sua oferta e com a produção de peças com especial urgência. Mas com o evoluir positivo da situação pandémica no País esses contactos estão em suspenso. No entanto, garante Paulo Fonte, continua a haver contactos e se, após a certificação, as empresas continuarem interessadas, só se pode aplaudir o empenho.
Ambos os ventiladores já fizeram os testes de bancada, e precisam agora de ser testados em animais de grande porte – porcos, no caso. É uma das exigências do Infarmed para que os produtos possam ser certificados como ‘ventiladores de emergência’ e chegar ao mercado. Estiveram, aliás, marcados para serem feitos no Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária (INIAV), em Santarém, mas casos de Covid na região adiaram os planos. Os testes deverão, assim, ser feitos em setembro, e só depois disso poderá haver seguimento no processo de certificação no Infarmed. Depois, se houver interessados, estará tudo pronto para serem produzidos.
A prova de conceito do modelo ’11 de abril’, que foi tornada pública a 31 de março, é de domínio público. Os modelos que estão agora em testes estão ainda “no segredo”. Paulo Fonte ainda não sabe se patenteará o EVEN, remetendo essa reflexão para mais tarde. O que sabe, é que quer colocar o ventilado ao serviço da humanidade, para que, “pelo mundo, cada um possa escolher” o produto que fizer mais sentido.
Questionado sobre qual o maior ensinamento que retira deste projeto, que juntou profissionais de áreas tão diversas, Paulo Fonte realça a riqueza do conhecimento que se torna possível, numa espécie de dose concentrada.
Deste projeto, que junta Paulo Fonte, António Grilo e João Nascimento, fazem ainda parte Américo Pereira, Luís Lopes, Pedro Póvoa, Telmo G. Santos, Alberto Martinho, Ângela Neves, António Bugalho, António Gabriel-Santos, Gonçalo Gaspar Bentes Pimenta, João Goês, João Martins, João Pedro Oliveira, José Paulo Santos, Luís C. Gil, Miguel Onofre Domingues, Orlando Cunha, Pedro Pinheiro de Sousa, Tiago A. Rodrigues, Valdemar R. Duarte, Antero Abrunhosa e Mário Pimenta.
Médicos, engenheiros e investigadores afiliados na Escola de Medicina e na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa, Exército Português, Hospital CUF, Hospital de São Francisco Xavier, Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde (ICNAS) da Universidade de Coimbra, Instituto Superior de Engenharia do Instituto Politécnico de Coimbra (ISEC/IPC), Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP-Coimbra), Universidade de Harvard e ainda engenheiros portugueses que integram equipas de fórmula 1, que formam um verdadeiro batalhão nacional que tenta deixar o mundo um pouco melhor.