Foi em italiano, mas a mensagem do Papa Francisco foi claramente percebida pelas autoridades portuguesas, esta quarta-feira de manhã, no Centro Cultural de Belém (CCB) – tanto que, à exceção de algumas críticas específicas, foi amplamente aplaudido, pelas mais de 700 pessoas, onde se incluam vários membros do Governo, do corpo diplomático e do clero português.
Ao lado do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, o Sumo Pontífice começou por estabelecer uma analogia da cidade que partiu à descoberta do oceano, para pedir rotas muito específicas: uma, acima de todas as outras, para a paz na Ucrânia; e as outras, que, desde 2020 tem repetido com alguma insistência, para a pobreza, a crise climática e a migração. Tudo para que, acima tudo, se evite que as respostas venham do “populismo e teorias da conspiração”.
Para um País onde a natalidade roça os mínimos, Francisco também pediu soluções para combater a crise demográfica e a solidão, não deixando de apontar baterias às “leis sofisticadas” da morte – ou seja, da eutanásia, que, após vários entraves presidenciais e do Tribunal Constitucional, passou a ser uma realidade. Invocando o Nobel escritor José Saramago, um ateu assumido, na sua obra “Todos os nomes”, apontou o caminho: “o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a pesquisa, e é preciso percorrer um longo caminho para chegar ao que está próximo”.
As primeiras palavras foram para Lisboa, onde disse sentir que dá um exemplo de multiculturalismo: “estou a pensar no bairro da Mouraria, onde convivem pessoas de mais de sessenta países – e revela o carácter cosmopolita de Portugal, que tem as suas raízes na vontade de se abrir ao mundo e explorá-la, navegando rumo a novos e mais amplos horizontes“.
Depois, parafraseando autores nacionais (inclusive Amália Rodrigues – “Lisboa tem cheiro de flores e de mar”) e até recorrendo à mitologia grega, para defender que, de uma capital que tem o oceano à porta e onde se reformou a União Europeia, em 2007, são precisas “rotas” que respondam as “grandes questões globais”. “Muitas vezes experimentamos a ineficácia em respondê-las justamente, porque, diante de problemas comuns, o mundo está dividido, ou pelo menos não suficientemente coeso, incapaz de enfrentar unidos o que coloca todos em crise. Parece que injustiças planetárias, guerras, crises climáticas e migratórias correm mais rápido do que a capacidade, e muitas vezes a vontade, de enfrentar esses desafios juntos”, disse.
“Para onde vais se, diante do mal de viver, ofereces remédios precipitados e errados, como o acesso fácil à morte, uma solução conveniente que parece doce, mas na verdade é mais amarga que as águas do mar? E penso em muitas leis sofisticadas sobre a eutanásia“
“Lisboa pode sugerir uma mudança de ritmo. Aqui, em 2007, foi assinado o tratado homônimo de reforma da União Europeia. Afirma {o tratado] que ‘a União tem por fim promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos’. Mas vai mais longe, afirmando que ‘nas relações com o resto do mundo […] contribui para a paz, a segurança, o desenvolvimento sustentável da Terra, a solidariedade e o respeito mútuo entre os povos, o comércio livre e justo, a eliminação da pobreza e a proteção dos direitos humanos'”, apontou, pedindo que se passe das palavras aos atos.
Para isso, argumentou Francisco, “a Europa poderá trazer para a cena internacional a sua originalidade específica, surgida no século passado quando, do cadinho dos conflitos mundiais, deixou ressoar a centelha da reconciliação, realizando o sonho de construir o amanhã com o inimigo de ontem, abrir caminhos de diálogo, caminhos de inclusão, desenvolvendo uma diplomacia de paz que apague conflitos e alivie tensões, capaz de captar os mais ínfimos sinais de descontração e de ler nas entrelinhas mais tortas”.
Recados para Portugal, com Costa na primeira fila
A Portugal, que contribuiu para a globalização na sua história, pediu mais, principalmente respostas do Estado Social: “a vossa tecnologia, que marcou o progresso e globalizou o mundo, por si só não basta; muito menos bastam as armas mais sofisticadas, que não representam investimentos para o futuro, mas empobrecimentos do verdadeiro capital humano, o da educação, da saúde, do estado de bem-estar“.
Com o primeiro-ministro na primeira fila, além de outros membros do Governo – como os ministros da Administração Interna, Negócios Estrangeiros -, o Papa tocou na crise demográfica nacional e a recente legislação da morte assistida, mas também na falta de uma resposta europeia à migração ilegal.
“Tornou-se paradoxalmente prioritário defender a vida humana, posta em risco pelas derivas utilitárias, que a usam e a descartam: a cultura do desperdício da vida. Penso em tantos nascituros e idosos abandonados à própria sorte, na dificuldade de acolher, proteger, promover e integrar quem vem de longe e bate às portas, na solidão de tantas famílias com dificuldade para parir e criar crianças”, disse, lançando a crítica – “Para onde navegas? Para onde vais se, diante do mal de viver, ofereces remédios precipitados e errados, como o acesso fácil à morte, uma solução conveniente que parece doce, mas na verdade é mais amarga que as águas do mar? E penso em muitas leis sofisticadas sobre a eutanásia“.
Segundo Francisco, é perante a inexistência de determinadas respostas, ou de estratégias erradas, que há “um clima de protesto e insatisfação em muitas partes, terreno fértil para populismo e teorias da conspiração”.
O Sumo Pontífice terminou a apelar à “fraternidade” e a que Portugal não perca “o sentido de vizinhança e solidariedade” que ainda “está muito vivo” em certas zonas do País. Para isso, usou as palavras de um dos mais reconhecidos escritores portugueses: “como notou Saramago, ‘o que dá verdadeiro sentido ao encontro é a pesquisa, e é preciso percorrer um longo caminho para chegar ao que está próximo'”.