Entra por um ouvido e sai pelo outro. É para o lado que durmo melhor. Os cães ladram e a caravana passa. Lemas de bolso prontos a usar quando os nossos sentidos são tomados de assalto por “bocas” que ferem, como espadas, punhais, pistolas ou feixes laser. Na versão infanto-juvenil, o clássico “quem diz é quem é” permanece atual, mesmo quando só é dito para dentro, enquanto se olha nos olhos do protagonista da ofensa. O silêncio, aprende-se mais tarde, tem mais valor e impacto do que “gastar latim” ou “dar pérolas a porcos”. Porcos?! Pois. Quando o assunto “não cheira bem”, é fácil resvalar. “Não te fiques, responde-lhe à letra (ou à altura)”, advertem uns, “difamas-me a mim, cancelo-te a ti”. Outros avançam outros meios que lhes parecem mais eficazes a gerir impropérios na arena pública. “Não percas o teu tempo, protege-te”. Em que ficamos?
A psicologia social explica. Num artigo do BBC, o investigador australiano Roy Baumeister, coautor do livro The Power of Bad and How to Overcome It, avança que o viés da negatividade se revela inútil, na medida em que distorce a nossa percepção do mundo e a maneira como interagimos com ele. Gera-se um efeito de contágio, um comportamento gera outro comportamento e, em última análise, ninguém fica bem visto na fotografia, quem “ri por último” incluído. Se assim é, porque nos deixamos contagiar, ou cegar, por rastilhos vários?
Apesar de nos distinguimos de outras espécies pela capacidade de discernimento, graças à evolução do cérebro – o córtex pré-frontal, que nos permite fazer uso da razão -, ele tem, na sua base, um sistema operativo rudimentar, sem o qual não teríamos sobrevivido e chegado a Sapiens Sapiens: diante de uma situação que identificamos como ameaçadora, os nossos gânglios basais entram em modo de alerta e vem a resposta básica de ataque ou fuga. O sistema límbico, que desencadeia reações emocionais antes de todos os dados serem processados na parte mais desenvolvida do cérebro, leva-nos a “atacar o touro pelos cornos” ou, em alternativa, encontrar um lugar seguro antes de baixar a guarda.
Esta é a razão pela qual, em boa parte das vezes, filtramos a realidade com lentes sombrias, não vá o Diabo (agressores, trolls e afins) tecê-las, ainda que a vida nos ensine, mais tarde, a dar menos importância a insultos, críticas e pontos de vista divergentes. Até lá, o corpo é que paga, com maleitas resultantes da batalha (ou stresse) a que foi sujeito.
Entretanto, uma frase dita na hora errada ou palavras mais duras num momento de tensão podem pulverizar todos os elogios e conversas boas e deixar casais e amigos de longa data de costas voltadas. “No melhor pano cai a nódoa” e os momentos felizes são chutados para canto, ou passam-nos ao lado, e acabamos por guardar o negativo na memória.
Por defeito, pautamo-nos pelo velho adágio “good news, no news”. Não admira, portanto, que os crimes, a corrupção e as desgraças ocupem as primeiras páginas dos jornais e que os livros e filmes com temas polémicos, ou sobre catástrofes, conquistem lugar no top de vendas. Ou que, em momentos de crise, em que é preciso fazer das tripas coração para sair do marasmo e voltar à vida, seja frequente o desabafo “não vejo notícias nem quero saber das redes sociais” ou “para pior já basta assim”.
Criar espaço para o que é bom
Na essência, queremos ser felizes e até as boas notícias têm um efeito inspirador, com impacto no plano neuronal e na nossa saúde, mas desvalorizamos isso sempre que o cérebro primitivo, ativado pelo medo e outras emoções negativas, leva a sua avante. Isso pode infernizar-nos a vida, agigantando questões que tinham tudo para serem pouco importantes.
Este mecanismo de defesa, que assenta na negatividade, tem origem, quase sempre, em carências pessoais. “É mais fácil libertar-se de uma característica negativa se for projetada nos noutros”, esclarece o psicólogo clínico e psicoterapeuta Guilherme Canta. O efeito multiplicador das redes sociais faz o resto e os alvos de tais projeções sentem-se, com frequência, impotentes, sejam, ou não, figuras públicas. Tem mesmo de ser assim? Porque é tão difícil focar a atenção no que é bom, pazenteiro e positivo, seja do lado de quem aponta o dedo ou de quem se ressente por sentir que o céu se abate sobre si, nas interações diárias, on e offline?
“Dar o primeiro passo numa direção positiva pressupõe ter uma personalidade adulta e narcisicamente saudável”, adianta o clínico. Depois, há que ter em conta a biografia de cada um. “Quem cresce sem ser reconhecido nas suas necessidades tende a reproduzir as falhas narcísicas ao longo de gerações.” É certo que “cabe aos pais darem o primeiro passo e darem feedback positivo aos filhos para que tenham um desenvolvimento psicológico são”.
Porém, não vivemos num mundo perfeito. A solução para sair deste ciclo passa por “envolver-se em experiências gratificantes”, capazes de transformar um registo sombrio e denso noutro, mais estimulante e aprazível, o que, na gíria, se costuma designar de “boa onda”. As férias podem ser uma oportunidade para quebrar condicionamentos, ou hábitos enraizados, marcados pela negatividade, mas tal implica algum esforço. Por exemplo, relativizar a importância de uma observação infeliz quando quem a fez atravessa um período crítico ou recebeu uma notícia menos boa; dar aquele toque nas costas (genuíno, de modo a não ser recebido como um “passar a mão no pelo”) ou ter um gesto de apreço após uma atitude ou comportamento gentil de que não se estava à espera e caiu bem. E, se for o caso, elogiar uma ação que o mereça. Isto aplica-se ao casal, aos familiares e entre amigos.
