De Norte a Sul, sabemos de exposições, concursos, seminários, tertúlias e somos convidados a ver desenhos e pinturas, representações, a ler textos de crianças pequenas e mais crescidas, que, nas escolas, nas autarquias ou em diversas associações culturais, recreativas ou de solidariedade, nos deliciam com a sua arte. Lembro-me de uma frase que vi em Barcelona, há 40 anos, no velho e exíguo Museu Picasso, e que me impressionou tanto, que jamais a esqueci, em que o artista respondia assim a uma pergunta sobre como explicava que, na infância, desenhasse e pintasse com tanto realismo: “Pois fiquei fascinado com a forma de representação das crianças e foi exatamente porque aos 9 anos pintava como um adulto que passei a vida a tentar pintar como uma criança.”
As crianças conseguem mesmo ser uma autêntica inspiração pela verdade que transmitem, através da sua arte. Mas aprendemos a saber que nem sempre a infância é sinónimo de inocência e de felicidade.
Muitas crianças, por esse mundo fora, são vítimas de tráfico, com vista à exploração pelo trabalho, em condições degradantes, ou à exploração sexual.
O aumento significativo dos sites de pornografia infantil em que há exibição de abusos sexuais de crianças por adultos tem sido facilitado pela Internet e cada vez há mais casos reportados de aliciamentos também por essa via.
No dia 25 de maio, Dia Internacional das Crianças Desaparecidas, o Instituto de Apoio à Criança (IAC) procurou, mais uma vez, sensibilizar a comunidade para esse flagelo, muito associado à exploração sexual, tendo aproveitado a ocasião para divulgar a nova diretiva da União Europeia, de dezembro de 2011, cujas disposições, muitas delas inovadoras, têm de ser transpostas para o nosso Direito interno até dezembro de 2013.
Em Portugal, temos uma legislação recente, que já contempla muito do que agora consta desta diretiva, mas ainda há muito a fazer na parte relativa à prevenção, por exemplo. Por outro lado, a diretiva propõe a avaliação da perigosidade do agente da infração após o cumprimento da pena, com vista a evitar a reincidência, que é muitíssimo elevada em crimes deste tipo. Este procedimento é já praticado em alguns países com resultados positivos e a ministra portuguesa da Justiça mostrou-se muito empenhada na transposição destas normas.
Segundo dados divulgados pela Comissão Europeia, que organizou uma conferência, em parceria com a Federação Europeia das Crianças Desaparecidas e Exploradas Sexualmente (Missing Children Europe), que o IAC integra, desde a sua fundação, e decorreu no dia 30 de maio em Bruxelas, a maior parte dos desaparecimentos dizem respeito a fugas, e dessas, as fugas das instituições de acolhimento são as que se registam em maior número, o que sucede, aliás, também em Portugal, à semelhança, portanto, do que ocorre nos outros países europeus.
De tal forma que, há ano e meio, numa outra conferência em Bruxelas, igualmente patrocinada pela Comissão, em que também participei, os protagonistas foram os Runaways, com o objetivo de incentivar os Estados ao estudo deste fenómeno tão sensível, visto que muitas destas crianças, internadas em lares dos respetivos sistemas de apoio social, nem sequer têm uma família preocupada que os reclame e que os procure quando se ausentam, ficando, assim, numa situação de extrema vulnerabilidade, expostos a todos os perigos. Esta foi sempre uma prioridade do “Projecto Rua”, do IAC, que contacta com estes jovens que não acreditam no futuro, crianças de olhar vazio, que não desenvolveram laços afetivos e que fogem, na busca de sonhos que se transformam em pesadelos.
Esta conferência contou com a participação de representantes de Organizações Não Governamentais da maior parte dos países membros da União Europeia e teve o objetivo de avaliar a implementação do número único europeu 116000, destinado às Crianças Desaparecidas. Também se procurou ver que medidas deverão ser adotadas para operacionalizá-lo nos países que ainda não dispõem dele e tornar mais efetiva a sua utilização naqueles que já o têm. Em Portugal, este número foi atribuído ao IAC, em 2007, em reconhecimento do excelente trabalho de mais de vinte anos que tem vindo a ser realizado pelo Serviço “SOS Criança”.
Os dias das crianças são momentos importantes em que convocamos as nossas apreciações da realidade. Mas quando se decide assinalar um Dia da Criança, como o do Trabalhador ou o da Mulher, é porque se tem consciência da vulnerabilidade da infância. Haverá sempre quem considere, sobretudo, o muito que já se fez em prol da criança, mas os inconformados, como eu, entendem que a Humanidade só avançará se quisermos o aperfeiçoamento. Quando escolhi Direito, foi o apelo da Justiça que me guiou. Por isso, não vou desistir. Não cederei à tentação de cantar as vitórias. Reconheço que também é necessário celebrar, mas a missão que abracei é um compromisso de vida. Enquanto houver crianças vítimas de violência, enquanto o abuso sexual for encarado como um fenómeno distante, enquanto houver crianças de 2 e 3 anos a trabalhar duramente, sem poderem brincar, sem tempo para serem crianças, aproveitarei esses dias para lembrá-las.
E recordo Soeiro Pereira Gomes que dedicou a sua obra-prima
Esteiros “aos homens que nunca foram meninos”… Na esperança de que haja um dia em que não seja mais necessário haver um dia especial, porque celebraremos a criança todos os dias.