Vamos chamar as coisas pelos nomes. Na linguagem escrita, essas coisas assumem a forma de @, *, …, ! e #. No registo sonoro, “cobrem-se-se” com um “Piiiiiiiii” as vocalizações que causam impacto pela carga emocional associada e aquela que despertam em quem as ouve. Daí que não lhes chamemos palavras, mas palavrões. Rimam com “parvalhões” e outras, mais impactantes, que também terminam em “ões” (“cab…”, “cul…”). Logo aqui se percebe o poder evocativo do que não é dito e se imagina, ou vem à mente, de forma espontânea.
A força das palavras tabu
Do “abracadabra” ao “vai-te f…”, as palavras interditas, ou consideradas tabu, parecem possuir propriedades extraordinárias, que lhes conferem poder. É esse o caso quando elas se soltam da boca, de modo enfático se sem pudor, em inúmeras ocasiões: do típico linguajar no trânsito, que alivia frustrações, aos impropérios que atenuam a dor se a gente se aleija, passando pelo momento em que a equipa de que somos adeptos ganha (ou perde; os palavrões saem da boca na mesma, talvez com nuances de tom).
Com frequência, os “mimos” que se dirigem a potenciais adversários parecem ganhar, qual Pinóquio, vida própria e aparecer sem pedir licença, até mesmo em contextos solenes e ou ditos civilizados.
Por vezes, apoiamo-nos nestes ‘companheiros’ como numa bengala, durante conversas banais, outras vezes são eles, os palavrões, que nos ‘atraiçoam’ e revelam o nosso discurso interno, com as suas pequenas e grandes angústias (veja-se a sinopse do podcast “Isso não se diz”, do comediante Bruno Nogueira, nas palavras do próprio, no Instagram: “É essencialmente um senhor com um microfone à frente a embirrar com situações.”)
De onde vem a força destas palavras feias e expressões pejorativas, que tanto visam afugentar quem não se deseja ter pela frente como se afiguram uma via privilegiada para fazer pontes, até as mais improváveis, e satisfazer necessidades de pertença?
A Psicologia do obsceno
As palavras grosseiras que nos vêm à cabeça e que, em boa parte das vezes, das vezes, fazemos questão de libertar (“saiu-me”, “atirei-lhe à cara”, “disse-o com todas as letras”), dizem muito sobre o nosso funcionamento mental e emocional, mas também acerca dos códigos de organização social.
É uma história antiga que começa, invariavelmente, a partir do momento em que se aprende a falar, a perguntar e a reproduzir o que se ouve sem noção do impacto causado. Os “grandes” (os adultos) podem rir-se e abordar a situação de uma forma criativa ou indignar-se, castigar e repreender (há algumas décadas, prometiam por pimenta na língua se a criança repetisse o “calão” usado pelos mais velhos, por exemplo). Qualquer que seja a reação, envolve emoções intensas, sintetizadas num palavrão ou numa expressão que o inclua, e dificilmente se esquece.
Essas memórias emocionais acompanham-nos pela vida fora e vão sendo modificadas com as experiências de cada um, na relação com os pares e a cultura (como esquecer as letras de músicas disruptivas que acompanharam a adolescência ou se associam a circunstâncias biográficas?).
Na Era Vitoriana, perturbações neurológicas como a Síndrome de Tourette deixavam envergonhados – e estigmatizados – alguns dos pacientes que tinham tido o “azar” de alguns verem os tiques e vocalizações repetidas e frequentes manifestarem-se sob a forma de coprolalia (ato involuntário de dizer palavras obscenas que afeta uma em cada dez pessoas com a condição).
No início do século passado, este foi um tema de eleição para a Psicanálise. Sigmund Freud reconheceu o caráter ambíguo das palavras e a sua ligação simbólica a conteúdos latentes e vetados pela mente consciente em abono da aceitação social. Daí a importância das piadas, do humor, que permitiam disfarçar a expressão de sentimentos agressivos e outros, censuráveis, se ditos de forma explícita.
