“Foste mesmo estúpido!” “Que parva que eu sou” “Porque é que te meteste noutra alhada? Estavas a pedi-las” Esta e outras observações, que invadem a mente, vezes sem conta, e são frequentemente apelidadas de “carrasco interno”, minam o quotidiano de muitos de nós. De pouco vale saber se o fazemos por termos traços perfecionistas, se isso é comum a estados ansiosos ou depressivos ou, simplesmente, por se desconhecer outra realidade interna. O que conta são os sentimentos de impotência, vergonha, medo e outras vulnerabilidades, que afetam o funcionamento mental e o rendimento e, ainda, a forma como nos vemos e nos relacionamos com os outros.
Quando assim é, olhar-se ao espelho a cada manhã torna-se um exercício penoso, por envolver a tal reprovação pelo próprio (veja-se a expressão “pintava a minha cara de negro se fizesse /dissesse tal coisa”). Ora, se é tão embaraçoso ou impensável ter uma atitude reprovável face a alguém, porque o fazemos, amiúde, com a pessoa que somos, que tantas vezes maltratamos, à conta dessa maléfica voz interior? E o que fazer para dar a volta a isso?
A neurociência do olhar
Por falar em formas de ver, é incontornável referir a pintura surrealista de René Magritte, que tem quase um século, O Espelho Falso, mostrando um olho humano sobredimensionado em que a íris se apresenta como um céu com nuvens.
O que vemos quando olhamos para nós ao espelho? Até que ponto podemos usar o nosso reflexo como um auxiliar na maneira de treinar o olhar e aquilo que vem à mente durante esse exercício?
A Terapia do Espelho é uma técnica que surgiu a partir de estudos realizados em primatas, nos anos 1990: , quando estavam na presença de outros da mesma espécie, as áreas do córtex pré-motor cerebral destes mamíferos eram ativadas. Mais tarde, o diretor do Centro do Cérebro e da Cognição da Universidade da Califórnia, em San Diego, o neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran, verificou que pessoas amputadas tinham menos “dor fantasma” quando olhavam o reflexo do membro não amputado, por terem a sensação de ver dois membros em movimento.
Hoje, esta abordagem tem sido usada para estimular a consciência cerebral do membro em falta e na reabilitação pós-AVC, pois a ativação neuronal nas áreas motoras do cérebro permite a reorganização cortical, trazendo melhorias no plano funcional. Além disso, a “técnica do espelho” tem sido aplicada no contexto psicológico, para promover a autoestima e o autoconhecimento, que funcionam como antídoto da autocrítica e reduzem as dificuldades experimentadas no relacionamento interpessoal.
Meditação ao Espelho
No seu mais recente livro, Mirror Meditation: The Power of Neuroscience and Self-Reflection to Overcome Self-Criticism, Gain Confidence, and See Yourself with Compassion, a psicóloga e investigadora americana Tara Well, do Barnard College da Universidade de Columbia, apresenta os benefícios de um programa meditativo criado por si, com base num estudo sobre motivação, percepção e cognição.
Entrevistada por Scott Barry Kaufman, no Psychology Podcast, a docente e autora explica como o simples facto de nos olharmos ao espelho diariamente, durante dez minutos, pode fazer a diferença e ser um preciso aliado no combate da autocrítica, que nos leva a, instintiva ou automaticamente, a apontar de falhas, quando somos confrontados com o nosso reflexo no espelho.
Tara Well, que se especializou no estudo das memórias biográficas e da motivação, inspirou-se nos princípios da atenção plena (mindfulness) e começou a usar o reflexo no espelho como veículo para externalizar o que nos vai na cabeça, após um exercício inicial de relaxamento progressivo com os olhos fechados e visualização de um lugar seguro (ver-se na praia, ou num cenário agradável). Depois, pediu às pessoas para abrirem os olhos e sugeria-lhes que contemplassem a sua imagem e deixassem vir à mente todos e quaisquer pensamentos, sensações e emoções.
Num primeiro momento, uma boa parte dos participantes deu-se conta de que tinha a tendência para se julgar negativamente, algo que não era assim tão comum quando em situações de interação com terceiros. Então, orientava os participantes, convidando-os a serem curiosos e explorarem, sem censurar, essas emoções, sensações, pensamentos e crenças negativas, que eram muitas vezes associados aos papéis desempenhados socialmente ou na família. Em vez de rejeitarem essa torrente, dissociada da sua imagem ao espelho, propunha-lhes que a aceitassem, ensaiando formas mais adaptativas de falar consigo mesmas.
Os resultados foram impactantes: ter uma atitude mais generosa para com a sua pessoa tinha um efeito benéfico. Por exemplo, nas interações quotidianas, ao tomarem consciência de estar em situações sociais distintas – quando estavam entre amigos, tratados pela sua alcunha; no trabalho, com os colegas; com familiares e, ainda, diante de estranhos – as pessoas conseguiam observar-se de fora e estar atentos aos sinais do corpo, em vez de ficarem hipervigilantes e reféns dos tais pensamentos e reações automáticas (“o que é que o outro está a pensar de mim”, etc).