Estudos na área da Psicologia Positiva mostram que os ganhos do feedback positivo se refletem nas áreas académica, profissional, social e íntima, criando condições para que as pessoas assumam riscos com mais autoconfiança e experimentem sentimentos de realização e de satisfação com a vida. “Em Portugal, ainda temos uma cultura assente na desconfiança, orientada para a crítica, e não sabemos dar elogios, até a nós mesmos”, observa Guilherme Canta. É pena, uma vez que isso parece ter um efeito organizador no nosso estilo de vida.
Criticar menos, comunicar melhor
O psicólogo americano John Gottman ficou famoso por estudar os relacionamentos amorosos e identificar os quatro inimigos da saúde e bem-estar conjugal. A crítica era um deles e o seu efeito destrutivo no património afetivo da dupla era tal que tendia a culminar em divórcio.
Lá diz o povo, mesmo quando uma pessoa pensa que está certa, “não é com vinagre que se apanham moscas.” Quem é alvo de críticas tende a sentir-se desqualificado, além de reagir mal à pressão para submeter-se à vontade de quem critica. Por seu turno, quem o faz, pode sofrer do tal viés negativo, ancorado em vulnerabilidades pessoais, e levar a peito divergências que encaram como ataques; não raras vezes, até têm um discurso negativo consigo mesmas (“foste mesmo estúpido”, “voltei a fazer m****”), que transportam, mais cedo ou mais tarde, para fora de si. O efeito obtido é o oposto do pretendido: afasta em vez de aproximar.
Quem critica tem, frequentemente, um discurso interno negativo e tende a projetá-lo nos outros. Uma grande vulnerabilidade a comentários negativos indicia, também, vulnerabilidades.
Em comum, o filtro da negatividade
Focar-se no que é “errado”, fazer julgamentos, desvalorizar, desenterrar águas passadas e controlar são os ingredientes da crítica. Para transformar esse registo negativo é preciso reformular o discurso interno e a forma como se usam as palavras e o tom, nas interações quotidianas.
Exemplos: no início de uma conversa difícil, comentários que começam por “tu” são rastilhos a evitar. Sugestões inclusivas, que envolvem o “nós”, e sob a forma de pergunta, podem fazer maravilhas, porque estimulam o pensamento criativo e convidam à cooperação. Em caso de discordância, sinalizar com palavras – e expressões a condizer – que compreende o ponto de vista do outro é algo bem distinto de dizer que um dos dois é que está certo porque é mais isto ou aquilo do que a pessoa que tem à frente.
Em síntese, reconhecer a negatividade é uma porta aberta para que ela deixe de ser a erva daninha que contamina um bom encontro ou uma relação de longa data que tem pernas para andar.
Criticar não, elogiar sim (com ponderação)
Quando se avança na linha do tempo, estar sempre do contra e a remar contra a maré é algo que começa a perder força. De frustração em frustração, descobre-se, eventualmente, que o mundo não acaba por causa de um comentário infeliz, com ou sem intenção de fazer mal. Após tanto “dá e leva”, fazem-se ajustes e ganha-se, talvez, um distanciamento bom, alguma sabedoria e outra forma de conduzir-se na vida.
Cristina Valente é psicóloga, coach parental e autora do livro Hábitos Simples para Miúdos Extraordinários. A sua experiência permite-lhe identificar erros comuns nas dinâmicas entre pais e filhos: “No exercício da liderança, por vezes confundem-se os ações – que se podem mudar – e a identidade; perante um comportamento inadequado, são de evitar afirmações do tipo ‘tu és preguiçoso’, por exemplo.”
À superfície, pode nem parecer grave, mas se nos colocarmos na cabeça e no corpo de uma criança ou um adolescente, que ainda não são suficientemente seguros e estão na dependência dos adultos, os seus influenciadores, o caso muda de figura: “Os filho tendem a validar as leituras negativas que fazem deles, por isso é fundamental que os pais falem com eles de forma lúdica, não violenta, se querem corrigir comportamentos.”
E o que dizer do reforço positivo de comportamentos que os adultos valorizam? Um estudo holandês publicado em 2017, com uma amostra de mais de uma centena de crianças (entre cinco e sete anos de idade) e seus pais, mostrou que quando estes exageram na dose de elogios isso pode ter um efeito negativo na autoestima dos filhos, na medida em que as suas expetativas elevadas eram sentidas pelas crianças, ao longo do tempo, como pressões para atingirem metas irrealistas.
Tal como a crítica constante pode ter o efeito contrário ao pretendido, os frequentes “és tão inteligente” ou “és o(a) maior”, etc (seria preferível o “fizeste bem”, com o foco na ação e não na identidade), correm o risco de ser paradoxais: os miúdos receiam não conseguir corresponder à fasquia elevada que os adultos colocam neles e, pior ainda, desiludir-se e sentir-se magoados e vulneráveis mais tarde, ao darem-se conta de que a mensagem inflacionada era falsa.
“Os elogios devem ser usados com ponderação, pois se forem em demasia perdem valor”, sublinha Cristina Valente, aconselhando que eles sejam reservados para situações específicas, em que haja um desempenho acima da média. E remata: “A resiliência e a autoestima são construídas a partir da gratificação interna, que vale por si e dispensa aplausos e plateia”.