O seu colega e amigo húngaro, Sándor Ferenczi, viria a publicar um artigo sobre palavras obscenas, sublinhando a sua qualidade erótica. No seu entender, os desejos primitivos infantis, recalcados no período de latência (fase do desenvolvimento sexual que precede a puberdade) e transferidos para a linguagem, deviam ser explorados e chegar à consciência, através da nomeação desses vocábulos que, tantas vezes, levavam à punição (a boca da qual saiam pensamentos impuros).
A importância do contexto
Muita coisa mudou, sobretudo no final dos anos 1960, mas não o suficiente, pelo menos na comunidade científica, como atesta um artigo publicado há dois anos no European Journal of Psychotherapy and Counseling, em que se defende que o uso de linguagem profana poderia acrescentar valor aos processos terapêuticos, lamentando que ainda seja tabu e gere controvérsia. O tema é complexo e está longe de resumir-se à gramática.
Na vida mundana, “o contexto e a interação verbal são essenciais para perceber se é uma estratégia de agressividade ou de violência verbal face ao interlocutor”, observa Isabel Roboredo Seara, investigadora do Centro de Linguística da Universidade NOVA de Lisboa, acrescentando: “Quem não avaliou já como hostil o ‘você’ em determinado contexto?”
A coordenadora do grupo de investigação DIGITHUM, integrado no Laboratório de Educação à Distância e eLearning (LE@D) da Universidade Aberta , onde é professora, traz à conversa um artigo do linguista francês Patrick Charaudeau, sobre violência verbal e detalha: “Se usarmos palavras como m****, preto, cretino, p*** ou sacana de forma isolada elas podem não terão um efeito ofensivo, mas se as dirigimos a alguém com a intenção de rebaixar ou estigmatizar, já têm um valor de ofensa e de insulto.”
Curiosamente, o carinho também pode entrar na equação. “Basta pensar num amigo que não se via há longa data. O valor do epíteto ‘meu sacana, há quanto tempo não te punha a vista em cima!’ é amigável.” Já os enunciados interrogativos, que podem veicular uma função crítica, ela pode ser agravada com um apelativo “Isto são horas de chegar, seu palerma?” Ou seja, “não se pode atribuir, a priori, um grau de violência às palavras, ele depende dos contextos, da perceção e da descodificação feita pelo destinatário”.
Os palavrões podem incluir-se numa categoria mais vasta, a dos insultos, mas pode diferenciar-se deles pela qualidade da dinâmica estabelecida (e que pode ser de aceitação e consentimento, por exemplo). Haverá hoje mais propensão para usar os palavrões como armas de arremesso?
“Com a utilização exacerbada de dispositivos digitais, qualquer um se pronuncia sobre qualquer assunto, há mais exposição e polémica”, reconhece a docente, mas mesmo tendo em conta a disseminação de conteúdos e comentários pouco refletidos, “provavelmente não existe mais violência verbal, mas esta tem mais visibilidade”.
A normalização do interdito: WTF e sucedâneos
“Nós somos pensados pela linguagem, ela molda-nos”, avança o Sérgio Luís de Carvalho, mestre em História Medieval pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e com obras publicadas nas áreas do romance, da investigação histórica e da literatura infantojuvenil.
Após estudar as origens e as histórias associadas à arte de maldizer, publicou o Dicionário de Insultos (Planeta). Embora tenha encontrado centenas deles, “os palavrões não chegaram a uma dezena”, faz saber o autor, mencionando os clássicos “bardam****” e “vai para o c******”. Este último terá surgido nos Descobrimentos: “Nas caravelas, o vigia tinha a missão ingrata e dolorosa de subir ao mastro, até à ponta, correndo o risco de cair, mas o termo vem do latim ‘caralio’, que significa pau grande.”
Embora sejamos seres racionais, conferimos um poder mágico aos palavrões, que gravitam, de um modo geral, em torno dos mesmos temas: “São as pragas e os maus olhados, ligados à morte, que se desfazem com antídotos verbais, e as palavras e expressões que envolvem sexo e genitais, que são a maioria”. Lembrando que “ninguém, ao martelar o dedo sem querer, exclama ‘que aborrecimento!’”, o autor fala no poder catártico das asneiras (ou daquilo que podemos apelidar de “dizer caralhadas”).