Na prática, todos se sentiram mais capazes de regular as suas emoções e clarificar se queriam, ou não, ter determinados papéis (associados à sua identidade ou narrativa de vida), caso eles não fossem consistentes com os seus valores e motivações ou traziam níveis de desconforto elevados. Em síntese, era possível mudar o foco, habitualmente canalizado para as imagens idealizadas com as quais tendiam a comparar-se constantemente, para mal dos seus pecados, como se costuma dizer, sofrendo com isso, mesmo que o disfarçassem com comportamentos de fachada.
Aprender a usar o nosso reflexo para desenvolver um novo estilo de conversa com os nossos botões traduz-se em mudanças neuroquímicas, ao nível da ínsula anterior, no cérebro, ou seja, a expansão da forma de ver-se permitia sair do afunilamento mental típico das respostas de stresse.
O exercício pode ser ensinado e praticado em casa, após ultrapassadas as dificuldades iniciais e quando já se desenvolveu uma maior tolerância – e compaixão – face à frustração e vulnerabilidades várias. Só depois disso é que o efeito transformador pode ser “migrado” para as interações com os outros, resultando numa atitude mais empática e sem levar tanto a peito divergências de opinião, equívocos de comunicação e afins.
Autodescoberta acompanhada
Sem uma rede segura, a viagem ao interior de si pode ser avassaladora. A sensação de ir além do que vemos à superfície das coisas é ilustrada no clássico do século XIX, Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll (1871), que foi adaptada para o cinema: a ação a desenrola-se dentro de uma casa e protagonista experimenta um mundo que desafia as leis da lógica e inclui alterações da perceção do espaço e do tempo. Alice entra em contacto com verdades intensas e, até, mais profundas do que as que encontrou na saga anterior (Alice no País das Maravilhas).
Dito isto, não é por acaso que, na vida real, muitos evitam um contacto mais profundo consigo mesmos, por receio das emoções turbulentas que lá possam encontrar. Daí que a jornada de autodescoberta deva ser acompanhada por um profissional qualificado, capaz de supervisionar o exercício de contemplação ao espelho, para que o cliente consiga fazê-lo em casa e, na próxima sessão, possa explorar o que descobriu.
“Esta ferramenta terapêutica não é nova, e vem sendo utilizada há trinta anos, apesar de não ter este nome”, observa o psicólogo Pedro Sousa Lé, que trabalha no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, e exerce a atividade clínica na m3l Clinic, com a abordagem cognitivo-comportamental integrativa.
“A maior parte dos clientes que chegam ao consultório trata-se mal porque tem muitos pensamentos negativos acerca de si, ao longo do dia, que surgem de forma automática”, esclarece. A partir do momento em que se apercebem da maneira como se dirigem a si mesmos, “que tende a ser muito crítica”, enquanto olham para o seu reflexo, são desafiados a questionar esses pensamentos e incorporar pensamentos e afirmações do tipo “eu aceito o meu corpo (ou os defeitos pessoais)” e a ensaiarem um registo na primeira pessoa que seja mais saudável e verdadeiro para eles”.
Segundo Pedro Sousa Lé, “enquanto a perceção negativa de si prejudica a motivação, a prática de olhar-se com um filtro mais positivo muda, para melhor, o comportamento e o estilo de vida”. Que dizer, então, do hábito de perguntar ao espelho – “espelho mágico, espelho meu”, como fazia a bruxa, no conto infantil Branca de Neve – ou do “vício” de plantar os olhos no espelho, no ecrã do telemóvel ou nas selfies editadas e partilhadas, em que o foco excessivo na imagem reforça o lema “eu, eu e mais eu”?
O psicólogo frisa que “este procedimento nada tem a ver com narcisismo”. E explica porquê: “O foco não está na aparência, mas nas questões internas e, no contexto de uma relação de confiança com o terapeuta, em que se investe no fortalecimento do ego, não há o risco de descompensação, por exemplo, em casos de depressão ou de pânico”.
Conclusão: cuidar da forma como fala com os seus botões é crucial para que a sua vida possa ser mais gratificante e genuína, com uma maior imunidade face às projeções alheias e vínculos com menos ansiedade e mais qualidade.
Se tem dúvidas das possibilidades de expandir e transcender fronteiras proporcionado pela capacidade de observar-se – a si e aos outros – de forma inteira e plena, basta lembrar que o exercício de olhar o outro em silêncio, numa postura imóvel, faz parte das práticas tântricas, que catalisam a experiência de intimidade e, há bons anos, elogiadas pelo popular cantor britânico Sting.
Num registo diferente, mas não menos intenso, recorde-se a apresentação mais marcante da artista performer sérvia Marina Abramovic, no MoMA – Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 2009, intitulada The Artist is Present (a artista está presente). Durante os três meses da exposição, Marina passou mais de 700 horas sentada numa cadeira. No público, quem desejasse podia sentar-se diante dela e passar um minuto de silêncio a contemplá-la: muitos desfizeram-se em lágrimas. Podemos apenas imaginar o que sentiram. Quanto ao que disseram as suas vozes internas, ficará na memória de cada um.