Os significados do léxico que usamos crescem connosco. E podem, até, ganhar uma conotação inteiramente nova: “Há dois séculos, o pecado de sodomia era o pior de todos, o das bestas; hoje, ser bestial não é insulto, é elogio.” De resto, é frequente ouvir de alguém propenso a instabilidade emocional que, em função do seu estado de espírito, os outros passam de “bestial a besta”. O impacto de um palavrão ou asneira (termo ligado ao asno, ou burro) mede-se em função do grau de interdição do seu uso, remete para assuntos marginais e incide nos medos mais íntimos.
Se o “vai-te f…”, o “vai para o c…” e afins evocam o sexo, os interditos e o estigma, já o ofensivo “filho da puta” ou “da mãe”, remete para um tempo em que no registo dos filhos nascidos fora do casamento só constava o nome da progenitora, que era olhada de lado, bem como a sua descendência. Hoje não é assim, mas o efeito bélico persiste. “O antigo Presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, referia-se aos bastardos do Continente”, recorda Sérgio Luís de Carvalho.
Nos tempos que correm, receber um comentário que envolva “putice” pode ser motivo de orgulho, da mesma forma que “a importação massiva de anglicismos” permite, entre pares, que se tratem potenciais parceiras por “cabra” (“bitch”), antigamente associada à presa, “alguém que vive na dependência sexual de outro, remetendo para as questões raciais.”
Na cultura americana, “motherfucker” não é palavrão e “black” também não, ao contrário de “nigga” (N word), termo depreciativo usado no passado pela organização terrorista Ku Klux Klan. Por cá, a neutralidade da palavra “negro” contrasta com a carga associada a “preto” que, no século 19, era um termo paternalista e desqualificante (“o trabalho é bom para o preto”, “tá quieto, ó preto”).
Nas redes sociais, o uso de palavrões normalizou-se, com novas conotações e, porventura, foi-se tornando aceitável. O ‘fuck’ banalizou-se a tal ponto que a sigla WTF (c’um c******!) até pode dar nome a tarifários de telemóvel. A este respeito, o professor e romancista evoca a famosa cena do filme O Sol do Futuro, de Nanni Moretti, em que os senhores da Netflix declinam o projeto do protagonista, por carecer do “momento WTF”.
4 PONTOS FORTES DAS PALAVRAS ‘FEIAS’, ou as virtudes dos palavrões
À luz dos estudos de neurociência e de linguística, os termos que antes eram um sinal de má \educação – e motivo de exclusão social – parecem ter conquistado uma aura de aceitação e de legitimidade. E até lhe reconhecem vantagens:
Um analgésico para a dor
Não precisa de experimentar o desafio do balde de gelo para se certificar de que a primeira reação seria soltar impropérios como se não houvesse amanhã para minimizar o desconforto associado ao choque térmico. Há muito que a Ciência revelou que a mente só consegue focar-se numa coisa a cada instante e que, diante de dois estímulos, uma toma primazia. Após vários anos a estudar o efeito do palavreado rude na perceção da dor, o psicólogo inglês Richard Stephens, da Universidade de Keele, avançou uma explicação: a resposta de ataque-ou-fuga gerada na situação geradora de stresse anula a ligação entre medo da dor e perceção da mesma. Uma pista útil que também se aplica aos momentos que precedem as grandes competições e combates. Não é por acaso: produzir vocalizações com impacto, por exemplo, como nos rituais tribais, aumenta os batimentos cardíacos e prepara o corpo para a ação, reduzindo a sensação de dor.
Inteligência social
Usar termos pejorativos não é, como se pensava, sinónimo de ser pobre em vocabulário, antes um indicador de fluência verbal. A conclusão é de um estudo liderado pelo psicólogo americano Timothy Jay que aplicou dois testes, com a duração de um minuto cada, numa amostra de 49 universitários (34 mulheres): no primeiro, era preciso elencar o maior número de palavras iniciadas por três letras; no segundo, as letras eram as mesmas letras, a diferença era serem pedidos palavrões. Quem teve melhor desempenho na primeira tarefa também obteve pontuações altas na segunda, algo que os investigadores atribuíram à inteligência social dos participantes.
Enfatizar mensagens
Tenham, ou não, alguma carga agressiva ou violenta associada, a tendência atual é o uso indiscriminado dos palavrões (os f******, m**** e p***). Mais do que insultar, chamam a atenção ou são um recurso frequente para reforçar uma ideia numa conversa ou debate. No início do ano, um artigo do The Guardian dava conta disso mesmo. Depois do célebre momento televisivo (programa Today, da BBC Radio 4) em que a jornalista britânica Mishal Husain praguejou sete vezes em menos de um minuto, na entrevista ao Secretário do Interior James Cleverly, o jornal britânico contactou académicos e chegou à conclusão de que havia menos tabu e novas funções nestes vocábulos. Entre elas, vincar um ponto (“quem nunca?”). Elon Musk o fez. Ele e tantos outros, comuns mortais prontos a imitar o que seja eficaz, em matéria de comunicação.
Código de acesso para partir ou ficar
Não é preciso atirar cocó ao adversário ou marcar o território – como fazem os nossos antecessores, os amigos primatas – para o afastar ou agredir. Basta mandá-lo para aquela parte e o cérebro encarrega-se de imaginar o que é verbalizado. Atirar ao ar palavras fortes num momento de grande tensão impede que se passe ao ato, ou seja, que a pessoa tenha condutas a quente, com consequências desastrosas. Dizer asneiras à boca cheia é, por isso, um escape para a carga agressiva (destrutiva) e tem ainda a vantagem de estimular a coesão num grupo, satisfazendo a necessidade de pertença (sentir que está entre os seus).
“O uso dos palavrões pode ser muito eficaz no combate à dor”
Entrevista a Emma Byrne, cientista britânica e autora do livro Dizer Palavrões Faz Bem (Planeta)
O que o motivou a escrever sobre as palavras com carga pejorativa?
No início da minha carreira de investigadora, em ciência da computação e inteligência artificial, dei-me conta de que os cérebros humanos – e os cérebros dos animais, de um modo geral – são muito mais interessantes e complexos do que qualquer coisa que possamos fazer em computadores.
O que faz com que os palavrões sejam apelativos e usados com frequência?
Há um elemento intrigante que tem a ver com a dor ou, pelo menos, com a necessidade de evitá-la. Ao estudar o assunto, descobri que o uso dos palavrões pode ser muito eficaz no combate à dor e fiquei absolutamente fascinada.
O que se passa no cérebro ao usarmos termos e expressões com carga emocional?
As respostas físicas aos palavrões incluem coisas como aumento da frequência cardíaca ou da condutância da pele, ou seja, o quanto transpiramos. Essas reações sinalizam que o nosso corpo se prepara para lutar ou fugir. É possível que os palavrões funcionem, preparando-nos para sermos realmente resilientes.
Isso significa que dizer impropérios é adaptativo?
É difícil ter certeza dos resultados evolutivos de qualquer fenómeno porque não podemos replicar essa evolução (em experiências científicas). No entanto, não creio que fossemos capazes de cooperar enquanto espécie se não tivéssemos esta forma eficaz e não violenta de expressar sentimentos.
Porque é tão tentador recorrer a palavras que têm significados pejorativos?
Os motivos para praguejar e usar palavrões são pessoais e altamente dependentes do contexto em que são ditos. Há de tudo, desde o desejo de responder a algo que causa dor ou frustração até ao de provar que se faz parte de um dado grupo social.
O que pode dizer acerca do uso de palavrões entre amantes, por exemplo?
Por mais frustrante que seja a pouca investigação feita sobre palavrões e intimidade, sou levada a suspeitar que não vamos querer usar os termos da gíria médica quando estamos a fazer coisas íntimas com alguém de quem gostamos.
O que mudou desde que escreveu o livro até agora?
No Reino Unido, pelo menos, atenuaram-se as atitudes em relação aos palavrões que envolvem partes do corpo ou funções corporais. Penso que há mais consciência do poder que certos palavrões têm, de funcionar como armas e causar danos reais,como os insultos sobre a cor da pele ou a sexualidade das pessoas.
Como estão a tornar-se um lugar-comum, vão deixar de ter importância?
Estou confiante de que vai sempre haver lugar para os palavrões, mesmo que o vocabulário do que consideramos como tal mude. Interrogo-me se os últimos anos não nos deram, a todos, uma enorme vontade de dizer impropérios!